A influência de Frantz Fanon no pensamento de Paulo Freire é bem conhecida, mas o patrono da educação brasileira também se inspirou muito em Amílcar Cabral, o intelectual revolucionário de Guiné-Bissau.
Por Curry Malott / Ilustração: Anastasya Eliseeva / Tradução: Cauê Seignemartin Ameni
Amílcar Cabral nasceu em 12 de setembro de 1924 em Bafatá, Guiné-Bissau, uma das colônias africanas de Portugal. Foi morto em 20 de janeiro de 1973 por assassinos fascistas portugueses poucos meses antes de o movimento de libertação nacional, no qual desempenhou um papel central, para conquistar a independência da Guiné-Bissau.
Cabral e os demais líderes do movimento entenderam que estavam travando uma luta anticolonial mais ampla e numa guerra de classes global e, como tal, seus inimigos imediatos não eram apenas os governos coloniais de determinados países, mas o colonialismo português em geral. Durante 500 anos, o colonialismo português foi construído a partir do tráfico de escravos e da pilhagem sistemática das suas colônias africanas: Moçambique, Guiné Bissau, São Tomé e Príncipe, Angola e Cabo Verde.
Apesar do enfoque mundial na luta do Vietnã, o dinamismo inspirador da campanha travada na Guiné-Bissau – juntamente com a figura de Cabral – chamou a atenção internacional. Na introdução a uma das primeiras coletâneas de escritos e discursos de Cabral, Basil Davidson descreveu ele como alguém que expressou um genuíno “interesse duradouro por todos e tudo que veio em seu caminho”.
Como resultado de seu papel como líder do movimento de libertação nacional por cerca de 15 anos, Cabral tornou-se um teórico amplamente influente da descolonização e da reafricanização não determinística e criativa. O educador de renome mundial Paulo Freire, numa apresentação em 1985 sobre as suas experiências na libertação da Guiné-Bissau como uma espécie de consultor militante, conclui que Cabral, juntamente com Che Guevara, representam “duas das maiores expressões do século XX”. Freire descreve Cabral como “um marxista muito bom, que fez uma leitura africana de Marx”. Cabral, para Freire, “viveu plenamente a subjetividade da luta. Por essa razão, ele teorizou” enquanto liderava.
Embora não seja totalmente reconhecida no campo da educação, a teoria e prática anticolonial de Cabral também aguçou e influenciou a trajetória do pensamento de Freire. Através do processo revolucionário liderado por Cabral, a Guiné-Bissau tornou-se líder mundial no que agora se poderia denominar como formas descoloniais de educação, o que comoveu Freire profundamente.
Cabral sabia que o povo não deve apenas compreender abstratamente a interação das forças por trás do desenvolvimento da sociedade, mas deve forjar uma prática anticolonial que concreta, coletiva e criativamente, se veja como uma dessas forças.
Cabral sabia que para derrotar o colonialismo português na Guiné-Bissau, a luta de libertação não poderia apenas reproduzir as táticas de lutas de outros contextos, como o de Cuba. Em vez disso, cada luta particular deve basear suas táticas em uma análise das especificidades de seu próprio contexto. Por exemplo, embora reconhecendo o valor dos princípios gerais que Che Guevara delineou em sua Guerra de Guerrilha, Cabral comentou que “ninguém comete o erro, em geral, de aplicar cegamente a experiência alheia ao seu próprio país. Para determinar as táticas de luta em nosso país, tivemos que levar em consideração as condições geográficas, históricas, econômicas e sociais de nosso próprio país.”
Cabral se concentrou nos desenvolvimentos políticos necessários para a construção de um movimento unido pela libertação nacional. Em suas formulações, ele argumentou que a luta armada estava intimamente ligada à luta política, ambas parte de uma luta cultural mais ampla.
A resistência, para Cabral, também é uma expressão cultural. O que isto significa é que “enquanto parte dessa gente pode ter uma vida cultural, a dominação estrangeira não pode ter a certeza da sua perpetuação”. Nessa situação, então, “em um dado momento, dependendo de fatores internos e externos … a resistência cultural … pode assumir novas formas (políticas, econômicas e armadas), a fim de … contestar a dominação estrangeira”. Na prática, as culturas indígenas ainda vivas que conduziram séculos de resistência anticolonial iriam se fundir organicamente com, e emergir de dentro, da libertação política e nacional dos movimentos socialistas.
Na prática, Cabral promoveu o desenvolvimento da vida cultural do povo. Cabral encorajou não apenas um esforço militar mais intensificado contra os portugueses, mas um esforço educacional mais intensificado nas áreas libertadas da Guiné-Bissau. Mais uma vez, embora o movimento anticolonial e o processo educacional de descolonização do conhecimento sejam muitas vezes falsamente apresentados como distintos ou mesmo antagônicos, Cabral os conceituou como dialeticamente inter-relacionados:
“Criar escolas e difundir a educação em todas as áreas libertadas. Selecionar jovens entre 14 e 20 anos, aqueles que tenham completado pelo menos o quarto ano, para continuar sua formação. Opor sem violência todos os costumes preconceituosos, os aspectos negativos das crenças e tradições de nosso povo. Obrigue cada membro responsável e educado de nosso partido a trabalhar diariamente para o aprimoramento de sua formação cultural. ”
Uma parte central do desenvolvimento dessa consciência revolucionária foi o processo de re-africanização. Não se tratava de um apelo ao passado, mas sim de uma forma de recuperar a autodeterminação e construir um novo futuro no país.
“Opor-se entre os jovens, principalmente os maiores de 20 anos, a mania de deixar o país para estudar em outro lugar, a ambição cega de se formar, o complexo de inferioridade e a ideia equivocada que leva a crer que quem estuda ou faz os cursos se tornarão, assim, privilegiados em nosso país amanhã.”
Cabral incentivou uma pedagogia de paciência e compreensão como a abordagem correta para conquistar e fortalecer o movimento.
Por isso Paulo Freire descreve Cabral como um daqueles “líderes que está sempre com o povo, ensinando e aprendendo mutuamente na luta de libertação”. Como pedagogo da revolução, para Freire, a “preocupação constante” de Cabral era a “paciente impaciência com que invariavelmente se entregava à formação política e ideológica dos militantes”.
Este compromisso com o desenvolvimento cultural do povo como parte de uma luta mais ampla pela libertação influenciou seu trabalho educacional nas zonas libertadas. Paulo Freire escreve que também informava “a ternura que demonstrava quando, antes de ir para a batalha, visitava as crianças nas escolinhas, compartilhando suas brincadeiras e sempre tendo a palavra certa para lhes dizer. Ele as chamava de ‘flores da nossa revolução’”.
Como pedagogo da revolução, Davidson se refere a Cabral como “um educador supremo no sentido mais amplo da palavra”.
A importância da educação foi elevada a novos patamares por Cabral a cada oportunidade. Portanto, fazia sentido para a Comissão de Educação da Guiné-Bissau recém-libertada convidar o maior especialista do mundo em abordagens descoloniais da educação, como Paulo Freire, para participar do desenvolvimento de seu sistema de educação.
Saiba mais em: https://jacobin.com.br/2021/09/como-amilcar-cabral-inspirou-a-pedagogia-de-paulo-freire/
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