Clipping

Mineração predatória, ameaça global

Série de reportagens mostra como corporações, movidas pelo lucro máximo, desarticulam comunidades e devastam. Canadá, centro financeiro da atividade, abre a série. Lá, leis protegem descaso e 95% da atividade se dá em solo indígena

Por Maurício Angelo

A história da liberação internacional da mineração em territórios indígenas coleciona violações socioambientais graves, desmentindo o que entusiastas da atividade e vários políticos brasileiros costumam dizer.

A tese de que a experiência mundial é “positiva” não resiste a um olhar atento aos fatos. É o que os exemplos do Canadá, EUA, Chile e Austrália nos contam, a partir desta série de quatro reportagens especiais que o ISA e o Observatório da Mineração começam a publicar hoje. Junto com o Brasil, os quatro países estão entre os maiores produtores de minério do mundo. Publicado hoje, o primeiro texto é sobre o Canadá.

A mesma tese é usada pelos defensores do Projeto de Lei (PL) nº 191, enviado pelo presidente Jair Bolsonaro ao Congresso em fevereiro de 2020, para liberar a mineração, o garimpo, as hidrelétricas, a exploração de petróleo e gás e até o cultivo de transgênicos nas Terras Indígenas (TIs) no Brasil. A proposta é considerada prioritária pelo governo e pode começar a tramitar na Câmara a qualquer momento, depois de ficar parada por mais de um ano e meio.

Mineração prevalece sobre direitos indígenas

Na edição 2020 do maior evento de mineração do mundo, o PDAC, realizado em Toronto, o secretário de Mineração do Ministério de Minas e Energia (MME) se reuniu com o diretor-geral do centro de Pesquisa para Mineração do Governo do Canadá, Magdi Habib, e discutiu as prioridades de cada país para o setor mineral, “com ênfase em mineração em terras indígenas”. Segundo o MME, 95% da mineração canadense é realizada em solo indígena e isso seria “referência de experiência bem-sucedida”. A história, no entanto, é bem diferente.

Cerca de 1,6 milhão de canadenses identificam-se como indígenas. Isso inclui as “Primeiras Nações” (First Nations), como são chamadas; os Inuit, que vivem na região ártica; e os Métis (mestiços). Os três grupos representam, somados, 4,9% da população nacional. As “Primeiras Nações” estão espalhadas em 617 comunidades, nas dez províncias e três territórios da federação canadense, e representam 60% da população indígena do país.

E a mineração está intrinsecamente ligada à história desses povos. Embora a política indigenista canadense funcione por meio de tratados entre o governo federal e os povos indígenas, desde o Indian Act de 1876 até a “Política de Acordos Territoriais Compreensivos” dos anos 1970, as regras para as atividades econômicas extrativistas, como a mineração, são definidas sobretudo localmente.

Grosso modo, no Canadá as províncias são o equivalente aos estados e os territórios correspondem, mais ou menos, aos antigos territórios federais no Brasil. Como acontece em outros países, deve-se ressalvar que os entes federativos canadenses têm mais autonomia política e administrativa na comparação com o modelo brasileiro.

A pesquisadora Joan Kuyek, uma das maiores referências em mineração no Canadá e autora do livro “Unearthing Justice” (Desencavando a Justiça, em tradução livre), explica que as dez províncias são totalmente responsáveis pela regulação da atividade, cada uma possuindo seu próprio Código Mineral. Já os três territórios dependem de regulação federal.

Os projetos de exploração mineral precisam também estar em conformidade com as legislações federais específicas, tal como a Lei da Pesca, a Lei de Avaliação Ambiental e a Lei de Explosivos. Mas, na prática, o poder das grandes mineradoras acaba prevalecendo diante das reivindicações dos povos indígenas e os processos de consulta acabam sendo mera formalidade, como já acontece no Brasil, nos casos de grandes empreendimentos que incidem sobre TIs.

“As leis foram criadas para proteger os interesses da indústria de mineração. Elas nunca tiveram a intenção de controlar a mineração ou seu impacto na terra ou nas pessoas”, afirma Kuyek. “As leis federais atuais não exigem consulta ou proteção para as Primeiras Nações. Nem lhes dá um papel nas decisões sobre os recursos da terra”.

Os direitos minerários são concedidos com base em “quem chegou primeiro” e há inclusive uma indústria da venda de licenças minerais, diante da facilidade com que são obtidas e do interesse de grandes corporações.

No Canadá, os direitos minerais pertencem normalmente ao governo – a Coroa – que concede esses direitos para as empresas. Mas o direito de explorar uma área é concedido a qualquer pessoa que possua uma licença para prospecção – obtida mediante o pagamento de uma pequena taxa à província ou território e mantida com o mínimo de atividade na terra.

A maioria das províncias sequer exige que uma avaliação ambiental seja feita para conceder o título minerário. No fim, embora os tipos de acordo variem, “o que os povos indígenas acabam recebendo é nada, se comparado, por exemplo, aos bônus que os executivos de grandes mineradoras recebem anualmente”, diz Kuyek.

Local onde barragem da mina de Mount Polley rompeu, despejando 25 milhões de metros cúbicos de rejeitos. 4/8/2014. | Cariboo Regional District

‘Pobreza forçada’ é moeda de troca

A análise de Tara Scurr, da Anistia Internacional do Canadá, vai na mesma linha. Segundo ela, o governo canadense priva os povos indígenas de financiamento adequado para projetos de desenvolvimento em reservas que foram reduzidas a áreas muito pequenas quando comparadas aos vastos territórios tradicionais originais.

Muitos chefes e conselhos indígenas acabam concordando com as minas para que tenham acesso aos royalties pagos pelas empresas. Mas não há consenso. Às vezes, explica Scurr, as decisões dos conselhos são contestadas por membros da comunidade ou por nações indígenas vizinhas. Em alguns casos, votações são feitas entre as comunidades para decidir se concordam ou não com a instalação de um projeto minerário.

“É um sistema complicado no qual a pobreza forçada dos povos indígenas é usada como moeda de troca para abrir minas e outras infraestruturas”, critica Scurr.

Professor e pesquisador da Universidade Federal do Pará, Leonardo Barros tem se dedicado a estudar o modelo canadense nos últimos anos. Ele analisa que o Canadá é um país com forte discurso e atuação na agenda dos direitos humanos, “mas a sua implementação efetiva no caso dos povos indígenas é bastante falha”.

Mesmo com uma qualidade de vida melhor, mais recursos, uma sociedade civil mais atuante, um regime político mais democrático e um governo mais responsivo que o brasileiro, “quando se trata dos povos nativos, Brasil e Canadá se assemelham muito, no mau sentido”, diz Barros.

Além da atuação das mineradoras canadenses ao redor do planeta, incluindo o Brasil, o Canadá hoje é o centro financeiro mundial da mineração. Quase 60% dos serviços financeiros do setor em termos globais são oferecidos por meio de duas bolsas de ações: Toronto Stock Exchange e TSX Venture Exchange. Ambas sediadas em Toronto, elas listam mais de 1,1 mil empresas mineradoras em suas carteiras.

Do outro lado da corda, do ponto de vista dos povos indígenas é impossível quantificar financeiramente seu próprio modo de vida e os impactos que ele sofre com a exploração mineral.

“Como precificar uma língua que se extingue? Como precificar a paz e o sossego de uma comunidade que pode ganhar dinheiro e perder a alma? Esse tipo de reflexão já faz parte da cosmovisão de muitos povos indígenas. Resta saber se um dia poderá ser compreendido pelas mineradoras”, questiona o pesquisador brasileiro.

Recuperação do Rio Hazeltine Creek, devastado pelo rompimento da barragem da mina de Mount Polley, em agosto de 2014. Imagem de 2020 | Imperial Metals

Rompimento de barragem

O caso dramático do rompimento da barragem de Mount Polley, um dos mais graves do Canadá e do mundo, dá a exata dimensão da tragédia que pode se abater sobre as comunidades indígenas e guarda semelhanças com os desastres de Mariana (2015) e Brumadinho (2019), ambos em Minas Gerais, no Brasil.

Em agosto de 2014, um reservatório da mina de cobre Mount Polley, de propriedade da empresa Imperial Metals, rompeu, liberando cerca de 25 milhões de metros cúbicos de rejeitos – cerca de duas vezes o que foi despejado em Brumadinho – no lago Quesnel, no centro da província da Colúmbia Britânica, no oeste do Canadá (veja vídeo e imagens abaixo).

Esse foi o pior desastre ambiental relacionado à mineração da história do país. Para os povos indígenas da área, que dependem do território para manter seu modo de vida, suas fontes de água potável e alimentação, a ruptura da barragem foi brutal. Até hoje, sete anos depois, a Imperial Metals não foi multada, autuada ou penalizada de outra forma.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/mineracao-predatoria-ameaca-global/

Comente aqui