A ordem de grandeza do número de vidas perdidas pela negligência brasileira
Por César Locatelli / Créditos da foto: (Ueslei Marcelino/Reuters)
“O Brasil esteve classificado em último lugar por pesquisadores australianos quanto à resposta à pandemia. Embora estejam disponíveis estatísticas que mostram a classificação dos países de acordo com as taxas de mortalidade por COVID-19, o cálculo do número de vidas perdidas pela negligência brasileira não tem sido explicitado.”
A afirmação do médico sanitarista e ex-diretor da Anvisa, Claudio Maierovitch, refere-se ao estudo do think tank australiano, Lowy Institute, que estimou, no início do ano, a performance de diferentes países frente a pandemia. Entre 98 países, o Brasil ocupava a posição de número 98, a pior avaliação no combate à pandemia, como mostra a figura abaixo. O mesmo instituto divulgou nova avaliação em março, porém o Brasil não constava da lista: não mais havia dados públicos disponíveis que permitissem a avaliação.
Sobre a segunda parte da afirmação de Maierovitch, é possível que algumas contas simples nos deem uma ordem de grandeza do número de vidas que poderiam ter sido salvas com melhor desempenho no combate à pandemia. Com dados do site Statista, calculamos quantas mortes teriam ocorrido no Brasil se tivéssemos sofrido o mesmo número de mortes por milhão de habitantes que outros países selecionados tiveram. Em seguida, comparamos com o número de mortes no Brasil.
A Bolívia, por exemplo, teve 1.622 mortes por milhão de habitantes. Se tivéssemos tido esse mesmo número de mortes por milhão de habitantes no Brasil, teríamos somado, no total, 342 mil mortes. Esse total comparado com as 591 mil mortes, que o Brasil efetivamente teve até a data estudada pelo site Statista, revela uma diferença de 249 mil mortes a menos.
Em outras palavras, se tivéssemos uma sociedade com condições sociais, culturais e ambientais como a boliviana e se tivéssemos lidado com a pandemia de modo semelhante ao modo empregado pelo povo e pelo governo boliviano teríamos tido 249 mil mortes a menos.
Veja a tabela em que comparamos nosso país com quatro países latino-americanos.
Como gostamos de nos comparar com os Estados Unidos e com os europeus, fizemos outra pequena tabela. A Alemanha teve 1.120 mortos por milhão de habitantes. Com a população que temos no Brasil e esse número alemão de mortes por milhão, teríamos tido 236 mil mortes no Brasil, ou seja, teríamos tido 355 mil mortes a menos.
A tabela do site Statista mostra que 6 países, entre 206 países estudados, tiveram mais mortes por milhão de habitantes que o Brasil. São eles Peru, Bósnia-Herzegovina, Macedônia, Hungria, Bulgária e República Tcheca.
Maierovitch nos revela também que “o epidemiologista Pedro Hallal [ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas] há alguns meses apresentou uma comparação da taxa de mortalidade pela doença no Brasil com a média mundial. Se fizermos a comparação hoje, aplicando a taxa média de mortalidade do mundo à população brasileira, teríamos 123.013 mortes acumuladas, ou seja, 468.427 pessoas não teriam morrido no Brasil se a resposta tivesse efetividade equivalente à da média de todos os países”.
Pedro Hallal publicou, em 23/9, o tuíte abaixo que mostra dados da Universidade John Hopkins
O trabalho com esses dados aguçou outra curiosidade: quantos mortos teríamos se o Brasil tivesse tido um desempenho semelhante a São Paulo? E se fôssemos o Maranhão?
A tabela abaixo mostra o número de mortos por milhão de habitantes em quatro estados brasileiros que tiveram alta taxa de mortalidade. Se o país tivesse o mesmo número de mortes por milhão habitantes que, por exemplo, tem São Paulo, segundo dados de 24/9 do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde, teríamos 681 mil mortos, ou, 89 mil mortos a mais do que tivemos até essa data no Brasil.
O quadro acima aponta também que, embora o Amazonas tenha ocupado as manchetes da chamada grande mídia, seu desempenho (3.202 mortos por milhão de habitantes) foi praticamente igual ao dos estados de São Paulo (3.187) e Goiás (3.229). Por outro lado, Mato Grosso, (3.781), Rio de Janeiro (3.747), Distrito Federal (3.343), Mato Groso do Sul (3.349) e Paraná (3.338) tiveram desempenho pior do que o do Amazonas.
Tomamos, em seguida, estados brasileiros que, comparativamente, tiveram melhor desempenho no tocante à mortalidade por milhão. Se o Brasil tivesse o mesmo número de mortos por milhão do estado do Maranhão, por exemplo, teriam sobrevivido 288 mil e 600 pessoas.
É certo que haverá contestação, e mesmo negação peremptória, dessas estimativas. É certo que nunca saberemos com exatidão quantas pessoas poderiam ainda estar entre nós se o caminho escolhido não tivesse sido o da negação, da omissão, da negligência, da divisão. É igualmente certo que sabemos que a ordem de grandeza das mortes que poderiam ter sido evitadas no Brasil está na casa de algumas centenas de milhares de vidas.
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