Por: Marco Túlio de Urzêda-Freitas |Créditos da foto: (Reprodução/bit.ly/3BhqnqM)
Ao refletir sobre o papel da educação frente aos horrores da II Guerra, Theodor W. Adorno afirma, em Educação e emancipação: “A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação”. Isso porque, segundo argumenta, a barbárie está sempre à espreita, aguardando o momento certo para nos levar aos subterrâneos morais da civilização. Para o pensador alemão, a barbárie continuará existindo enquanto persistirmos na manutenção das condições que a alimentam. E, como ele próprio enfatiza: “É isso que apavora.” No caso do Brasil recente, a eleição de Jair Bolsonaro para a Presidência da República e a expressiva legitimação do seu projeto de destruição e morte não deixam restar dúvidas sobre a persistência da barbárie em nós e, consequentemente, em nossa relação com a vida e a história. Como professor, sinto-me, então, no dever moral de refletir sobre o papel da educação frente a tal persistência, afinal, tanto Bolsonaro quanto seus/suas eleitores/as – pelo menos, a maioria deles/as – passaram por escolas e/ou universidades. Assim, as perguntas que me faço são: a educação brasileira tem cumprido a exigência posta por Adorno? Estamos de fato educando contra a barbárie?
Obviamente, essas são perguntas retóricas, pois a única resposta possível para elas, até o momento, é não. Mas o problema não se esgota nessa resposta. Porque a educação brasileira não só não tem cumprido a “exigência que Auschwitz não se repita”, como a tem negado desde sempre, colocando em sua base os elementos que levaram à construção daquela fábrica de morte: o capital e a técnica. Em relação ao capital, é preciso lembrar que um dos principais fatores ligados à ascensão do Nazismo foi a crise econômica que assolou a Alemanha a partir do fim da I Guerra, em decorrência das imposições do Tratado de Versalhes e da quebra da Bolsa de Nova York. Esse foi o contexto ideal para a projeção do movimento antissemita no país, que passou a responsabilizar os judeus e seu crescimento econômico pela miséria que o povo “originalmente alemão” atravessava. Por sua vez, em relação à técnica, pode-se dizer que esse foi o princípio que viabilizou a concretização do projeto nazista, tanto por sua afinidade com o pensamento racional quanto por seu caráter de aplicação, ambos voltados para a resolução de questões práticas – como a “solução final para a questão judaica”. Sobre esse ponto, Zygmunt Bauman ressalta, em Modernidade e holocausto, que o respeito e admiração pela “eficiência técnica” e o “progresso material trazido por nossa civilização” nos fizeram “[subestimar] gravemente seu verdadeiro potencial”.
Um dos pensadores brasileiros que sempre defendeu e apontou caminhos para uma educação contra a barbárie é Paulo Freire. Em sua vasta e mundialmente respeitada obra, o educador se esforçou para nos convencer que a educação deve se basear em valores democráticos, tais como o diálogo e a problematização das condições injustas que atravessam a escola e a vida social. No clássico Pedagogia do oprimido, ele define a educaçãocomo “um esforço permanente através do qual os [seres humanos] vão percebendo, criticamente, como estão sendo no mundo”. É a partir desse movimento que se consegue perceber a educação como “um ato de amor [e] coragem”, que “[n]ão pode temer ao debate […] sob pena de ser uma farsa”, como afirma em Educação como prática da liberdade. De forma resumida, pode-se dizer que, na visão de Paulo Freire, o ato de educar se opõe à barbárie porque o seu objetivo é lutar contra as raízes que a sustentam: o desamor, a alienação e a injustiça. Tal visão ajuda a compreender por que o educador brasileiro é rechaçado, com tanto vigor, por Bolsonaro e seus “cidadãos de bem”, e por que a educação vem sendo paulatinamente açoitada no/pelo atual governo. Mas, por outro lado, ela também nos força a admitir que, em nenhum outro momento histórico, o pensamento crítico de Paulo Freire conseguiu mover substancialmente a estrutura da educação brasileira. Ainda que boa parte dos nossos cursos de licenciatura incluam obras do autor em seus currículos, temos insistido em reforçar uma conjuntura educacional que sempre nos conduziu à barbárie. Parece ironia, mas o fato é que estamos diante de uma tragédia.
Para compreender a estrutura educacional brasileira, devemos começar por sua estreita relação com o capital, relação essa que tem início fora da escola, quando, ainda crianças, somos obrigados/as a dizer o que desejamos ser e a acreditar que a educação é o caminho para realizarmos esse desejo. A partir daí, a nossa trajetória escolar passa a se orientar pelo objetivo de nos tornar profissionais qualificados/as, o que não significa, precisamente, sermos capazes de prestar bons serviços à sociedade e/ou contribuir para o bem-estar coletivo, mas de nos inserir no mercado de trabalho e participar ativamente da circulação do capital. Como destaca o filósofo István Mészáros em A educação para além do capital, essa dinâmica visa “assegurar que cada indivíduo adote como suas próprias as metas de reprodução objetivamente possíveis do sistema”. Em contrapartida, não se pode negar que a educação propicia uma série de vivências que transcendem a lógica do capital e que os próprios documentos educacionais – mesmo com lacunas – abrem algum espaço para movimentos alternativos nos contextos de ensino. O problema é que os sentidos que estruturam historicamente a educação privilegiam os interesses de grupos que controlam o capital, fato que nos leva a internalizar compreensões que a percebem, na base, como um empreendimento capitalista.
Nesse ponto, cabe mencionar a relação da educação brasileira com a técnica, já que, como mostra a história, é através dela que grandes empreendimentos se realizam. Eleger uma prática como técnica significa dizer, grosso modo, que ela se organiza por um modelo racional e que é pensada para alcançar um objetivo específico. No caso da educação, se o objetivo é formar profissionais qualificados/as, o ensino deve ser organizado para tal finalidade. É por isso que os conteúdos das disciplinas escolares e acadêmicas são comumente abordados de forma técnica, como um fim em si mesmos, e não de forma problematizadora, como saberes intimamente vinculados às relações e práticas que estruturam a sociedade. No campo do ensino de línguas, por exemplo, que é minha área de atuação, um conceito que ainda sustenta o imaginário docente, inclusive no âmbito acadêmico, é o de língua como instrumento de comunicação. Desse conceito, por sua vez, articulam-se práticas que tratam a língua como um objeto que utilizamos para alcançar um dado objetivo, e não como um conjunto de múltiplos repertórios de sentido, atravessados por relações de poder, que mobilizamos para (re)construir a vida social na interação com o mundo. Em sua pesquisa, Marianne Vieira Magalhães conclui, a partir da observação de aulas de inglês, que a maioria delas enfatizam a “prática de habilidades” e que as falas dos/as alunos/as confirmam a visão do inglês “[como] meio de ascensão social, adquirida por meio do mercado de trabalho”.
O problema não é que a educação forme profissionais qualificados/as para o mercado de trabalho ou que contribua para a sua ascensão social. O problema é que esses sejam os pilares do nosso projeto educacional e que a ideia de “ascensão social” esteja carnalmente relacionada às leis de um sistema projetado para aniquilar vidas. Nesse sentido, compreendo que a educação brasileira tem falhado, estruturalmente, por isentar-se das disputas que regem a sociedade mais ampla e por omitir-se perante às mazelas sociais (re)produzidas pelo atual sistema, reiterando princípios que sempre estiveram e sempre estarão, de alguma forma, atrelados à barbárie. Em relação à prática docente, a questão que se coloca não é a recusa ao ensino dos conteúdos oficiais, mas a necessidade de relacioná-los à vida para além da sala de aula, de modo a contribuir para formar seres humanos e profissionais engajados/as com a construção de uma sociedade justa, plural, democrática e não-violenta. Com base em nosso atual contexto, é interessante que nos perguntemos: como as nossas práticas se relacionam com a crise social, democrática e civilizatória institucionalizada pelo governo de Jair Bolsonaro? O que fizemos para impedir que a barbárie se repetisse novamente em nossa história?
Por certo, nós, professores/as, não dispomos de total autonomia para subverter as leis do sistema. Além disso, é preciso reconhecer que estamos submetidos/as, até certo ponto, à autoridade de outros/as agentes internos/as e externos/as à educação, o que nos impede de caminhar, integralmente, na contramão da barbárie. Mas o fato é que sempre podemos fazer alguma coisa contra ela. E é aqui que entra a minha principal questão: temos feito alguma coisa? Evidentemente, essa pergunta não se destina aos/às vários/as professores/as, de contextos e níveis diversos, que vêm realizando, já há algum tempo, uma série de movimentos críticos em seu fazer pedagógico. Ela se destina àqueles/as que ainda localizam as suas práticas fora da realidade em que são mobilizadas. De modo particular, ela se destina aos/às professores/as universitários/as que declaram respeito à obra de Paulo Freire, mas que demonstram completa aversão ao trabalho crítico; que se posicionam contra o governo Bolsonaro, mas que reforçam cotidianamente os valores que possibilitaram a sua ascensão; e que se recusam a virar o século por acreditar que a produção científica tradicional reflete “a verdade” sobre “o conhecimento”. Ora, se não podemos negar a ciência tradicional, por outro lado, não podemos ignorar a sua relação com o capitalismo e o projeto social tecnicista, ambos inextricavelmente vinculados à construção da injustiça, da violência e das fábricas de morte do passado e do presente.
Se quisermos construir uma educação contra a barbárie no Brasil, deveremos não só dialogar honestamente com Paulo Freire, como também expandir as suas reflexões para outras lógicas. Deveremos estar abertos/as para ouvir, dialogar e aprender com sujeitos cuja existência e humanidade têm sido violentamente negadas pela matriz de poder que gerou e sustenta o empreendimento capitalista e seu modelo de educação. Um desses sujeitos é a pedagoga Thiffany Odara, mulher negra trans ativista e mãe de santo, que defende um movimento de desobediência à estrutura educacional em vigor. Baseando-se nas narrativas orais de quatro travestis e uma mulher transexual, Thiffany analisa, em Pedagogia da desobediência: travestilizando a educação, como o movimento brasileiro de travestis e transexuais impacta as políticas educacionais. Tendo em vista a exclusão e a violência experienciadas por esses sujeitos no contexto escolar, bem como a negação de seus corpos e subjetividades no currículo oficial, a autora define a pedagogia da desobediência como um “movimento político e social que confronta o modelo educacional colonial vigente”. Esse movimento constitui a base da ideia de travestilizar a educação, que significa “deseduca[r] e ressignifica[r] o modelo imposto de educação excludente, através de mecanismos epistemológicos cunhado[s] pela luta organizada das travestis do Brasil”.
Como vemos, a proposta de Thiffany Odara se esquiva da lógica capitalista e tecnicista de educação, na medida em que se fundamenta no enfrentamento crítico de sentidos e conjunturas que (re)produzem o desamor, a alienação e a injustiça. O movimento de desobediência e travestilização engendrado pela autora ecoa o real significado da educação, que, nas palavras de István Mészáros, “é fazer os indivíduos viverem positivamente à altura dos desafios das condições sociais historicamente em transformação”. É para esse espaço de luta que nós, profissionais da educação, devemos nos mover coletivamente, caso queiramos atender à exigência posta por Adorno. Não podemos mais continuar relegando a violência a um segundo plano, pois vivemos para comprovar a tese do pensador alemão: “a monstruosidade não calou fundo nas pessoas”. Da forma como se apresenta desde sempre, a educação brasileira caminha para, e não contra, a barbárie, pois contribui fortemente para manter as condições que a sustentam. É uma farsa pedagógica – como diria Paulo Freire – imbricada na produção de sujeitos capazes de enxergar o fascismo como uma opção democrática. Logo, o respaldo popular a um projeto obscenamente cruel como o de Jair Bolsonaro era uma questão de tempo. Cedo ou tarde, sentiríamos na pele o resultado de uma prática voltada para o capital e seus objetivos específicos, e não para a humanidade e os efeitos sociais da educação. Não acredito que somos culpados/as por essa tragédia. Mas também não acho que somos inocentes. O que somos, então? Eis, talvez, o ponto mais complexo da questão.
Veja em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Educacao/Brasil-e-sua-educacao-para-a-barbarie/54/51961
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