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O marxismo crítico de Karl Korsch

Radiografia da vida e obra do pensador alemão, falecido há 60 anos. Ativo nas lutas sociais, propôs romper dogmas e resgatar a teoria-ação, que fosse crítica desapiedada do capitalismo, mas também ousasse formular um projeto emancipador

Por: Gabriel Teles

Karl Korsch pode ser considerado, sem dúvidas, um dos mais importantes marxistas da primeira metade do século XX. Sua vida e obra são expressões de uma pulsão para a revolução e uma obstinada defesa de um marxismo não dogmático, crítico e revolucionário. Korsch foi um daqueles intelectuais marxistas que, em sua plenitude, realizou aquilo que Karl Marx havia formulado em sua juventude: “Embora a construção do futuro e sua consolidação definitiva não seja assunto nosso, é ainda mais claro, no presente, o que devemos realizar. Refiro-me à crítica desapiedada do existente, desapiedada tanto no sentido de não temer os próprios resultados quanto no sentido de que não se pode temer os conflitos com aqueles que detêm o poder”1.

Tamanha importância, no entanto, não é acompanhada por um maior conhecimento de sua obra. Korsch, no interior das discussões do marxismo, é bastante citado, mas pouco lido e debatido. É de fácil verificação tal constatação. Basta um simples exercício de busca bibliográfica sobre Karl Korsch e veremos que, quase sempre, há poucos estudos sobre o autor. O que se tem, em abundância, são menções pontuais e restritas, articulando-o a outros autores, tais como Gramsci e Lukács, numa chave analítica que ficou conhecida como “marxismo ocidental”, termo cunhado pelo próprio Korsch, mas transformado em construto por Merleau-Ponty e popularizado por Perry Anderson. O problema, não obstante, persiste. Mesmo considerado, junto com aqueles dois autores, precursor do marxismo ocidental, Karl Korsch é o menos debatido: gastam-se dezenas de páginas com Gramsci e Lukács, mas pouco desenvolvida é a discussão sobre a reflexão korschiana.

Tal cenário se agrava ao constatar que até mesmo esses poucos estudos focalizam, quase sempre, tão somente uma obra de Korsch, Marxismo e Filosofia, desconsiderando todo o restante de sua produção anterior e posterior, rica em diversas análises e contribuições para a compreensão crítica da sociedade capitalista.

Esse conjunto de constatações nos leva a seguinte pergunta: como explicar, em suas múltiplas determinações, o status periférico do pensamento de Korsch ou o silêncio sobre a sua obra?

A intenção deste texto, evidentemente, não é responder a essa questão em sua totalidade, mas focalizar em um aspecto fundamental de seu pensamento, que dá inteligibilidade e explica um dos motivos da existência tanto dos não-leitores quanto dos maus-leitores da obra necessária e atual de Karl Korsch. Por esse ângulo, objetivamos nesse texto explicitar, mesmo que sinteticamente, a proposta de marxismo crítico-revolucionário de Korsch e como tal compreensão atravessou o conjunto de sua militância política e de sua obra teórica. Como veremos adiante, a sua concepção de marxismo e as consequências retiradas da mesma geram dificuldades para aqueles que não levam até as últimas consequências o projeto político radical e revolucionário do qual o próprio marxismo é uma manifestação. Antes, no entanto, façamos alguns breves apontamentos biográficos situando a sua trajetória intelectual e política.

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Karl Korsch nasceu em 1886, Tostedt, distrito de Hamburgo, na Alemanha. Oriundo das classes privilegiadas alemãs, estudou direito, sociologia e filosofia, doutorando-se em direito em 1911, pela Universidade de Jena.

Enquanto se preparava para as provas exigidas para seguir carreira jurídica no Estado Alemão, Korsch é convidado a trabalhar, em 1912, na Inglaterra. O seu trabalho consistiria na tradução do inglês para o alemão de um novo livro do famoso jurista inglês Sir. Simon Shuster. Do período estabelecido em Londres, o fundamental será o rápido desenvolvimento político de Korsch e a sua adesão à sua primeira organização política após sua experiência no movimento estudantil: a Sociedade Fabiana2.

Em meio à eclosão da I Guerra Mundial, retorna à Alemanha e participa do conflito enquanto oficial. Nos últimos anos de guerra, com o aumento da miséria entre as classes subalternas (operárias, camponeses, etc.) e o cansaço dos soldados no front, se inicia uma imensa onda de insatisfação, estourando greves selvagens, revoltas, insubordinações coletivas de soldados em quase todas as nações participantes da Guerra. O ano de 1917 representou uma importante guinada na Primeira Guerra Mundial com o impacto da Revolução Russa e as massivas greves em Berlim e Leipzig, além de uma inicial radicalização operária na Itália, Hungria, França, dentre outros países. Todo esse processo impactou Korsch, que cada vez mais se radicalizava. Todos esses elementos se intensificaram ainda mais com a experiência da Revolução Alemã de 1918 e a criação e generalização de conselhos operários. A companhia de Korsch também criou seus conselhos operários e, graças ao seu prestígio e sua crescente radicalidade, ele foi eleito como um de seus representantes. No final da guerra, a sua companhia ficara conhecida como a “Companhia Vermelha”, pois todos eram a favor da revolução para o fim imediato da guerra.

Ao voltar da guerra, em janeiro de 1919, após participar na criação dos primeiros conselhos de soldados alemães, Korsch se filia ao USPD (Partido Social-Democrata Independente da Alemanha), especialmente em suas fileiras “esquerdistas”, que estavam mais ligados ao movimento dos conselhos em sua base, do que os “centristas” do partido, que se ligavam nas suas articulações com o SPD na nova república alemã. Além disso, simultaneamente, regressa para a sua antiga cidade universitária e inicia sua carreira como professor de direito na Universidade de Jena.

É também no início de 1919 que Korsch é convidado por Robert Wilbrandt a participar como seu “assistente científico” na Comissão de Socialização das indústrias alemãs, presidida por Karl Kautsky (representante do SPD) e Ernst Francke (do Instituto de Reforma Social). Korsch ficara encarregado de preparar recomendações para a socialização da indústria de carvão. Desta sua experiência, surgiu um dos trabalhos mais conhecidos de Korsch, a brochura O que é Socialização?, escrita em março de 1919.

Korsch, desiludido com a socialdemocracia e seu pseudoplano de socialização, inicia um intenso e profundo estudo da obra de Marx nos primeiros anos da década de 20 com objetivos de dar maior concreticidade aos seus posicionamentos políticos. Em pouco tempo, ele assimila os fundamentos da teoria de Marx, especialmente sua teoria do capitalismo, contido em O Capital, e inicia uma prática que fará por toda a sua vida militante: confrontar os supostos epígonos de Marx, evidenciando o caráter não marxista de seus escritos e prática política. Com esse espírito, ele irá desenvolver uma polêmica com a socialdemocracia e posteriormente também com o leninismo.

Frustrado tanto com o SPD quanto pelo USPD, participa do famoso congresso desse último partido no final de 1920, quando o partido racha e a maioria opta por integrar o KPD, Partido Comunista da Alemanha. Korsch, buscando novos ares políticos, também se junta ao KPD, em que pese suas profundas reservas quanto aos 21 pontos formulados pela Internacional Comunista, que evidenciava, entre outras determinações, a disciplina centralizada por Moscou e o grau de dependência em relação ao partido russo. Korsch, impulsionado por seu “socialismo prático”, se junta ao KPD por acreditar que os trabalhadores revolucionários estavam migrando para esse partido e que eventualmente esse processo poderia dar alguma sobrevida ao já inicial declínio dos conselhos operários.

Durante seus anos no interior do KPD, Korsch se destacará e se tornará um dos grandes intelectuais desse partido, ministrando diversas palestras e sendo muito ativo em seus jornais e revistas. Será eleito deputado pelo Landtag (parlamento provincial) de Turíngia entre os anos 1920 e 1923.

Korsch torna-se, a partir daí, uma grande referência nos debates sobre marxismo. Ele foi uma das peças chaves para a constituição do famoso Erste marxistische Arbeitswoche (Primeira Semana de Trabalho Marxista), ocorrido nas proximidades de Ilmenau (Turíngia) em 20 de maio de 1923, de iniciativa de Félix J. A ideia da Semana foi proposta pelo próprio Korsch que fez a sugestão para Félix3, que tornou-se o principal apoiador financeiro e patrono do evento.

Korsch, nesse momento, vivia em Jena e morava no edifício que abrigava o jornal Die Neue Zeitung, editora do partido. A sua vida estava imersa em sua militância política, ora como um importante integrante do KPD e deputado na Landtag, ora como intelectual estudioso e teórico do marxismo. Mas em 1923 ocorrem dois eventos importantes na vida de Korsch que encerram esta fase de sua trajetória.

O primeiro deles é a publicação de seu livro Marxismo e Filosofia, a reunião de um conjunto de textos de Korsch que objetivava reconstituir o marxismo em sua base revolucionária.

O segundo evento é a sua atuação como Ministro da Justiça de Turíngia durante seis meses, onde foi formado um governo de coalização entre comunistas (KPD) e social-democratas independentes (ala esquerdista do USPD). A pretensão dos dirigentes do partido era que esse governo se tornaria uma base central e regional para a insurreição revolucionária que estava se desenhando desde então na Alemanha.

O fracasso do que ficou conhecido como o Levante de Outubro criou uma profunda discussão no interior do KPD, criando diversas divisões internas e disputas sobre os rumos que o partido tomaria. A bolchevização dos partidos torna-se um imperativo com as diretrizes da III Internacional e esse processo repercute diretamente no KPD após o seu fracasso em 1923. Korsch, que sempre tomou partido pela autonomia do proletariado, absorve atentamente essa discussão e inicia um processo de autoesclarecimento sobre a sua militância política e as determinações da derrota proletária na Alemanha. Como resultado, torna-se ferrenho crítico da ala hegemônica do seu próprio partido e se vincula à organizações críticas à experiência soviética, culminando na sua expulsão do KPD em 1926, livrando-se do fardo de estar num partido que acreditava ser não mais revolucionário, mas que se mantinha nele na esperança de igualmente radicalizar seus outros membros ou o conjunto dos trabalhadores ainda ligados a ele.

A partir de 1926, com sua expulsão do KPD, continua vinculado ao movimento operário em suas publicações teóricas e políticas. Até 1932, publica importantes ensaios que trata de diversos assuntos: marxismo, materialismo histórico, sociologia, ascensão fascista, União Soviética, etc.

Com a ascensão do nazismo na Alemanha, em 1933, é expulso da Universidade de Jena e migra para a Dinamarca, Suécia, Inglaterra e, finalmente, se instala de maneira definitiva nos Estados Unidos. Em 1937, publica outra importante obra, em inglês, Karl Marx, para uma coleção de sociologia da London School of Economics4. Sem nenhum vínculo organizativo, após romper com diversos partidos políticos e ser expulso do KPD, Korsch encontra-se parcialmente isolado nos Estados Unidos.

É a partir deste momento que ele se junta com os comunistas de conselhos que também se exilaram nos EUA, especialmente Paul Mattick, Anton Pannekoek, Canne Meijer, entre outros. O comunismo de conselhos foi uma tendência marxista que se desenvolveu no bojo do processo revolucionário alemão, com representantes tanto da Alemanha quanto da Holanda (muito deles derivados da chamada “esquerda germano-holandesa”), caracterizado pela defesa dos conselhos operários, o combate à socialdemocracia, ao bolchevismo, ao sindicalismo e ao resgate da teoria revolucionária de Marx, especialmente a sua defesa da autoemancipação proletária (sintetizada na frase “a emancipação da classe operária é obra da própria classe operária”).

Os trabalhos de Korsch com os comunistas de conselhos se tornaram a sua principal atividade política realizada após a migração, especialmente na revista que Mattick fundara, Living Marxism5. A reflexão korschiana agora inclina-se para explicar as determinações da derrota proletária e a ascensão da contrarrevolução, seja ela de lastro fascista ou de lastro soviético. Além disso, o nosso autor também fez diversos estudos sobre o marxismo, anarquismo, as lutas anticoloniais nos países periféricos, etc.

Até sua morte, em 1961, continua ministrando aulas em diversas universidades estadunidenses e publica dezenas de ensaios políticos em diversas revistas ligadas ao restrito bloco revolucionário estadunidense, tais como Living Marxism, Modern Quaterly, New Essays, Partisan Review Politics, etc.

A partir da década de 1950, a atividade política e intelectual de Korsch refluiu de maneira drástica. A sua saúde deteriorou-se rapidamente. Em 1957 entra em colapso acometido pelos últimos estágios de incapacidade de uma esclerose múltipla. Karl Korsch, devido a essa condição, morre em 21 de outubro de 1961, em Belmont, Massachusetts. Finaliza, enfim, a trajetória de um grande intelectual marxista que, assim como o movimento revolucionário do proletariado, teve seu fim trágico golpeado pela contrarrevolução.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/historia-e-memoria/o-marxismo-critico-de-karl-korsch/

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