Por Paulo Kliass/ Crédito Foto: (Marcos Corrêa/PR)
O debate político mais recente tem sido dominado pela velocidade de tramitação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 23 de 2021. A matéria foi encaminhada pelo Presidente Bolsonaro ao Congresso Nacional no início de agosto deste ano. Rapidamente, ela foi apelidada de “PEC dos Precatórios” e assim tem sido tratada pela grande imprensa e pelos atores políticos envolvidos na sua discussão e no seu encaminhamento.
Ora, mas por que essa alcunha, que nos faz aproximar bastante da esfera da Justiça, se a Exposição de Motivos (EM) da matéria foi assinada pelo superministro Paulo Guedes, o então suposto comandante em chefe da área da economia deste governo? A resposta a esta indagação nos remete à essência da política econômica daquele obscuro operador do sistema financeiro que tanto colaborou para promover a aproximação do então candidato defensor da pena de morte e da tortura junto à nata do mundo do financismo tupiniquim.
Paulo Guedes parece viver em uma redoma de vidro, isolado do mundo real, desde a década de 1980. Logo depois de ter voltado ao Brasil, após dar uma colaboraçãozinha básica na montagem dos programas dos chamados chicago boys na ditadura sangrenta do general Pinochet do Chile, ele incorporou de maneira definitiva o discurso da doutrina neoliberal. Fez fortuna às custas do Estado e de suas maquinações com a perigosa área de tangência incestuosa entra as finanças públicas e os interesses do capital privado aqui no Brasil. Mas nunca perdeu a oportunidade de clamar contra o setor público e de propor sua mais completa privatização.
Do ponto de vista do diagnóstico dos problemas da economia e da sociedade brasileiras, ele nunca escondeu seu DNA associado à defesa das elites dos endinheirados pela via do parasitismo. Assim, identificava no suposto desequilíbrio estrutural na situação fiscal de nosso País um dos grandes males de nossa sina coletiva. A solução passaria por uma reorganização destruidora da administração estatal, que deveria incluir também uma redução brutal da estrutura e do volume do gasto público no Brasil.
Austeridade fiscal é coisa do passado.
Ao repetir o mantra ultrapassado dos ajustes fiscais propostos até o passado recente pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial (BM), Guedes se desconectou completamente de seus congêneres ainda em vida inteligente e ativa nos chamados países centrais e desenvolvidos. Isso porque a partir da emergência da crise financeira de 2008/9, houve uma recuperação do debate a respeito da importância do setor público como instrumento para superar as dificuldades impostas pela recessão e pela paralisia, ambas provocadas pela ameaça de bancarrota geral do sistema a partir da ameaça de falência de grandes conglomerados bancários e financeiros.
A narrativa amarrada de forma umbilical à busca sistemática e obsessiva de superávit primário e a implementação da austeridade fiscal a qualquer custo ganha uma certa flexibilizada nos Estados Unidos e na União Europeia. A emergência em promover aumento das despesas governamentais como forma de evitar a propagação generalizada da crise abre uma janela para a aceitação menos aterrorizante para eles de um certo grau de déficit público e mesmo de aumento do endividamento dos governos. A urgência por introduzir um certo pragmatismo nos condimentos da ortodoxia até então reinante abre caminho para uma espécie de auto crítica envergonhada – de caráter geral, pessoal e institucional – quanto aos equívocos praticados em nome da austeridade fiscal pelo mundo afora.
No caso brasileiro, no entanto, a blindagem para impedir a chegada de tais ventos renovadores foi quase completa. As instituições de pesquisa vinculadas ao poder do financismo, os órgãos de governo e os grandes meios de comunicação seguiam ignorando o avanço das discussões em andamento no centro do capitalismo global. Praticou-se austericídio à mancheia como nunca dantes, em especial após a promulgação da Emenda Constitucional (EC) nº 95, de 2016, a famosa regra do teto de gastos.
Ora, se a receita do povo da ortodoxia para superar as dificuldades na área fiscal se resumia a cortes pelo lado da despesa, a situação se resolvia sempre pela lógica simplificadora da conta de padaria. Ao olhar para a estrutura e composição do orçamento da União, os tecnocratas do financismo identificavam os itens que mais pesavam nas despesas e aí saíam em busca de soluções tão milagrosas quanto destruidoras.
Precatórios são a desculpa da vez.
Assim foi com a previdência social e a suas reformas sempre focadas na redução de direitos, com o intuito de diminuir os gastos com aposentadorias e pensões. Afinal, os espertinhos “descobriram” que os benefícios pagos pelo INSS conformavam um item expressivo dos gastos totais. De forma semelhante está ocorrendo agora com a Reforma Administrativa, também com intenção de demitir servidores e reduzir seus salários. Do mesmo modo, o argumento de plantão seria a ponderação significativa dos gastos com pessoal no total do orçamento. Porém, nunca passa pelo leque de alternativas verificar o que se passa com isenções e deduções tributárias, bem com as sonegações mais do que conhecidas. Ou então como enfrentar os gastos trilionários com rubricas financeiras, a exemplo do pagamento de juros da dívida pública.
A solução da vez oferecidas pelos “jênios” do Ministério da Economia apresenta agora uma outra conta que pesa na estrutura orçamentária: o pagamento de precatórios. Para quem não acompanha a matéria, até parece que esses caras descobriram a pólvora. Afinal, tudo é muito simples e fácil na manipulação das planilhas de cálculo instaladas em seus computadores de seus gabinetes. Corta aqui, corta ali e as coisas parecem mesmo se ajeitar no final. Porém, alguém deve ter avisado que a saída com os precatórios esbarra em um obstáculo constitucional. Sem problemas, pensou a pessoa encarregada da tesourada. A gente prepara aqui uma PEC e pronto.
Só que a questão é um pouco mais complicada. Segundo a definição do Conselho Nacional de Justiça:
(…) “Precatórios são requisições de pagamento expedidas pelo Judiciário para cobrar de municípios, estados ou da União, assim como de autarquias e fundações, valores devidos após condenação judicial definitiva. O pagamento de precatórios está previsto na Constituição Federal.” (…)
Isso significa que a intenção de Paulo Guedes é transformar as dívidas obrigatórias da União (e vale também para os entes subnacionais – Estados, Distrito Federal e Municípios), consignadas em orçamento após condenação judicial definitiva, em mera intenção de pagamento. É mais do que sabido que o Estado tende a ser péssimo pagador de suas obrigações. Há um enorme retardamento no reconhecimento das dívidas e mesmo nas etapas judiciais seguintes para promover o pagamento. Há processo que duram décadas. Quando finalmente são esgotadas as últimas possibilidades de manobras jurídicas, os valores são inscritos como precatórios nas respectivas peças orçamentárias e o não cumprimento de tais obrigações implica em crime de responsabilidade para o chefe do Poder Executivo.
Pedalada de R$ 90 bilhões.
Paulo Guedes percebeu que no Orçamento Geral da União para 2022 existe um total de R$ 90 bilhões para honrar os compromissos judiciais do governo federal. Assim como tentou fazer com a previdência social ou com os gastos com pessoal, agora seus olhos brilharam para essa rubrica. O texto da EM deixa clara a intenção do governo Bolsonaro:
(…) Isso porque, segundo as informações encaminhadas pelo Poder Judiciário para composição da próxima Lei Orçamentária, cerca de R$90 bilhões deveriam ser direcionados para gastos com sentenças judiciais no Orçamento federal de 2022 (…)
Na sequência da argumentação enviada ao Congresso Nacional, Guedes ensaia um compromisso com a manutenção a ferro e fogo do teto de gastos, mas não consegue enganar mais ninguém com essa falsa narrativa apenas para inglês ver. Segundo ele, os limites da EC 95 e o impacto dos precatórios terminariam por comprometer os gastos em áreas sociais:
(…) Com os limites para o Poder Executivo estabelecidos pelo Novo Regime Fiscal, a inclusão do montante necessário à honra das sentenças judiciais ocupará espaço relevante que poderia ser utilizado para realização de relevantes investimentos, bem como aperfeiçoamentos de programas e ações do Governo Federal e provimento de bens e serviços públicos. (…)
Mas o fato concreto é que a PEC propõe romper o teto de gastos por meio de um subterfúgio malandro – essa sim, uma verdadeira pedalada fiscal. Afinal, se houvesse mesmo um desejo de reconhecer o equívoco do chamado Novo Regime Fiscal, que congela as despesas públicas por longos 20 anos a partir de 2017, bastaria o governo encaminhar uma PEC revogando a EC 95.
Mas não é essa a verdadeira intenção. Lembremo-nos todos que o governo atualmente é dirigido pelo Centrão e pelo fisiologismo no interior do Congresso Nacional. O Senador Ciro Nogueira (PP/PI) é o Ministro Chefe da Casa Civil, tendo por interlocutores Rodrigo Pacheco (DEM/MG) no Senado Federal e Arthur Lira (PP/AL) na Câmara dos Deputados. Assim, o que está em vias de consolidação é a tentativa de institucionalizar a prática de emendas parlamentares secretas e bilionárias dirigidas a alguns parlamentares selecionados, sempre que estejam alinhados com os desejos e interesses do Palácio do Planalto.
A “economia” (sic) com a postergação sine die dos R$ 90 bi dos precatórios, portanto, ofereceria uma porta de saída para Guedes continuar fingindo que se mantém fiel à austeridade fiscal e seu compromisso canino com o teto de gastos, enquanto arranja uma solução contábil e fictícia para programas que Bolsonaro precisa urgentemente oferecer para fortalecer sua intenção de reeleição em outubro próximo. Esse é, por exemplo, o caso da repaginada que deu no Bolsa Família. Um golpe que não engana mais ninguém, nessa manobra esdrúxula de propaganda para “chamar de seu” aquele programa que o mundo todo sabe que tem a marca original de Lula e do PT.
Saiba mais em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia-Politica/A-PEC-dos-precatorios/7/52070
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