Exame da energia, transportes, comunicações, água e saneamento. Circuitos que poderiam beneficiar população e empresas são capturados por grandes corporações. Resultado é a vida infernizada, para alimentar lucros e corromper a política
Por: Ladislau Dowbor
As infraestruturas
A área de produção material que vimos antes se organiza essencialmente em unidades empresariais. São dominantemente de propriedade privada, mas é interessante constatar que também nas experiências socialistas a produção material era organizada em unidades empresariais, ainda que de propriedade social. Juntar a atividade de centenas ou até de milhares de pessoas de maneira organizada, com uma precisa divisão interna de tarefas, e com um objetivo claramente definido, é muito produtivo. Pode parecer óbvio, mas é muito importante, e inovações organizacionais têm sido menos colocadas em evidência do que as inovações tecnológicas.
Diferentemente das unidades de produção já vistas, as infraestruturas consistem essencialmente em redes, sistemas que conectam o conjunto dos agentes produtivos. Trata-se essencialmente das redes de transportes, de comunicações, de energia e de água e saneamento. Esses quatro setores são essenciais para a articulação do conjunto das unidades produtivas. Imagine-se a economia do país sem energia. Houve um tempo em que cada empresa gerava a sua energia, por exemplo, com máquinas a vapor ou geradores. Gigantes empresariais chegaram a construir as suas próprias ferrovias. Mas, na realidade, para que uma economia funcione, as infraestruturas precisam constituir um tipo de rede de sustentação que assegure a fluidez do conjunto do tecido econômico, inclusive articulando as unidades empresariais.
É importante distinguir entre as infraestruturas e os setores de atividade de produção material visto previamente, pois o seu papel é diferente. A eletricidade tem de chegar a cada máquina, a cada quarto dos nossos quase 70 milhões de domicílios, a cada poste de luz. A água tem de chegar a cada torneira, através de sistemas de captação, grandes adutoras, distribuição intermediária final, e depois canalização, tratamento, eventual reutilização, e assim por diante. São imensas teias que cobrem o país, nas diversas modalidades de transporte, nos diversos sistemas de acesso à comunicação, água e energia.
Trata-se aqui, em geral, de sistemas dominantemente públicos, desenvolvidos de maneira planejada para ter coerência sistêmica, e articulados em redes interdependentes, como vemos no caso das interconexões do sistema de energia elétrica. O seu caráter público pode ser constatado na maioria dos países, e em particular nos países onde funcionam melhor. Não por alguma razão ideológica, mas por tratar-se de sistemas de articulação de todo o território, com visão de longo prazo. Regiões atrasadas, onde não renderia instalar um sistema privado de transportes, são justamente as localidades onde devem ser instaladas com prioridade, para tornar os investimentos mais viáveis e evitar desequilíbrios regionais. O setor público poder realizar investimentos deficitários para facilitar a expansão de atividades econômicas diversificadas faz parte da necessária articulação entre o público e o privado. Nada como abrir infraestruturas de transportes numa região economicamente mais fraca para atrair investimentos e dinamizar a economia local
As infraestruturas constituem assim serviços públicos por excelência. Quando são apropriadas por grupos privados, resultam, por exemplo, nos absurdos da prioridade ao transporte individual em cidades como São Paulo, como já vimos, porque não se fez os investimentos de acordo com o interesse público. Aqui as privatizações geram os chamados “custos Brasil”, pois infraestruturas caras ou inadequadas tornam todas as atividades econômicas mais caras, ao aumentar os custos de todos os setores de atividade.
Transportes
Quando olhamos o mapa econômico e demográfico do país, ficamos impressionados com a dimensão costeira dos nossos principais centros. Se excetuarmos a região de Belo Horizonte, constatamos que quase todas as nossas capitais, de Manaus a Porto Alegre, são cidades portuárias, incluindo aqui, obviamente, o eixo São Paulo-Santos. No caso dos transportes de mercadorias, os custos da tonelada por quilômetro são incomparavelmente mais baixos quando se utiliza o transporte por água, sobretudo no caso de produtos de relação valor por tonelada relativamente baixa, como é frequente no Brasil. A solução óbvia, em termos econômicos, consiste em assegurar um sistema bem desenvolvido de transporte por água.
Com os sistemas modernos de contêineres, de terminais portuários especializados, de articulação dos portos com o sistema ferroviário e de tagging eletrônico das cargas, é possível transportar as nossas mercadorias não com custos alguns pontos percentuais mais baixos, mas tipicamente duas ou três vezes mais baratos. O assim chamado transporte de cabotagem, interligação permanente dos diversos portos e regiões com linhas de navios de carga, permitiria, ao baratear as trocas, uma articulação muito mais densa das diversas regiões do país e tornar nossos produtos mais competitivos.
Na visão de um sistema intermodal de infraestruturas de transportes, os portos precisam, por sua vez, ser conectados com grandes regiões do interior, inclusive as mais atrasadas, através de eixos ferroviários, numa malha que assegure não só a conexão das grandes regiões do interior com os centros litorâneos, mas destas regiões entre si. O caminhão e a estrada são, sem dúvida, necessários, mas para carga fracionada e distâncias curtas, redistribuindo, por exemplo, uma carga que chegue a Belo Horizonte por trem para os pequenos centros da região. Utilizar estrada e caminhão para a grande massa de transportes pelo Brasil afora, gastando diesel e asfalto, gera custos muito elevados para os produtores do interior. A soja produzida no Mato Grosso do Sul pode ser competitiva ao sair da fazenda, mas chega a Paranaguá, com o ônus do transporte, muito menos competitiva. Os produtores se recuperam aviltando o que se paga aos trabalhadores e aos caminhoneiros.
Os mesmos leitos ferroviários permitem, por seu turno o transporte de passageiros entre regiões. A China tem atualmente 29 mil quilômetros de trens de grande velocidade, a Europa também já construiu a sua malha básica que conecta praticamente todas as capitais. Os Estados Unidos estão construindo os seus primeiros 700 quilômetros. Com uma boa malha ferroviária, o avião passa a ser utilizado para grandes distâncias, enquanto os centros regionais são conectados por trem com trajetos tipicamente de duas horas. Chega-se ao centro da cidade, a uma estação conectada com o metrô. Pede-se aos passageiros, por exemplo em Paris, para uma viagem internacional para Milão, que cheguem pelo menos cinco minutos antes da partida, e não uma hora antes como no aeroporto, sendo que já gastamos mais de uma hora no trânsito. No trem há acesso à internet e vagão restaurante. Para viagens mais longas, trens noturnos com camas. São sistemas públicos. No caso da China, com eletricidade ainda produzida em grande parte com carvão, é até bastante problemático, pelo impacto climático. Mas para um país como o nosso, com sólida base de energia hidroelétrica, sairia naturalmente muito mais barato para todos e muito melhor para o meio ambiente. E economizaria tempo, que é um recurso não renovável de todos nós, além de dinamizar a indústria de produção de equipamentos.
Não há nada de misterioso nesta visão, amplamente estudada, tanto que já aparece no plano salte (Saúde, Alimentação, Transporte e Energia) de 1948, e no Plano de Metas de Juscelino Kubitschek. Inclusive, como o país dispõe de aço, de uma ampla infraestrutura siderúrgica, metalúrgica e de mecânica pesada, a modernização dos portos, a criação ou dinamização de estaleiros navais, a produção de trilhos e a construção de ferrovias geraria um estímulo para grande parte do parque produtivo do país, como já se constatou nos programas incipientes dos governos Lula e Dilma.
A dimensão do transporte de passageiros nas cidades espanta igualmente pela irracionalidade das opções. As grandes cidades se encontram praticamente paralisadas. O paulistano médio passa duas horas e quarenta minutos do seu dia no trânsito, numa cidade que para, paradoxalmente, por excesso de meios individuais de transporte. A opção pelo transporte individual de passageiros não se deve, conforme vimos, a qualquer estudo de racionalidade de transportes, e sim à apropriação da política pelos interesses articulados das montadoras e das empreiteiras. Quando há uma grande massa de pessoas a transportar, sai incomparavelmente mais barato utilizar transporte de massa. É bom lembrar que o carro particular fica, em média, parado 95% do tempo, e transporta, em média, 1,3 pessoas.
O carro em si não é um problema, quando usado para lazer, compras da família e semelhantes. O absurdo é utilizar o carro para levar milhões de pessoas mais ou menos às mesmas regiões no mesmo horário. Depois esses carros ficam parados dez horas, entulhando as ruas, e enfrenta- -se um novo engarrafamento gigantesco no final do dia. É tão absurdo que parece infantil. E, no entanto, a cidade mais moderna da América Latina, e de nível mais elevado de educação, votou sistematicamente segundo os interesses eleitorais das empreiteiras e das montadoras, cavando túneis e criando elevados e viadutos, como se vários andares de carros fossem alguma solução. São Paulo ostenta os seus ridículos cem quilômetros de metrô. Paris, cidade incomparavelmente menor, tem mais de quatrocentos.
Não é ignorância, tanto assim que as soluções adequadas baseadas no metrô já existem em boa escala desde o início do século passado em muitas cidades. Trata-se da apropriação privada de interesses públicos, através do controle dos Executivos, dos Legislativos e do Judiciário. A solução não está no “mercado”, e muito menos na privatização, mas no resgate da dimensão pública do Estado, tirando os interesses corporativos de dentro dos ministérios, dos Legislativos e dos tribunais, e buscando a tão necessária democratização da mídia, que também vive da publicidade dessas corporações, e não informa. A construção de uma matriz coerente de infraestruturas de transporte no país envolve uma visão planejada, sistêmica e de longo prazo, sustentada na sua execução por vários governos sucessivos. A Europa fez, a China está fazendo, por que não nós?
Melhorar as infraestruturas reduz os custos de todos os setores, gerando as chamadas “economias externas”, ou seja, economias que são realizadas fora da empresa, e reduzem os seus custos. Ter milhões de carros parados, ou andando em primeira e segunda, gastando combustível e gerando doenças respiratórias, é tipicamente uma opção que torna a vida mais cara – e desagradável – para todos. A opção do metrô, além de mais barata, mais rápida e menos cansativa, usa eletricidade, que não gera nem ruído, nem emissões. Tanto para o transporte de pessoas como o de mercadorias, uma política intermodal e integrada de infraestruturas é indispensável. As opções no Brasil, ditadas por empreiteiras, mineradoras e até por interesses dos traders internacionais em commodities, e inclusive interesses de especulação imobiliária nas cidades, nos levou a uma matriz de transportes irracional e de altos custos. Isso prejudica todos os setores e o conjunto da população(1).
Aqui também, ideias simples podem ajudar muito, embasadas não em discursos ideológicos, mas no simples estudo do que melhor funciona em diversos países, para as diversas modalidades e usos de transportes:
• É essencial resgatar a capacidade de planejamento público e de longo prazo no Brasil, em vez de ficar dependendo das propostas elaboradas pelas empreiteiras;
• Desenhar uma matriz intermodal coerente de transportes tanto para o transporte de cargas como para o de passageiros, cada modo dando suporte aos outros;
• Retomar a capacidade de planejamento, como já teve a Emplasa, para a integração racional dos modais de transporte nas diversas regiões metropolitanas do país;
• Incluir o tempo que as populações passam no trânsito como custo, para tornar claras as opções intermodais: em São Paulo 7 milhões de pessoas perdem horas diariamente no trânsito, o que representa um custo de dezenas de milhões de reais ao dia(2);
• Contratar e financiar estudos sobre a otimização de sistemas de transportes com as universidades e centros de pesquisa, gerando uma base informativa mais ampla: as opções de transporte impactam setores muito diferenciados, exigindo estudos interdisciplinares;
• Incluir nos cálculos os efeitos multiplicadores gerados por melhores estradas ou ramais ferroviários conectando, por exemplo, uma região com potencial produtivo, mas relativamente isolada: a melhor conexão torna as regiões mais competitivas, pelo efeito das economias externas que possibilita.
Energia
Em termos de fontes de energia, o Brasil é um país privilegiado, mas em termos de uso é bastante irracional. E está progredindo rapidamente em termos de distribuição. Vejamos primeiro as fontes: a divisão é entre fontes renováveis e não renováveis. As não renováveis representam 54,7% da oferta, sendo 34,4% de petróleo e derivados, 12,5% de gás natural, 5,8% de carvão mineral e derivados, 1,4% de energia nuclear e 0,6% de outras não renováveis. As renováveis representam 45,3% da oferta, sendo 12,6% de energia hidráulica, 8,4% de lenha e carvão vegetal, 17,4% de derivados de cana-de-açúcar e 6,9% de outras renováveis. São dados de 2019, do Balanço Energético Nacional 2020(3). São cifras fortes, veja-se que o Brasil apresenta 45,3% de energia renovável na sua matriz, enquanto a média mundial é de 13,7%.
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/mercadovsdemocracia/dowbor-grandeza-e-tragedia-da-infraestrutura/
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