Por Liszt Vieira / Créditos da foto: (Reprodução)
Mudar o mundo, meu amigo Sancho, não é loucura, não é utopia, é justiça.
Dom Quixote
A civilização do combustível fóssil ameaça a sobrevivência humana no planeta. Produz calor letal, fome pela redução e encarecimento da produção agrícola, destruição das florestas por incêndios, esgotamento da água potável, morte dos oceanos, furacões, inundações, ar irrespirável, pragas, colapso econômico, conflitos climáticos, guerras, crise de refugiados.
Para enfrentar esse grave problema que ameaça no futuro a sobrevivência da humanidade, surgem diversas propostas, das mais brandas até as mais radicais. Há os que afirmam ser necessário baratear o quanto antes as energias verdes. Com energia verde mais barata do que o combustível fóssil, o problema do aquecimento global estaria resolvido. Pelo mecanismo do Mercado de Carbono, um país compra de outro o direito de poluir, mas isso não reduz em nada o volume global de emissões. É uma falsa solução capitalista. Proposta mais séria é a Taxação do Carbono, que não foi nem considerada na última Conferência da ONU sobre o clima, a COP 26. A proposta era taxar o carbono de forma imediata e suficientemente alta para suprimir rapidamente o uso de combustíveis fósseis.
Nesta década será decidido o futuro da humanidade, disse o climatologista Carlos Nobre durante COP-26, realizada na Escócia em novembro passado. “Passar de 1,5° C de elevação de temperatura será terrível. Para evitar que isso aconteça, teríamos que reduzir as emissões em 50% até o fim desta década”. E acrescenta: “O Brasil foi um dos poucos países que registrou aumento de emissões, devido ao desmatamento da Amazônia”.
Os impactos das mudanças climáticas vão reduzir o crescimento econômico, agravar a insegurança alimentar e criar novos focos de pobreza, principalmente em áreas urbanas. As populações mais pobres serão as mais afetadas pelos eventos climáticos extremos, pelos processos de desertificação e perdas de áreas agricultáveis que provocarão a escassez de alimentos e de oferta de água potável, a disseminação de doenças e prejuízos na infraestrutura econômica e social. As mudanças climáticas trariam impactos irreversíveis, se não forem “controladas”, o que supõe medidas impositivas e obrigatórias a serem adotadas no futuro sobre o clima. Há um certo consenso de que o aumento da temperatura global não deve ultrapassar 1,5ºC. Segundo outros, no máximo 2ºC, sob pena de consequências imprevisíveis no que se refere a eventos climáticos extremos.
Em setembro de 2009, um artigo da revista Nature (A safe operating space for humanity – Rockström et alii) afirma que pode estar sob grave ameaça a longa era de estabilidade – conhecida como Holoceno – em que a Terra foi capaz de absorver de forma mais ou menos suave as perturbações internas e externas. Um novo período, o Antropoceno, vem emergindo desde a Revolução Industrial e seu traço característico é a centralidade das ações humanas sobre as mudanças ambientais globais. São também cada vez mais claros os sinais de que a humanidade vem se aproximando perigosamente do que podem ser chamadas “fronteiras planetárias”, entendendo-se estas como os limiares físicos além dos quais pode haver mudanças bruscas e colapso total da capacidade de o ecossistema global suportar as atividades humanas (“Something New Under the Sun”, McNeill 2002). A interferência humana nos ciclos naturais da Terra agravou-se ao longo do século passado e início do século XXI.
Cada vez mais o capitalismo neoliberal é questionado em toda a parte pela sua ação predatória em termos ambientais e opressora em termos sociais. Agora ainda mais, com os problemas colocados pela pandemia. A crise atual obrigou os Governos a colocarem no centro das atenções a questão da saúde pública. Isso enfraqueceu, em alguns lugares, a essência da política econômica neoliberal baseada na proposta da “austeridade” fiscal, um eufemismo usado para justificar e esconder a transferência de recursos públicos da área social para o mercado financeiro.
A tendência mundial após a pandemia é o resgate do papel do Estado em detrimento do reinado absoluto do Mercado. A crise da COVID-19 mudou o discurso de Estado mínimo tradicionalmente adotado por vários economistas liberais. O próprio presidente dos EUA propôs um investimento estatal na economia de 3 trilhões de dólares. O Congresso americano acabou aprovando 1,2 trilhões para investimento do Estado na infraestrutura e tecnologia, principalmente. Isso vai propiciar desenvolvimento e criação de milhões de empregos.
O processo de acumulação de capital concentra renda na mão de poucos e aumenta a desigualdade social, jogando na pobreza e na miséria um número cada vez maior de pessoas. 1% da população mundial é dona de metade da riqueza do planeta. O sistema capitalista concentra riqueza e privilégios nas classes dominantes. Por isso, as propostas anticapitalistas, como o socialismo, não podem limitar-se a tomar o aparelho de Estado sem mudar a natureza do modo de produção que tem que ser radicalmente transformado. A produção econômica, em vez de dirigida pelas leis do mercado visando a lucro, passaria a ser orientada pelo interesse social.
Nessa perspectiva, surgiu, há algum tempo, uma nova utopia, a utopia do ecossocialismo, que critica o mercado capitalista e o Estado socialista burocrático e produtivista, ambos responsáveis por uma industrialização destruidora do meio ambiente. Enquanto o capitalismo, principalmente em sua versão neoliberal, transforma direitos em mercadorias, visando a lucro, o ecossocialismo propõe um projeto democrático, ecológico e libertário (O que é ecossocialismo, Michael Löwy).
O marxismo clássico já havia proposto a ruptura desse mecanismo motriz capitalista que ameaça a sobrevivência da humanidade. Mas o sujeito previsto dessa revolução, o sujeito proletariado, tal como havia sido definido, não produzirá essa ruptura. A revolução russa não fracassou no que se refere ao desenvolvimento das forças produtivas, mas não gerou socialismo. Embora ressaltando sempre a vinculação estreita entre forças produtivas e relações de produção, o marxismo privilegiou as relações de produção (exploração) como alavanca das transformações.
A crise ecológica atual nos coloca o desafio de situar o centro de gravidade do problema nas forças produtivas. Como não foi possível até agora romper as relações capitalistas de produção a partir de um impulso político baseado na contradição trabalho assalariado x capital, chegou-se a um ponto em que a crise ecológica se lança a partir das forças produtivas, isto é, do fundamento da nossa civilização, deslocando a luta de classes tradicional a um segundo plano. Como a luta salarial perdeu aquele sentido existencial, explosivo, do século 19 e como a luta sindical permaneceu encerrada no interior da sociedade burguesa, já não se pode a partir daí fundamentar nenhuma perspectiva socialista (Rudolf Bahro, A Alternativa).
Marx assinalou nos “Grundrisse” que os operários industriais constituem uma classe tendencialmente em desaparecimento. Mas também afirmou que o desdobramento e aguçamento das contradições internas de classe nos países capitalistas do século XIX provocaria não somente a solução proletária geral para os problemas da civilização europeia, mas a solução para a humanidade em geral. E isto não ocorreu.
Na realidade, os escritos políticos e principalmente as análises econômicas de Marx foram em grande medida confirmadas enquanto descrição da realidade (por exemplo: a exploração). Mas as consequências políticas derivadas da análise não se verificaram. Não se realizou uma ruptura revolucionária nos países capitalistas altamente desenvolvidos. A própria revolução russa indica que o aguçamento decisivo das contradições de classe se deslocou para a periferia do sistema capitalista, e as contradições externas passaram a ter peso importante.
Assim, desmoronaram os regimes, sistemas e ideologias que, durante décadas, sustentaram nossas crenças e valores. As armas teóricas de que se valiam os oprimidos para enfrentar a opressão do capital tornaram-se obsoletas. A esquerda e os movimentos populares mergulharam em perplexidade. Já faz algum tempo, os que entendem a democracia como forma de existência social e não apenas como regime político, vinham defendendo a democratização do poder político e econômico, o fortalecimento dos órgãos representativos da sociedade civil, a democratização dos meios de comunicação, a criação de instrumentos de contrapoder e atenção especial à ecologia, questão social que se tornou explosiva no século XXI.
O capitalismo, hoje, estendeu o seu domínio sobre o conjunto da vida econômica, social e cultural do planeta, incorporando-se à subjetividade e ao inconsciente das pessoas. Por isso, não é mais possível fazer-lhe oposição somente “do exterior”, mediante as práticas sindicais e políticas tradicionais. Devemos enfrentar seu domínio na vida cotidiana, nas relações de gênero, raciais, sexuais, nas relações domésticas, de vizinhança, éticas etc. Isso exige articular as lutas econômicas contra a exploração do trabalhador com as lutas identitárias pelos direitos sociais, culturais, difusos, contra o preconceito social que estigmatiza as mulheres, os gays, os negros, os indígenas e as minorias oprimidas em geral.
A crise do mundo capitalista e socialista, a decadência da sociedade patriarcal e a destruição ecológica que ameaça o planeta nos desafiam a buscar novos modos de vida e de pensamento. A utopia do ecossocialismo, ainda em sua infância, é um esforço na direção de uma sociedade socialista libertária, democrática e ecológica.
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