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Autoridades minaram liberdade acadêmica no Brasil em 2021

Principais ameaças vieram de processos judiciais e administrativos movidos por autoridades e órgãos públicos. Padrão difere dos anos anteriores, marcados por ameaças anônimas, ataques verbais e medidas provisórias.

Por: Bruno Lupion

Há uma mudança no perfil dos ataques à liberdade acadêmica no Brasil, que colocam em risco a atividade e a livre expressão de professores e pesquisadores. Em vez de ameaças anônimas, acusações infundadas e medidas provisórias, ganham destaque processos administrativos e judiciais. Esta é uma das conclusões tiradas de um relatório global divulgado nesta quinta-feira (09/12) pela organização Scholars at Risk, sediada em Nova York.

A entidade organiza um banco de dados com registros de ameaças à liberdade acadêmica em todo o mundo. Neste ano, foram incluídos 332 novos ataques ocorridos em 65 países, dos quais sete no Brasil.

A Scholars at Risk afirma estar “profundamente preocupada” com o estado da liberdade acadêmica no Brasil. Segundo o relatório, ações judiciais para punir acadêmicos por suas opiniões e tentativas de reduzir o papel de professores e estudantes na escolha de reitores “representam um perigoso afastamento das tradições e normas democráticas” das universidades brasileiras, “prejudicam a sua capacidade de questionar e compartilhar ideias” e reduzem a possibilidade dessas instituições servirem de espaço para “a expressão livre e desimpedida”.

O declínio da liberdade acadêmica no Brasil também é medido pelo instituto V-DEM, sediado na Suécia, que avalia o estado de diversos valores e instituições democráticas. Segundo um índice elaborado pela entidade, o Brasil manteve um grau muito alto de liberdade acadêmica de 1990 a 2013, quando teve uma leve queda até 2017 e despencou de 2018 em diante.

O índice do V-DEM considera cinco fatores: liberdade de pesquisa e ensino, liberdade de intercâmbio e disseminação acadêmica, autonomia institucional, integridade dos campi e liberdade acadêmica e expressão cultural. Em 2020, último dado disponível, o Brasil pontuava 0,442, sua pior marca desde 1986.

O Brasil tem hoje o quarto pior desempenho da América Latina no índice, atrás somente de Venezuela (0,21), Nicarágua (0,183) e Cuba (0,111). Para efeito de comparação, na Colômbia o índice é de 0,574, no Equador de 0,851 e na Argentina de 0,942.

Mudança no perfil das ameaças

O primeiro caso brasileiro no banco de dados da Scholars at Risk é de setembro de 2018, durante a campanha eleitoral, quando a antropóloga Débora Diniz, professora de direito da Universidade de Brasília, se viu obrigada a deixar o país após meses sofrendo ataques por sua pesquisa e defesa da descriminalização do aborto. No mês seguinte, cartas anônimas foram distribuídas em três universidades públicas com ameaças contra “comunistas” e membros da comunidade LGBT.

Nos primeiros dois anos do governo Bolsonaro, o relatório da entidade registra tentativas do presidente de reduzir a autonomia de universidades e institutos federais. Em dezembro de 2019, Bolsonaro editou uma medida provisória (MP) com novas regras para a escolha de reitores, que alterava a prática de acatar o nome mais votado das listas tríplices de candidatos apresentadas pelas instituições e mudava os critérios da votação interna. A MP não foi aprovada pelo Congresso e perdeu a validade em agosto de 2020.

Em junho de 2020, Bolsonaro editou uma nova MP que autorizava o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, a impor reitores temporários em universidades e institutos federais sem precisar consultar a comunidade acadêmica durante a pandemia. A medida provocou forte reação e foi devolvida dois dias depois pelo então presidente do Senado, Davi Alcolumbre, e em seguida revogada por Bolsonaro.

Weintraub, por sua vez, notabilizou-se por fazer ataques verbais à comunidade acadêmica durante sua gestão. Em novembro de 2019, por exemplo, ele disse, sem apresentar provas, que havia plantações de maconha e produção de metanfetamina em universidades, e que elas eram “madraças [escola muçulmana] de doutrinação”.

Em 2021, saem de cena medidas provisórias, ameaças anônimas e ataques verbais, e entram iniciativas judiciais vinda de autoridades e órgãos públicos, como um ministro do Supremo Tribunal Federal, o procurador-geral da República e a Controladoria-Geral da União (CGU).

Foto mostra pátio interno de universidade, com estudantes.
Scholars at Risk afirma que ameaças prejudicam a capacidade de universidades de “questionar e compartilhar ideias”Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Quais foram os ataques em 2021

Três das sete ameaças à liberdade acadêmica registradas pela Scholars at Risk neste ano no Brasil dizem respeito a Conrado Hübner Mendes, professor de direito constitucional da Universidade de São Paulo (USP), colunista do jornal Folha de S.Paulo uma voz crítica a autoridades do governo e do Judiciário.

Em 15 de maio, o procurador-geral da República, Augusto Aras, protocolou na Comissão de Ética da USP uma representação contra Hübner Mendes, por conta de colunas publicadas e mensagens no Twitter. Em 30 de agosto, a comissão indeferiu e arquivou a representação, por decisão unânime, após o processo ter ficado retido por quatro meses no gabinete do reitor da universidade.

Em 20 de maio, Aras também ajuizou uma queixa-crime na Justiça Federal contra Hübner Mendes, afirmando que o professor estaria imputando a ele o crime de prevaricação, ao dizer que ele deixava de praticar atos inerentes à sua função para beneficiar Bolsonaro. A ação foi rejeitada em agosto por uma juíza de primeira instância da Justiça Federal, que afirmou que não houve ofensa à honra de Aras e que a liberdade de expressão e a imprensa livre são pilares de uma sociedade democrática. Aras recorreu à segunda instância, que ainda não decidiu sobre o tema – o Ministério Público Federal deu parecer favorável a Hübner Mendes pelo arquivamento da ação.

Em 24 de julho, o ministro do STF Nunes Marques enviou um ofício a Aras pedindo a abertura de investigação contra Hübner Mendes. O ministro argumentou que o colunista fez afirmações “falsas e/ou lesivas” à sua honra em uma coluna publicada em abril, no qual o professor abordava a decisão do ministro que liberou a realização de cultos e missas no país em meio a medidas restritivas relacionadas à pandemia de covid-19. Segundo Nunes Marques, o conteúdo da coluna poderia configurar os crimes de calúnia, difamação e injúria. A PGR abriu uma investigação e o inquérito já foi concluído. Cabe agora ao órgão decidir se apresenta denúncia ou não.

O caso de Hübner Mendes chamou atenção no exterior. Em agosto, um grupo de intelectuais de universidades da Alemanha enviou uma carta ao presidente do STF, Luiz Fux, em defesa do professor. No relatório, a Scholars at Risk demonstra preocupação com o uso de “ações legais contra um acadêmico em retaliação pelo exercício não violento do direito à liberdade de expressão”.

O relatório também menciona o caso do epidemiologista e ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas Pedro Hallal. Em 7 de janeiro, ele fez críticas duras a Bolsonaro em um evento no campus por ele não ter escolhido o candidato mais votado da lista tríplice para comandar a instituição. O deputado Bibo Nunes (PSL-RS) pediu à CGU a abertura de um processo disciplinar contra Hallal, o que foi feito. A CGU concluiu que Hallal e outro professor, Eraldo dos Santos Pinheiro, poderiam ser punidos por “manifestação excessiva de menosprezo pela figura de maior autoridade no Poder Executivo Federal, ao qual é subordinado”. O órgão sugeriu a ambos um termo de ajustamento de conduta, que foi assinado por eles, encerrando o procedimento administrativo.

O documento menciona ainda relatos de agressões por forças policiais e detenções contra estudantes que protestavam contra o atual ministro da Educação, Milton Ribeiro, em eventos ocorridos em 12 de maio em Porto Alegre e em 21 de agosto em Nova Odessa (SP).

“Brasil tem tradição universitária muito forte”

Jesse Levine, assessor de advocacy da Scholars at Risk, afirma à DW Brasil que a deterioração da liberdade acadêmica no país é resultado de uma combinação de fatores, como a vilanização da comunidade universitária por lideranças políticas, pressões locais motivadas por um sentimento contrário a universidades e tentativas de fazer instituições de ensino serem “mais amigáveis” ou “controladas” por quem está no poder.

“É impossível determinar um percentual de responsabilidade de um único líder político por esse tipo de pressão, mas é justo dizer que, se não houvesse Bolsonaro ou alguém como ele, seria difícil imaginar a maioria das mudanças que vimos nos últimos três anos [no Brasil]”, diz Levine.

Ele ressalta que o Brasil tem uma tradição universitária “muito forte” e que a comunidade universitária em sua maioria valoriza a liberdade acadêmica, um fator crucial para “reafirma a liberdade acadêmica e a autonomia universitária”.

Para Levine, é importante que universidades em qualquer país tenham iniciativas para difundir valores relacionados à liberdade acadêmica, como esclarecer aos seus membros os seus direitos e apoiar acadêmicos que estão sofrendo ameaças.

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