Alaa Abd el-Fattah está entre um dos 60 mil prisioneiros políticos mais famosos do Egito. Seu último livro, You Have Not Been Yet Defeated, é um balanço da contra-revolução e uma denúncia sobre o autoritarismo e a violência estatal no Oriente Médio.
Por: Nihal El Aasar| Crédito de Foto: (Wikimedia Commons) | Tradução: Gercyane Oliveira
Em janeiro do ano passado, o décimo aniversário da revolução egípcia de 2011 passou sem cerimônias. Uma década depois, 60.000 presos políticos permanecem na prisão, um lembrete de que o atual regime do presidente egípcio Abdel Fattah al-Sisi ainda está aterrorizado com sua memória. Durante a década que se passou desde a revolução, as perspectivas para a esquerda no Egito não foram favoráveis. A repressão generalizada da oposição significou que as vozes críticas contra o regime não foram capazes de se organizar politicamente.
Dentro deste contexto repressivo, Alaa Abd el-Fattah, autor de You Have Not Yet Been Defeated (YHNYBD), tem sido um dos críticos mais persistentes e de maior destaque do Estado autoritário egípcio. No YHNYBD, Alaa Abd el-Fattah tenta defender o legado da revolução contra seus detratores e testemunhar o uso contínuo da violência de seu governo para reprimir a oposição.
Dos 60.000 prisioneiros políticos atualmente sob custódia do Estado egípcio, Alaa Abd el-Fattah, coloquialmente referido como Alaa, é indubitavelmente o mais famoso. Um crítico ferrenho de todos os governos pós-revolucionários do Egito, ele passou a maior parte da última década na prisão. Alaa foi preso pelos três governos sucessivos de Hosni Mubarak, Mohamed Morsi e al-Sisi. Seus confrontos com os governos autoritários do Egito renderam-lhe o apoio de todo o mundo, e no Egito a hashtag #FreeAlaa tem sido uma presença constante nas redes sociais desde 2006.
Historicizando o Alaa
Para compreender a importância de Alaa, é preciso situá-lo dentro do contexto de declínio de mais de meio século da esquerda egípcia. Não é exagero dizer que a esquerda egípcia não se recuperou da derrota do país para Israel em 1967, na Guerra dos Seis Dias. A derrota simbolizou não apenas o fim do pan-arabismo, mas, mais importante, do socialismo árabe.
Após a morte de Gamal Abdel Nasser em 1970, Anwar Sadat, terceiro presidente do Egito, iniciou a política de “porta aberta”, ou Infitah, um projeto que levou o Egito a adotar os princípios do livre mercado e a política externa amigável aos EUA. Este novo realinhamento geopolítico incluiu a assinatura de um tratado de paz com Israel, a adoção dos ajustes estruturais recomendados pelo Fundo Monetário Internacional (FNI) e pelo Banco Mundial (BC) e a construção de laços mais estreitos com a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos.
Esta última mudança resultou na infiltração do wahhabismo no Egito e no fortalecimento da Irmandade Muçulmana, que buscava se opor aos nasseristas e à esquerda egípcia. Independentemente do que se veja como as causas estruturais para este declínio, é indiscutível que, quando Hosni Mubarak chegou ao poder em 1981, a esquerda egípcia estava substancialmente fragmentada.
O projeto político de Mubarak deu continuidade às políticas pró-capitalistas iniciadas por Sadat. Mubarak construiu laços mais fortes entre as elites empresariais egípcias e a classe dominante, mas continuou reprimindo os partidos políticos. Em 25 de janeiro de 2011, o povo egípcio conseguiu derrubar Mubarak após ocupar a Praça Tahrir no Cairo por 18 dias. Quando Mubarak caiu, não existiam partidos populares ou mecanismos democráticos para preencher o vazio.
Enquanto os revolucionários de 2011 experimentaram a manifestação democrática na praça, a Irmandade Muçulmana – o único partido organizado permitido a existir – tomou o poder. Mohamed Morsi foi eleito presidente em junho de 2012, depois de uma eleição apressada e contestada. No verão de 2013, Morsi foi removido em um golpe e os mesmos problemas permaneceram: as forças contra revolucionárias foram capazes de ultrapassar os opositores do regime que, apesar de terem a determinação de enfrentar o Estado, foram incapazes de derrubar as antigas estruturas de poder.
É nestas condições incrivelmente difíceis que Alaa se destacou como um dos críticos mais perspicazes e persistentes do Estado egípcio.
Uma formação radical
Anatureza exclusivamente online da política de Alaa faz sentido uma vez que se leva em consideração a natureza do atual Estado egípcio. Na internet, os militantes têm trabalhado no anonimato, duas armas contra um Estado que rapidamente reprime a oposição. Dentro deste mundo de militância online, Alaa reivindicou para si mesmo como um dos mais perspicazes críticos do Estado egípcio.
Muitas vezes descrito como um “revolucionário digital” por seus apoiadores dentro e fora do Egito em seus esforços para promover o jornalismo cidadão online, o engenheiro de software Alaa fez seu primeiro nome como blogueiro e ativista político. Para toda uma geração de egípcios que atingiu a maioridade na era pós-revolução, Alaa tem sido um emblema da dissidência política. Ele documentou a famosa revolução de janeiro postando vídeos nas redes sociais e blogando sobre a miríade de protestos que ocorreram em seu rescaldo. Apesar de ter sido preso inúmeras vezes antes e depois da revolução, Alaa continuaria escrevendo e compartilhando informações sobre os abusos cometidos pelas mãos do Estado egípcio.
Desde setembro de 2019, Alaa é mantido na ala de segurança máxima no complexo prisional de Tora. Ele está sendo confinado em prisão preventiva sob acusações falsas de pertencer a uma organização ilegal e de divulgar informações falaciosas. A Procuradoria Suprema de Segurança do Estado renova sua detenção de forma rotineira. As condições de sua prisão atual são as piores de suas múltiplas detenções que datam de 2006. Alaa não tem acesso a materiais de leitura, luz solar ou água limpa de forma confiável.
Alaa vem de uma família com uma rica história de militância e dissidência. Seu pai, Ahmed Seif el-Islam, um advogado de direitos humanos, foi preso por cinco anos em 1983 por desacato contra o governo. Sua mãe Laila Soueif é uma militante política, professora de matemática na Universidade do Cairo, e irmã do renomado romancista egípcio Ahdaf Soueif. A irmã de Alaa Mona Seif também é uma ativista política que usa suas redes para apontar as violações dos direitos humanos do governo. É através das postagens de Seif nas redes sociais que os apoiadores de Alaa são capazes de receber atualizações sobre sua condição. Sua outra irmã, Sanaa, é uma cineasta e militante que cumpre atualmente uma pena de 18 meses de prisão.
Os envolvimentos entre a vida familiar e política de Alaa são a fonte da forma profundamente personalizada com que ele escreve e fala sobre resistência. Em uma entrevista de 2006, ele disse:
A palavra militante não tem sentido. Foi inventada como parte de uma grande conspiração para dividir o mundo em grupos dos que se importam e dos que não se importam ou algo assim. Acredito que não existem ativistas e não ativistas, existem apenas atos de ativismo e graus de comprometimento, e nesse sentido, sim, fui criado para ser um ativista. Penso que antes do dia 25 de maio, meu envolvimento político era apenas uma desculpa para passar tempo com minha mãe. Os protestos anti-guerra de 2003 e 2004 foram na verdade uma ótima maneira de ver minha mãe e meu pai compartilhando algo. De alguma forma, o tempo que passamos juntos foi melhor do que nas grandes reuniões familiares.
A maneira de Alaa descrever os acontecimentos políticos é sempre de se situar em relação à sua família. É como se ele visse o próprio protesto político como um assunto de família com o qual não podia se relacionar de maneira desapaixonada.
Documentando a revolução
YHNYBD é uma coleção de ensaios de Alaa, posts em blogs, entrevistas e posts na rede social, reunidos junto com suas declarações públicas ao promotor público. É uma prova de uma vida passada em oposição e, como o título sugere, um apelo contra o desespero. Os escritos da coleção vão desde blogs de prisões, reflexões sobre 2011, declarações de solidariedade com a Palestina e comentários sobre o Estado da tecnologia e da vigilância.
Um número substancial dos ensaios deste livro – originalmente publicado no jornal egípcio de esquerda Mada Masr – foi contrabandeado para fora de sua cela prisional, e traduzido para o inglês por sua família e amigos para ser republicado nesta coleção. Muito poucos dos relatos de 2011 que surgiram nos últimos dez anos capturam a intensidade emocional do momento e a tragédia de seu desdobramento tão perceptivamente como Alaa faz no YHNYBD. Estes ensaios são uma leitura necessária para qualquer pessoa que deseje entender a última década da política egípcia.
Ostensivamente, a coleção parece estar estritamente preocupada com Alaa; entretanto, sua perspectiva serve como uma lente para a vida política contemporânea no Egito. Como o título sugere, YHNYBD é uma tentativa de nos encorajar a olhar além da derrota como uma estrutura para interpretar os acontecimentos da revolução de janeiro:
Eu não sei se a revolução acabou ou não. A revolução é um processo histórico. Quando eu digo derrota, quero dizer no sentido de uma batalha. Mas nós continuaremos existindo, e como continuaremos existindo, continuará havendo outras lutas.
É como uma tentativa de incutir nos leitores a fortaleza e a força para estas lutas futuras que a coleção de Alaa deve ser lida.
Alaa foi uma das primeiras pessoas no Egito a começar a usar o Facebook e o Twitter para o que mais tarde viria a ser conhecido como jornalismo cidadão. Comentários políticos através de artigos no Facebook, declarações ao procurador do Estado e tweets são coletados nesta edição junto com seus artigos mais longos. Estes últimos foram originalmente publicados em jornais egípcios como Al-Shorouk e Mada Masr, assim como em jornais em inglês como The Guardian, antes de serem reimpressos nesta coleção. Os limites entre diário pessoal, declaração oficial e jornalismo são, portanto, difusos no YHNYBD.
YHNYBD é realmente um livro sobre a revolução e suas consequências. Não na forma de um simples registro jornalístico dos acontecimentos, mas uma tentativa de transmitir as paixões e as frustrações que o momento tornou possível. Ao longo dos ensaios arranjados cronologicamente, o leitor tem uma noção de como a voz de Alaa muda à medida que sua prisão continua e o mundo ao seu redor parece ainda mais impenetrável à mudança.
O foco no pessoal, portanto, não é simplesmente uma peculiaridade do estilo de expressão de Alaa; é a prova de que, no Egito, as fronteiras entre o pessoal e o político não são respeitadas pelas autoridades políticas. Não é incomum, por exemplo, que a polícia egípcia pare as pessoas no centro do Cairo e peça para ver suas contas no Facebook.
A memória da Praça Tahrir
APraça Tahrir foi tanto uma experiência coletiva quanto pessoal para Alaa – esta é a tensão central de seu livro. Alaa frequentemente escreve e fala de forma autodepreciativa sobre seu próprio envolvimento pessoal no movimento de oposição do Egito. Por exemplo, em novembro de 2013, ele tweetou, “Déjà vu, estou prestes a me entregar novamente às autoridades no sábado. Minha prisão acontecendo sempre é agora uma piada que corre todo o Egito”.
A relação de Alaa com sua própria história de prisão é complexa. No início dos anos pós-revolução, ele abraçou uma visão um tanto romântica do valor de enfrentar o establishment. Em seu estilo caracteristicamente emotivo, ele escreveu em dezembro de 2011:
Vamos à praça para descobrir que amamos a vida fora dela, e para descobrir que nosso amor pela vida é resistência. Corremos das balas porque amamos a vida, e caminhamos para a prisão porque amamos a liberdade.
Compare esta afirmação, repleta de otimismo, com outra feita por Alaa três anos mais tarde: “O que está acrescentando à opressão que eu sinto é que eu acho que esta prisão não serve para nada. Não é resistência, e não há revolução”.
O filósofo alemão Theodor Adorno disse uma vez que “para um homem que não tem mais uma pátria, escrever torna-se um lugar para se viver”. Alaa é a prova da verdade deste ditame. Não é que ele tenha renunciado de qualquer forma à sua pátria. Ao contrário, o esvaziamento da oposição extraparlamentar ao Estado egípcio após a revolução deixou os radicais sem uma comunidade política. É impossível entender o que é único em Alaa sem reconhecer este fator básico.
Confundir os escritos de Alaa com as reflexões solipsistas seria, portanto, perder o objetivo. Ele está no seu melhor estado quando escreve sobre a brutalidade do Estado egípcio. Em “To Be With the Martyrs, For That Is Far Better”, publicado em outubro de 2011, ele documenta o horrível massacre de Maspero. Trezentos egípcios foram feridos e trinta, na maioria cristãos, foram mortos pela polícia, que ceifou a vida dos manifestantes com porta-aviões blindados perto do prédio do Sindicato de Rádio e Televisão do Egito.
Na época, o incidente foi ignorado pela mídia estatal, que continua a negar o envolvimento dos militares nos assassinatos. O relato de Alaa é arrepiante precisamente porque ele não tenta esconder suas emoções. A perda foi coletiva, mas foi também pessoal. Mina Daniel, um dos camaradas da Praça Tahrir de Alaa, foi morto em Maspero. Pouco depois, Alaa foi preso por seu envolvimento nos acontecimentos. Sua esposa estava grávida de 8 meses na época e deu à luz enquanto ele estava na prisão.
Para Alaa, as lutas internacionais em todo o Sul Global permanecem firmemente no horizonte. A Palestina, em particular, aparece constantemente em seus escritos. Alaa nos lembra o quanto a causa palestina está intimamente ligada ao movimento anti-regime no Egito. Em uma entrevista de março de 2014, Democracy Now!, ele compara as táticas das Forças Armadas israelenses e egípcias:
É quase como se eles estivessem copiando os israelenses. Na verdade, eles arrancam oliveiras e demolem casas. Quando um ataque contra os militares acontece, eles vão e demolem as casas das famílias que estão relacionadas com o povo que acusam do ataque.
Em 2018, o New York Times publicou um artigo expondo operações operadas entre os militares egípcios e israelenses. Tais revelações mostram que a comparação entre os dois regimes não é superficial.
Alaa, não devemos esquecer, é o produto das condições sociais e históricas no Egito que tornam impossível a ação coletiva e a organização política. Isto significa que a resistência toma cada vez mais a forma de atos heróicos singulares. Dentro deste contexto, é compreensível que uma figura como Alaa possa ter subido à tona tanto no Egito quanto no mundo como um símbolo de oposição ao autoritarismo.
Alaa não é de forma alguma ingênuo e reconhece ele mesmo esta tensão. No principal ensaio da coleção, ele escreve:
O que devo fazer com um eu político – arrancado de seu contexto físico e humano comum? Como viver como um símbolo, por mais icônico que seja… Alaa Seif, Alaa Abd el-Fattah foi um papel que desempenhei na esfera pública.
Por mais notável que Alaa seja claramente uma figura pública, a política socialista não pode prosseguir com a lealdade de indivíduos. A tarefa da esquerda no Egito e em todo o mundo deve ser construir um movimento maior que qualquer indivíduo, para criar uma forma de resistência que não dependa do martírio. Não devemos ler este livro para fazer uma exceção ao Alaa. No seu melhor, ele tenta falar com, e trazer à existência, um movimento maior do que ele mesmo.
Temos que lutar para libertar Alaa, libertar Sanaa e libertar todos os outros prisioneiros cujos nomes não foram ouvidos.
Veja em: https://jacobin.com.br/2022/01/a-revolucao-egipcia-ainda-nao-foi-derrotada/
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