Água e ar envenenados. Rios destruídos e, com eles, subsistência de comunidades. Acordos indenizatórios burlados. Repressão. Após explorar carvão por dez anos, mineradora retira-se em “lavagem verde” – mas não apaga rastro de dor
Por: Estacio Valoi* de Maputo
Em dezembro de 2021, a Vale S.A. anunciou um acordo vinculativo com a Vulcan Minerals – uma companhia que é parte do Grupo Jindal – para vender a mina de Moatize e o Corredor Logístico de Nacala por US$ 270 milhões. A transação só poderá ser concretizada após aprovação pelo governo de Moçambique, mas já foi festejado por veículos do mercado financeiro como Forbes e Bloomberg. O anúncio vem dar conclusão a outro feito um ano atrás, quando, após uma década de exploração de carvão em Moçambique, a Vale S.A. apresentou planos de se desfazer da mina de Moatize, que explora em sociedade com a Mitsui Corp.
A alegação da Vale é praticamente uma confissão do impacto que causou: em linguagem business, apresenta planos de “reduzir impactos ambientais” e se tornar “neutra em carbono” até 2050. Naquelas áreas de concessão detidas pela companhia transnacional na escaldante província de Tete, encontramos um problemático padrão de violência, usurpação de terras e morte que contradiz totalmente o que a empresa diz a respeito do seu carvão “de fonte responsável”.
A mina de Moatize foi oficialmente inaugurada em maio de 2011 e produz 11,3 milhões de toneladas de carvão por ano. No seu relatório anual de 2009, a Vale declarou que detinha 1.087 milhões de toneladas de recursos de carvão (tanto provados como prováveis), por todas as suas minas e projetos, dos quais 87% (954 milhões de toneladas) estavam localizados em Moatize. O relatório também apontava para 2046 como a data projetada para esgotamento do projeto.
Entre 2009 e 2010, a Vale reassentou 1.365 famílias – nos reassentamentos de Cateme e 25 de Setembro – para instalar a mina de Moatize. Ao longo do Corredor de Nacala, mais cerca de 2 mil famílias foram reassentadas. A maioria das famílias reassentadas pela Vale sobrevivia de agricultura de subsistência e criação de gado.
Os reassentamentos foram caracterizados por vários problemas já amplamente documentados, incluindo falta de segurança das casas (infraestrutura falha, sistemas elétrico e de esgoto mal feitos), e localização em terras que não permitem a prática da agricultura de subsistência (solos de má qualidade, terras distantes dos mercados e sem acesso à água). Não obstante estes problemas já terem sido denunciados pelas comunidades afetadas e por várias organizações a nível nacional e internacional, a grande maioria não foi resolvida até hoje.
A Polícia da República de Moçambique (PRM), incluindo a sua Unidade de Intervenção Rápida (UIR), tem sido “usada” pela Vale em diversas ocasiões para dispersar e reprimir pessoas que protestam contra a empresa, através de espancamentos e uso de balas de borracha e balas reais. Também têm feito detenções arbitrárias de oleiros, que até hoje esperam por compensação devido à perda dos seus meios de subsistência.
Para piorar ainda mais a situação, jornalistas locais afirmam que têm sido intimidados e ameaçados pelas autoridades locais – incluindo o Presidente do Conselho Municipal de Moatize, Carlos Portimão – para que não reportem sobre estes assuntos. “Se queres reportar sobre a Vale, fala com os seus diretores, não com os locais ou com os oleiros” – dizem os diretores de rádios locais aos seus repórteres.
Para dar espaço à mineração a céu aberto, as pessoas que viviam dentro da área de concessão foram “forçosamente removidas” das suas casas, das pequenas áreas agrícolas ou “machambas” que as alimentavam, dos rios que forneciam água e das margens dos rios onde produziam e comercializavam tijolos de barro para sobreviver. Hoje, “empurrados” para fora da vedação, estas pessoas, juntamente com dezenas de milhares de outros que já viviam nos arredores da mina, enfrentam uma dura realidade: já não há água. Os rios que antes forneciam água para agricultura, criação de gado e outras necessidades básicas, foram desviados para fornecer água à mina, poluídos pela mina, ou simplesmente aterrados por toneladas de areia – uma vergonhosa e descarada violação dos seus direitos humanos. Esses fatos foram amplamente denunciados, por exemplo: aqui e aqui.
Ao contrário do que se poderia pensar, o número de pessoas gravemente afetadas pela Vale vai muito além das famílias reassentadas e dos milhares de famílias que vivem em Bagamoyo, Nhantchere, Primeiro de Maio e Liberdade – os bairros que vivem nos arredores da mina, debaixo de uma permanente nuvem de poeira e o ruído das explosões, cujos habitantes estão sistematicamente doentes devido à poluição causada pela Vale. Os oleiros são um bom exemplo de outro grupo gravemente afetado. Ainda que a Vale tenha compensado alguns grupos de oleiros que foram obrigados a ceder as suas terras para a mineradora, ainda há muitos outros que não foram incluídos nos acordos.
Em 2019, por exemplo, quando a Vale começou a expansão para a Mina Moatize III, a mineradora cortou o acesso das comunidades de Primeiro de Maio, Liberdade e Paiol ao rio Moatize, afetando oleiros e camponeses. Desde então, várias reuniões foram realizadas entre as pessoas afetadas, a Vale e o governo, as quais temos acompanhado. Recentemente, a Vale mudou o discurso e passou a afirmar que não pagará mais compensações a oleiros. Enquanto este processo se vai arrastando, mais de 4 mil oleiros passam por muitas dificuldades para sustentar a si e suas famílias.
Na Província de Tete, com a conivência do governo de Moçambique, centenas de milhares de pessoas estão abandonadas à sua sorte, condenadas a viver num cerco letal de carvão por (pelo menos) 35 anos.
Chegada da Vale e a derrocada das comunidades
Zita, uma viúva de 40 e poucos anos de idade, conta que vivia com o seu marido Refo Agostinho – considerado por muitos o melhor oleiro de Moatize – antes de serem forçados a entregar as suas terras à Vale. Mãe de quatro filhos, o mais novo com oito anos, ela e o seu marido Refo tinham a olaria como fonte principal de rendimento. O dinheiro servia para alimentar os seus quatro filhos, pagar a escola e cobrir outras necessidades. “Todos eles cresceram sustentados com o dinheiro da olaria.”
Em 1993, na altura desempregados, sem ninguém que os pudesse apoiar e já com uma filha por criar (a mais velha), Zita e Refo decidiram que deviam fazer um plano de vida e assim garantir o sustento da sua família. Começaram então com o seu trabalho de olaria e produção de tijolos, na zona do lado do paiol, que conseguia render cerca de 30 mil meticais por mês ou mais, dependendo da época. Pouco depois, tiveram até que contratar mais trabalhadores.
“Primeiro tínhamos cinco trabalhadores, depois dez e depois quinze. O pagamento dependia do trabalho, da produção de cada um. Há quem conseguisse fazer 3 mil tijolos por dia, a custo [preço] de mil meticais ou 900. Com o dinheiro da olaria dava para comprar caril, também construímos a nossa própria casa, compramos carro. Refo também tinha outros negócios: montou moageiras, fazia soldadura e bate-chapa. O nosso carro, púnhamos à disposição dos clientes no transporte de tijolos que compravam aqui. Durante 20 anos desenvolvemos esta atividade”.
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/terraeantropoceno/vale-o-dossie-mocambique/
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