A crítica ao imperialismo perdeu espaço no debate da esquerda internacional a partir da década de 90, a ponto de alguns intelectuais progressistas insinuarem que o conceito esteja ultrapassado. Eles estão errados. O imperialismo continua vivo, e pensá-lo rigorosamente é mais urgente que nunca.
Por: Luís Eduardo Fernandes| Crédito imagem: Poster de Zhou Ruizhuang
“Oimperialismo estadunidense deve ser derrotado”, “o golpe de 2016 serviu aos interesses imperialistas” ou “a China está virando um país imperialista”. São frases frequentemente ouvidas nos espaços políticos e nas redes sociais. De fato, nos últimos anos o interesse por denunciar e estudar as novas formas imperialistas ganhou maior espaço no Brasil. Quem sabe, a conjuntura de ascensão da extrema direita no mundo, golpes políticos em países periféricos e radicalização do neoliberalismo tenha contribuído para esse crescente interesse.
Logo após a queda do muro de Berlim, o economista indiano Prabhat Patnaik realizou uma crítica à esquerda ocidental pelo abandono da categoria “imperialismo”. Patnaik perguntava-se se o fenômeno da chamada “globalização” não seria, na verdade, a expressão mais pura e desenvolvida da dominação imperialista e quão grave era à esquerda, em especial marxista, abandonar o imperialismo como categoria teórica – com consequências desastrosas para a estratégia política.
O economista indiano estava certo. Pouco a pouco, principalmente após as primeiras experiências nesse século de governos populares na América Latina, com graus diferentes de radicalidade no enfrentamento ao neoliberal e ao imperialismo, os movimentos sociais, partidos de esquerda, militantes sindicais e intelectuais progressistas buscam retomar a centralidade da reflexão anti-imperialista. Apesar da contribuição teórica e política inestimável de líderes revolucionários do século XX – como Lênin, Hilferding, Bukharin, Rosa Luxemburgo, Trotsky e outros – assim como as profundas transformações do capitalismo contemporâneo, o imperialismo também não é exatamente o mesmo.
Para além das vulgarizações
Essa saudável retomada, portanto, sem o devido aprofundamento teórico e contato com as lutas populares em curso, precisa se precaver de dois erros comuns, que rondam o imaginário do “senso comum” progressista: 1) o imperialismo se reduziria a uma questão “geopolítica”, e até mesmo a “teorias da conspiração” para explicar o poder concentrado de algumas nações em detrimento de outras; por outro lado, 2) o “economicismo”, que enxergaria no imperialismo apenas um fenômeno econômico vinculado a exportação de capitais dos países mais ricos para os mais pobres e, consequentemente, a exploração dos primeiros sobre os últimos.
Há, certamente, um elemento de verdade nas duas interpretações, por mais unilaterais e simplistas que sejam. No caso da primeira, trata-se da constatação correta no sistema interestatal global: a aguda desigualdade no exercício do poder e das soberanias nacionais entre os países. Por sua vez, a segunda remete a uma leitura limitada da crítica de Lenin ao imperialismo. Um dos principais objetos da crítica madura do revolucionário russo, que procurou captar as múltiplas determinações do fenômeno, relacionando-o com a nova fase da história econômica do capitalismo: a era monopólica.
Em Imperialismo, fase superior do capitalismo encontramos uma análise materialista rigorosa das mudanças, então recentes, no modo de produção capitalista (a consolidação do capitalismo monopolista e o desenvolvimento do capital financeiro) e suas consequências no comportamento e orientação dos Estados capitalistas centrais, nas disputas interestatais (a política imperialista, a partilha do mundo em áreas de influência, divisão centro-periferia etc.) e na dinâmica das classes sociais (oligarquia financeira e aristocracia operária). Ou seja, o imperialismo é um fenômeno mundial que articula tendências no campo econômico, político e militar.
Esse preâmbulo é fundamental para compreendermos o imperialismo como um dos principais elementos da economia política do capitalismo monopolista. O capitalismo, ao contrário de outros modos de produção, depende cada vez mais de sua expansão através do mercado mundial. O desenvolvimento extremamente desigual não é apenas sentido no nível local e nacional, mas também internacionalmente. Essa desigualdade econômica e política se expressa por meio de diversos mecanismos que drenam ou transferem riquezas dos chamados países periféricos para os países centrais.
A reinvenção do sistema imperialista
Em sua época clássica, o imperialismo se materializou na política neocolonialista e na partilha do mundo, de acordo com os interesses das potências industriais. A exportação de capitais sobre-acumulados e a apropriação de riquezas e lucros, originados na periferia, eram legitimadas por mecanismos institucionais extra econômicos do sistema neocolonial. As revoluções na Rússia, China e os movimentos de libertação nacional no sul global, principalmente no pós-1945, impuseram uma derrota parcial ao imperialismo em sua faceta neocolonial.
Essa derrota não foi definitiva. O Império Britânico deu lugar aos EUA na liderança do sistema imperialista. A liderança estadunidense, como bem sintetizou Ellen Wood, moldou o “Império do Capital”. Assim, as desigualdades entre países, no pós-1945, passaram a se legitimar quase exclusivamente através das relações de mercado. O imperialismo, como nos ensinou Harry Magdoff, não é uma matéria de escolha para a sociedade capitalista: é o meio de vida dessa sociedade. A ascensão dos EUA representou a maturidade do desenvolvimento do capitalismo monopolista. No final dos anos de 1970, diante do avanço de diversos movimentos contestatórios internos e da concorrência entre transnacionais estadunidenses, alemãs e japonesas, as lógicas imperialista e capitalista aprofundaram mudanças em suas estratégias e padrões de acumulação.
Além da expansão do complexo industrial-militar e suas centenas de bases em todos os continentes, como uma forma de incorporar parte do excedente econômico sobreacumulado nos EUA e em outras potências, a atrofia dos sistemas democráticos e a hierarquização monetária mediante à hegemonia do dólar foram parte desse remodelamento. Os sistemas financeiros, centralizados no eixo anglo-saxão (Wall Street e London City), passaram a ser os grandes detentores e financiadores de títulos e outros papéis “fictícios”, gerando lucros rápidos e especulativos para a fração dominante da classe capitalista, a oligarquia financeira.
Pensando o imperialismo desde o sul
Para o pensador franco-egípcio Samir Amin, o imperialismo atual, ou tardo-imperialismo, encontra suas bases econômicas na era do “capitalismo monopolista generalizado”. Segundo Amin, essa fase se caracteriza pelo avanço da integração mundial dos mercados monetários e financeiros, assim como pela centralização do poder dos diretores dos monopólios e seus servidores assalariados. O avanço da mundialização e liberalização do capital no advento do neoliberalismo se contrasta com os limites nacionais e locais para a mobilidade da força de trabalho, a fim de garantir maiores taxas de exploração.
A “arbitragem global do trabalho” é uma categoria utilizada pelo autor para compreender como a “mundialização da Lei do valor” é a base sócio-econômica das transferências de riqueza na atual época. Nesse sentido, Amin propõe que uma “tríade”, ou “imperialismo coletivo”, passou a liderar a lógica das transferências de riqueza da periferia para o centro. Liderado pelos EUA, esse “imperialismo coletivo” também teria participação central na Alemanha e no Japão.
Amin destaca que o imperialismo contemporâneo se baseia na defesa de cinco monopólios no mercado mundial: os fluxos financeiros e monetários, as fronteiras tecnológicas, o acesso aos recursos naturais do planeta, os meios de comunicação e as armas de destruição em massa.
A formulação de Amin foi desenvolvida, ao longo de uma longa trajetória política e intelectual, em diálogo com outras escolas que também tentaram realizar críticas ao “novo” imperialismo. A escola do “capitalismo monopolista” ou da Monthly Review, referenciada entre os intelectuais estadunidenses – como Paul Baran, Paul Sweezy, Leo Huberman e Harry Magdoff -, desenvolveu a tese de que a sobreacumulação do excedente criava a necessidade de um departamento na economia dos EUA (gastos militares) e, consequentemente, uma política belicista permanente para impulsionar esses investimentos. A escola das “trocas desiguais”, de Arghiri Emmanuel e Charles Bettlheim, sustentava a natureza desigual do comércio internacional, por meio da transferência de valores dos países periféricos para os países centrais, e influenciou o movimento terceiro mundista, os desenvolvimentistas latino-americanos e até o maoísmo.
Além da reflexão teórica, parte desses intelectuais anti-imperialistas participaram de governos progressistas ou revolucionários na Ásia e na África. Na América Latina, as principais escolas de renovação da crítica ao imperialismo foram a “Teoria Marxista da Dependência” (TMD) e o “marxismo endogenista”. A TMD, desenvolvida por Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos e Vânia Bambirra, se propõe a desvendar a “legalidade específica” do capitalismo latino-americano. Essa legalidade estaria permeada pela dominação imperialista, pela superioridade tecnológica e produtiva das empresas transnacionais, e pelo seu dreno dos lucros e das riquezas locais, obrigando as burguesias locais a superexplorarem para compensar a transferência de riquezas imposta pelos países imperialistas.
O chamado marxismo endogenista, por sua vez, sobretudo a partir da análise do intelectual equatoriano Augustín Cueva, negava a hipótese de leis específicas do capitalismo latino-americano propostas pela TMD. Mais próximo dos partidos comunistas, Cueva sustentou as particularidades históricas do desenvolvimento latino-americano, a relação entre o capitalismo monopolista e o “fascismo” das ditaduras civis-militares e os limites da transição destas ditaduras para as “democracias restritas”.
Essa é apenas uma pequena amostra da densidade e polifonia da crítica da economia política do imperialismo na segunda metade do século XX. Essa crítica é reforçada pelo advento de uma série de movimentos, governos e experiências populares, revolucionárias e anti-imperialistas. Nessa temática, muitas vezes os chamados “marxismo ocidental e oriental” se entrelaçam e dialogam.
Esse resgaste não serve como mera peça de museu para alguns curiosos. A questão crucial é: nesse século, o imperialismo ainda vive? A resposta é: não somente vive, como se torna uma necessidade ainda mais impreterível diante da crise do capitalismo. Uma crise de características sistêmicas, no que diz respeito à supercapitalização, e que envolve tanto queda nas taxas de lucro dos monopólios quanto dificuldade de realização dos capitais sobreacumulados.
Principalmente após 2008, os centros imperialistas, liderados pelo eixo anglo-saxão, dependem cada vez mais de defender e ampliar a dominância aos cinco monopólios assinalados por Samir Amin. As principais características do imperialismo maduro, ou tardio, se revelam como a hegemonia financista, o domínio no interior das cadeias globais de valor-trabalho, a imposição da austeridade e da ideologia fiscalista para a periferia e o fenômeno que chamamos de “ocidentalização periférica”.
O predomínio da atividade financeira, por meio da proeminência do capital monetário e, em especial, do chamado “capital fictício”, liberalizou mercados e mundializou os lucros. No entanto, apesar do caráter transnacional de grande parte das empresas financeiras, os principais mercados estão concentrados nos EUA e na Inglaterra. Tony Northfield, que chegou a trabalhar como executivo na London City, pesquisou, em sua tese de doutorado, a transformação do imperialismo colonial britânico em um novo imperialismo baseado nas finanças, através do domínio de uma série de títulos e mecanismos financeiros concentrados em Londres. Esses títulos e mecanismos, segundo Northfield, são formas mais agressivas de transferência de riquezas das periferias para os centros imperialistas, tendo em vista que, hoje, muitas empresas não financeiras, a partir dos seus departamentos de tesouraria, aplicam e se utilizam desses mecanismos para ampliar seus lucros. O Reino Unido é a segunda praça financeira mais importante no mundo, perdendo apenas para os EUA.
A dominância das fronteiras tecnológicas, patentes e propriedades intelectuais, ao lado do domínio financeiro, forjaram uma nova divisão geográfica econômica imperialista no capitalismo contemporâneo sediadas no norte global, onde estão as empresas transnacionais, detentoras de títulos e recursos financeiros, intelectuais e tecnológicos; a produção industrial passa a se concentrar na Ásia; populosos países exportadores de matérias-primas e commodities, na América Latina e em África; e os paraísos fiscais, onde grande parte dos capitais transferidos encontram alto rendimento.
O domínio imperialista dessas cadeias internacionais de valor-trabalho foi estudado, principalmente, por dois pesquisadores: o britânico, John Smith, e a indonésia, Intan Suwandi. Para eles, a base econômica do imperialismo tardio é a superexploração dos trabalhadores do sul global. Nessa divisão geoeconômica, os países periféricos oferecem para o capital transnacional taxas mais altas de exploração dos trabalhadores e um exército de desempregados que também influencia na maior exploração dos trabalhadores do norte global.
No entanto, essa estrutura imperialista não “anda sozinha”. As relações de poder também são fundamentais para se compreender as “amarras imperialistas”. O casal de economistas indianos, Utsa e Prabhat Patnaik (ambos comunistas), propôs uma interpretação “concreta” do imperialismo no século XXI, relacionando questões como a fome, alto desemprego e as políticas de austeridade com as “amarras” econômicas e institucionais da lógica imperialista.
Para os últimos autores, a dominância do “valor do dinheiro” e da “deflação da renda” seriam dois dos principais instrumentos de imposição dos centros imperiais para os países periféricos. O valor do dinheiro, para os Patnaik, se relaciona com a ascensão da hegemonia do dólar, desvinculado do padrão-ouro depois de 1971. O dólar, para se tornar soberano no sistema monetário internacional, depende de uma série de pré-condições, a fim de gozar de estabilidade e segurança junto às classes capitalistas. Diante do crescimento da oferta por produtos tropicais e da necessidade de estabilidade no “valor dinheiro”, o imperialismo contemporâneo opera uma série de contratendências, gerando deflação da renda na periferia. A deflação na renda garante os baixos preços dos produtos tropicais, a tendência ao subconsumo nas ex-colônias, o grande desemprego e a estagnação econômica.
Esses instrumentos estão longe de ser “puramente econômicos”, são políticos, e dependem da articulação entre classes capitalistas e o amoldamento institucional dos Estados periféricos, com a adoção do fiscalismo e da austeridade como políticas estruturais. A austeridade é sempre uma janela de oportunidades para o capital transnacional: a crença em uma eterna “crise fiscal” do Estado legitima uma série de privatizações e transferências de riquezas públicas para o capital privado.
No campo ideocultural, a intensificação desigual da divisão do trabalho entre o “norte” e “sul global” complexifica a influência imperialista na educação política e moral das classes dominantes periféricas e na “domesticação” de movimentos potencialmente contra-hegemônicos. Além dos organismos multilaterais tradicionais (Banco Mundial, FMI, OEA, etc.), desde fins da década de 1970 há uma complexa rede cosmopolita de financiamentos internacionais, ONG´s, entidades patronais, sindicais e movimentos sociais que atuam formando lideranças e organizações de diferentes espectros políticos, mas que necessariamente assumem o desenvolvimento capitalista como o único horizonte possível para a humanidade.
Esse fenômeno, estudado por autores como James Petras, René Dreifuss e Virgínia Fontes, pode bem ser chamado de de “ocidentalização periférica”, termo utilizado por Carlos Nelson Coutinho, ao descrever como os países metropolitanos influenciam o processo de formação e “democratização restrita” da sociedade civil na periferia, o que não deixa de ser uma expressão ideológica do imperialismo.
O imperialismo pode ser derrotado
Oimperialismo, infelizmente, segue vivo. E , no entanto, como parte do capitalismo, o imperialismo não é eterno. As diversas lutas anti-imperialistas no mundo, como as atuais revoltas de camponeses na Índia, as insurreições populares nas ruas da América Latina, o eficiente combate à pandemia na China e em outros países do “socialismo asiático”, as mobilizações populares contra os crimes ambientais cometidos pelas transnacionais do norte global são alguns exemplos de lutas e conquistas diante o imperialismo tardio.
Essas lutas e conquistas ficam como lição para a esquerda mundial. Qualquer experiência de ascensão popular ao poder tem o desafio de enfrentar as amarras imperiais e seus vínculos internos, para avançar em conquistas por um desenvolvimento social, econômico e ambiental alternativo, soberano e potencialmente socialista.
No Brasil, em especial, cabe o desafio de reconstruir uma cultura política ampla e autêntica de esquerda que tenha o anti-imperialismo e o socialismo como parte dos seus fundamentos. Se no século XX, o anti-imperialismo foi uma das principais expressões nacionais de processos revolucionários de transição socialista, no século XXI a recuperação da crítica radical ao capitalismo e a defesa de uma outra sociedade são cruciais para renovarmos a crítica e a luta contra o imperialismo.
Veja em: https://jacobin.com.br/2022/02/a-atualidade-da-critica-anti-imperialista/
Comente aqui