Apaixonada pela Amazônia, a expedicionária alemã Emília Snethlage fez uma descoberta na região que a tornou conhecida mundo afora no início do século 20. Pouco depois, assumiu a direção do Museu Paraense Emílio Goeldi.
Por: Laís Modelli
Até o século 20, acreditava-se existir uma ligação entre os rios Xingu e Tapajós, na Amazônia, que poderia facilitar a exploração econômica e o povoamento da região, mas o local nunca havia sido cartografado.
O primeiro cientista a realizar a travessia entre os rios para investigar a hipótese foi uma mulher, a ornitóloga alemã Emília Snethlage. Em 1909, ela percorreu por quatro meses, por terra e água, a região do Xingu. Com poucos recursos para a expedição, ela foi guiada por sete indígenas dos povos Xipaya e Kuruaya.
“Foram mais de 26 dias somente para chegar até o Tapajós, muito mais do que o planejado. Passaram fome, e Emília teve malária, mas conseguiram fazer a travessia e comprovar que não existe ligação entre os rios”, diz a historiadora Miriam Junghans, pesquisadora da trajetória da alemã no Brasil. “O local não existia nos mapas até a expedição”, aponta.
A descoberta repercutiu internacionalmente, e o nome da ornitóloga ficou conhecido em instituições científicas do mundo todo. As anotações de viagem também lhe renderam a publicação de um vocabulário comparativo dos Xipaya e Kuruaya.
Nascida na Alemanha em 1868, Snethlage se doutorou em História Natural pela Universidade de Freiburg em 1904. No ano seguinte, se mudou para o Brasil para assumir a vaga de ornitóloga do Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém, no Pará.
Em 1914, Snethlage assumiu o cargo de diretora do Museu e se tornou a primeira mulher a dirigir uma instituição científica na América do Sul.
“Os trabalhos de classificação de espécimes coletados pela Emília não só na Amazônia, mas em várias regiões do Brasil, estão em instituições científicas em todo o mundo”, diz Junghans.
Seu trabalho mais importante costuma ser considerado o Catálogo de Aves Amazônicas, publicado em 1914, em que a cientista descreveu, em mais de 500 páginas, 1.117 espécies da região. Segundo o Museu Goeldi, a obra serviu de referência aos estudiosos da ornitologia brasileira durante 70 anos.
A “área da Emília”
Antes de se tornar ornitóloga, Snethlage foi professora e trabalhava educando crianças em casa, mas, aos 31 anos, ingressou na faculdade de História Natural na Universidade de Berlim. Foi uma das primeiras mulheres na instituição, assim como uma das primeiras na Alemanha a ter o título de doutora.
Quando embarcou para o Brasil rumo à Amazônia, a alemã, então aos 37 anos de idade, nunca havia saído da Europa.
“Emília foi indicada para a vaga no Museu Goeldi quando trabalhava no Museu de História Natural de Berlim como assistente da seção de zoologia. Ela aceitou a indicação porque viu uma possibilidade concreta de construir carreira no Brasil. Na Alemanha, ela provavelmente passaria a vida sendo assistente por ser mulher”, pontua Junghans.
No Museu Goeldi, tornou- se a primeira servidora contratada do estado do Pará. Além de Emília, o diretor do Museu, o respeitado naturalista Emílio Goeldi contratou outras duas mulheres na época.
“Isso foi muito importante por um lado, mas, por outro, o diretor as contratou também porque com o salário de um homem ele pagava pelo trabalho de duas mulheres”, diz a historiadora.
Snethlage rapidamente se destacou como ornitóloga do museu e se fez conhecida tanto dos fazendeiros, seringueiros e demais moradores da região paraense, como dos povos indígenas Xipaya e Kuruaya, que a ajudavam nas expedições.
“Quando ela ia para o trabalho de campo, dormia em fazendas. Sempre de cabelo muito comprido e vestidos, Emília dizia que mantinha a aparência feminina para que as mulheres da região não estranhassem a sua presença, mesmo que para isso fosse mais difícil andar no meio do mato com sua espingarda vestindo uma saia”, descreve a historiadora.
Entre os colegas cientistas, a alemã também era respeitada. “A região do Baixo Amazonas [centro do Pará] era chamada entre os ornitólogos de a ‘área da Emília’”, conta Junghans.
Pelos relatos de viagens, é possível entender por que a ornitóloga se tornou uma figura tão conhecida na região, para além de seu trabalho científico.
“Em uma viagem no rio Iriri, afastada de qualquer cidade, Emília colocou a mão na água quando estava andando de canoa e foi mordida por uma piranha”, narra sua biógrafa. “Um dedo da mão direita inflamou muito com o passar dos dias, e ela começou a pedir para as pessoas que a acompanhavam para cortarem o dedo fora. Como ninguém se dispôs, ela mesma pegou um machado e cortou a falange do dedo.”
Afastada por ser alemã
Snethlage assumiu a direção do Museu Goeldi no ano em que teve início a Primeira Guerra Mundial. Segundo conta sua biografia no arquivo do museu, ela foi afastada do cargo no contexto do conflito.
“Em 1918, em meio à Primeira Guerra Mundial e com o rompimento das relações diplomáticas entre o Brasil e o bloco germânico, a ornitóloga alemã foi afastada pelo governo do Estado do Pará das atividades do museu”, diz trecho de sua biografia.
Apesar de se manter neutro em grande parte do conflito mundial, o Brasil rompeu relações diplomáticas com a Alemanha em 1917, após os alemães afundarem navios brasileiros.
Neste mesmo ano, o presidente Wenceslau Braz sancionou a Lei de Guerra, que cassava as licenças de funcionamento de bancos e companhias de seguros pertencentes a alemães, criando um clima de hostilidade contra os cidadãos germânicos que moravam no Brasil.
“Emília foi retirada do Museu pelo simples fato de ser alemã. Não havia nenhuma prova de que ela tivesse envolvimento político na guerra”, conta Junghans.
Dificuldades por ser mulher
A naturalista foi readmitida em 1919, após o fim da Primeira Guerra, mas enfrentou uma segunda acusação que lhe tiraria definitivamente da direção do Museu: a de ter agido como “mulher” para ajudar os empregados do local.
“Emília foi acusada de desviar para os funcionários os restos de carne que vinham do matadouro municipal para alimentar os animais do museu”, diz Junghans. O Pará passava por um período econômico difícil com o fim do ciclo da borracha.
“Ela [Snethlage] também foi acusada de deixar ‘mulheres de vida fácil’ frequentarem o museu. Foi um momento muito difícil, havia críticas e campanhas contra ela nos jornais”, afirma a historiadora.
Pelas cartas enviadas à família e colegas, Snethlage nunca afirmou ser feminista, mas mostrava uma forte consciência sobre as dificuldades de gênero que enfrentava por ser mulher e cientista.
“Emília assinava artigos científicos como ‘Doutor Snethlage’. Quando recebia correspondências endereçadas como ‘ao doutor’, ‘ao professor’, ela dizia que isso mostrava que estava fazendo um bom trabalho, porque as pessoas achavam que ela era um homem”, conta Junghans.
Apaixonada pela natureza brasileira
Em 1922, Snethlage acabou aceitando um convite do diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro para ser naturalista da instituição e se transferiu para a capital carioca. No novo local de trabalho, passou a fazer expedições científicas em todo o Brasil.
Snethlage nunca se casou nem teve filhos, mas um sobrinho, que seguiu a carreira da tia, chegou a visitá-la no Brasil e fazer viagens pela Amazônia.
“Nas cartas que enviava à família, ela contava com muita fascinação sobre a Amazônia, muito entusiasmada e apaixonada pela natureza do Brasil. A paixão pelo trabalho de campo era uma coisa sempre presente nas cartas durante toda a sua vida, não só no início do trabalho”, descreve Junghans.
Em 1929, aos 61 anos, Snethlage morreu de um ataque cardíaco durante uma expedição por Rondônia.
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