Nos EUA, os jornais que atiçaram a guerra contra o Iraque fabricam agora um conflito na Europa. A invenção de fatos e o silenciamento das vozes pela paz. Os objetivos: ampliar orçamento militar e sabotar aproximação entre Rússia e Europa
Por: Alan MacLeod | Tradução: Maurício Ayer
Em meio a falas duras, de governantes europeus e estadunidenses, um novo estudo da MintPress sobre os meios de comunicação mais influentes dos EUA revela: a imprensa é quem mais exerce pressão para uma guerra contra a Rússia no caso da Ucrânia. Noventa por cento dos recentes artigos de opinião no New York Times, Washington Post e Wall Street Journal sobre o conflito assumem a visão dos “falcões” da política internacional norte-americana, dando lugar a poucas e distantes vozes antiguerra. As colunas de opinião têm expressado um apoio esmagador ao envio de armas e tropas dos EUA para a região. A Rússia tem sido universalmente apresentada como o agressor nesta disputa. A mídia mascara o papel da OTAN na ampliação das tensões e praticamente não menciona a colaboração dos EUA com as facções neonazistas participantes da coalizão que hoje governa a Ucrânia.
Histeria periódica
A mídia e os governos ocidentais expressaram alarme por causa de uma suspeita de concentração de forças militares russas, perto de sua fronteira de quase 2 mil km com a Ucrânia. Há quase 100 mil soldados na região, o que leva o presidente Joe Biden a advertir que se trata do “fato mais importante ocorrido no mundo, em termos de guerra e paz, desde a Segunda Guerra Mundial”.
No entanto, está longe de ser a primeira vez que a mídia entra em pânico por conta de uma suposta invasão russa. O alerta para uma guerra quente na Europa é uma ocorrência quase anual. Em 2015, veículos como a Reuters e o New York Times afirmaram que a Rússia estava reunindo tropas e um forte poder de fogo, incluindo tanques, artilharia e lançadores de foguetes bem na fronteira, e que as cidades da região, em geral modorrentas, estavam borbulhantes com as movimentações.
Em 2016, houve um agravamento ainda maior das relações, com a mídia de todos os setores prevendo que a guerra estava por um triz. O The Guardian noticiou que a Rússia muito em breve teria 330 mil soldados na fronteira. Mas nada aconteceu e a história foi discretamente deixada de lado.
Na a primavera seguinte vieram novos avisos de conflito. O Wall Street Journal afirmou que “dezenas de milhares” de soldados estavam sendo enviados para a fronteira. O New York Times elevou esse número para “até 100 mil”. Alguns meses depois, o U.S. News disse que milhares de tanques estavam se juntando a eles.
No final de 2018, o New York Times e outros meios de comunicação estavam novamente ouriçados por causa de uma nova aglomeração russa, desta vez de 80 mil militares. E na primavera do ano passado, foi amplamente divulgado (por exemplo, pela Reuters e pelo New York Times) que a Rússia havia reunido mais de 100 mil soldados na fronteira da Ucrânia, sinalizando que a guerra era iminente.
Portanto, de acordo com os números que circulam na mídia ocidental, na fronteira da Ucrânia haveria hoje um contingente menor de militares russos que 11 meses atrás. Além disso, do outro lado da fronteira há um exército de cerca de 250 mil soldados ucranianos.
Por isso, é possível perdoar os leitores que acreditarem estar novamente no Dia da Marmota. Mas desta vez há algo diferente: a cobertura sobre o conflito tem sido enorme e domina o noticiário há semanas, como não acontecia antes. A possibilidade de que aconteça a guerra tem assustado a população estadunidense e provocado apelos por um orçamento militar muito maior, além de uma reformulação da política externa para confrontar esta suposta ameaça.
A Rússia tem repetidamente rejeitado todas as alegações de que planeja atacar a Ucrânia, descrevendo-as como “ficção”. “As conversas sobre a próxima guerra são provocadoras por si mesmas. [Os EUA] parecem estar pedindo isso, querendo e esperando que [a guerra] aconteça, como se quisessem fazer suas especulações se tornarem realidade”, disse o embaixador da Rússia nas Nações Unidas, Vassily Nebenzia.
Ainda mais surpreendente é o fato de que o governo ucraniano parece concordar, reconhecendo que qualquer conflito seria devastador tanto para a economia russa quanto para a ucraniana e que até mesmo a movimentação das armas e a perspectiva de tal conflito já está tendo um impacto nos negócios e nos investimentos. “Não vemos nenhum motivo para declarações sobre uma ofensiva em larga escala em nosso país”, disse Oleksiy Danilov, o secretário chefe do Conselho de Segurança e Defesa Nacional da Ucrânia. Em entrevista à BBC, Danilov também revelou sua exasperação com os meios de comunicação, por terem gerado temores e tensões exagerados.
Pesquisa dos grandes jornais dos EUA
Para checar a afirmação de Danilov de que os veículos da mídia ocidental têm sido as vozes mais fortes a favor da guerra, a MintPress analisou três dos mais importantes e influentes veículos estadunidenses: New York Times, Washington Post e Wall Street Journal. Juntos, estes três veículos frequentemente estabelecem a agenda para o resto do sistema de mídia, e pode-se dizer que representam razoavelmente o espectro da mídia corporativa como um todo. Usando o termo de busca “Ucrânia”, no banco de dados global de notícias Factiva, todos os artigos de opinião sobre o conflito publicados nas três semanas anteriores (7 a 28 de janeiro) foram lidos e estudados. O resultado foi um corpus de 91 artigos no total; 15 no Times, 49 no Post e 27 no Journal.
O tom dos três jornais estudados foi claramente na linha dos “falcões”, com cerca de 90% das colunas alinhadas com a mensagem do “endurecimento”. Houve pouca ou nenhuma variação entre os veículos quanto ao tom de suas publicações. “Putin pretende ir além da Ucrânia. Confrontá-lo imediatamente é crucial”, diz a manchete do artigo do ex-general Wesley Clark publicado no Washington Post. O colunista Max Boot afirmou que Putin “definitivamente quer ressuscitar o império soviético”. O colega de Boot no Post, Henry Olsen, lançou um amargo ataque a Biden por não ser suficientemente falcão, descrevendo o presidente como um fraco inapto a liderar. Enquanto isso, o Wall Street Journal aproveitou a oportunidade para denunciar a esquerda estadunidense por se concentrar no inexistente imperialismo dos EUA, quando deveria se unir a Washington para combater o imperialismo nos únicos lugares onde ele ainda existe: Rússia e China… Um pequeno movimento contrário ao incessante rufar de tambores para a guerra veio de vozes como Peter Beinart no Times, Katrina vanden Heuvel no Post, ou de vozes conservadoras mais isolacionistas. No entanto, foram poucas e desarticuladas.
Essencialmente, desenhou-se uma completa unanimidade em mostrar a Rússia (e não a OTAN) como o agressor, com 87 dos 91 artigos apresentando o assunto dessa maneira (quatro artigos não identificaram nenhuma instituição como o agressor). Houve um apoio esmagador tanto ao envio de grandes quantidades daquilo que o governo Biden chamou de “ajuda letal” (ou seja, armas), quanto ao envio de tropas para a região – um movimento que aumentaria rapidamente a ameaça de uma guerra nuclear terminal. Como Bret Stephens escreveu no jornal Times:
A melhor resposta a curto prazo às ameaças de Putin é aquela que o governo Biden está finalmente começando a considerar: o destacamento permanente, em grande número, de forças dos EUA para os Estados da linha de frente da OTAN, da Estônia à Romênia. As remessas de armas para Kiev, que até agora estão sendo medidas em quilos, e não em toneladas, precisam se tornar uma ponte aérea em escala real.
O Washington Post foi muito mais longe, no entanto, com uma coluna exigindo que os EUA enviassem imediatamente cerca de 85 mil soldados para a região, um número que, segundo o jornal, deve ser igualado também por outros membros da OTAN.
Entretanto, o Wall Street Journal foi mais longe do que todos, exigindo que os EUA fossem transformados em um Estado militar global a fim de combater duas guerras mundiais ao mesmo tempo. Com indisfarçável toque de deleite, o colunista Walter Russell Mead afirmou:
Os orçamentos militares terão que crescer à medida que os Estados Unidos aumentarem sua capacidade tanto contra a Rússia quanto contra a China. As fantasias de se retirar de algumas regiões para se concentrar em outras terão de ser colocadas de lado; a Europa, o Oriente Médio, a África subsaariana e a América Latina requerem mais atenção e foco americano e aliado, mesmo que continuemos a nos preparar no Indo-Pacífico. Os Estados Unidos terão que passar menos tempo inspecionando as deficiências morais de potenciais aliados e mais tempo pensando em como podem aprofundar suas relações com eles.
Uma longa história e uma promessa quebrada
Dizem que contexto é tudo. A opinião do governo dos EUA sobre a situação é de que a Rússia é uma influência perenemente desestabilizadora. Nessa linha, alega-se que Putin – que afirmou anteriormente que a Ucrânia “não é um país” – financiou grupos separatistas na região de Donbass, anexou ilegalmente a Crimeia e bombardeia a Ucrânia com propaganda diária. Desde uma guerra na Geórgia até o envio de tropas para o Cazaquistão para reprimir uma revolta recente, a Rússia estaria lutando na retaguarda para impedir a disseminação da democracia. A Rússia também teria assumido uma posição de confronto com os EUA, invadindo as eleições de 2016 e 2020 para ajudar seu candidato preferido.
No entanto, muitos russos poderiam se contrapor a essas alegações e retomar a história no século IX com a Federação Rus-Kieviana, uma nação cuja capital foi Kiev e que deu origem à própria palavra “Rússia”. Então, deveriam avançar rapidamente mil anos, e enfatizar as promessas quebradas do governo dos EUA à URRS. O primeiro governo Bush, assim como os governos da Alemanha Ocidental e da Grã-Bretanha, asseguraram ao líder soviético Mikhail Gorbachev que a OTAN nunca se expandiria “um centímetro” para leste da Alemanha. Foi, naturalmente, uma promessa feita para ser quebrada, e a aliança militar antirrussa avançou em toda a Europa Oriental, agora incluindo três antigas repúblicas soviéticas que fazem fronteira com a Rússia.
Os Estados Unidos têm sido extremamente ativos nos assuntos internos da Ucrânia, como destacou a jornalista russo-estadunidense Yasha Levine, forçando o governo de Kiev a aumentar os preços da gasolina e os impostos sobre o álcool e os cigarros. Também tem bancado ONGs e meios de comunicação locais e ameaçado prender oligarcas ucranianos se novas demandas americanas não forem atendidas.
O papel de Washington na revolta ucraniana de 2013-2014, no entanto, é o exemplo mais claro da interferência norte-americana. Tentando colocar os dois blocos um contra o outro, o presidente ucraniano Viktor Yanukovych negociou, ao mesmo tempo, acordos comerciais com a União Europeia e com a Rússia. No final, escolheu a oferta superior russa. Porém, ao invés de aceitar a derrota, o Ocidente começou imediatamente a organizar um golpe, financiando e apoiando protestos de rua em todo o país. Políticos de altos cargos como o senador John McCain e a secretária de Estado adjunta Victoria Nuland viajaram para a Ucrânia para liderar as manifestações, sendo que Nuland até mesmo distribuiu os famosos biscoitos aos manifestantes na Praça da Independência em Kiev. Yanukovych acabou sendo derrubado em fevereiro de 2014.
Que a revolta ucraniana foi organizada, pelo menos em parte, pelos Estados Unidos não há dúvida. Um áudio vazado de Nuland conversando com o embaixador dos EUA na Ucrânia, Geoffrey Pyatt, mostrou que Washington efetivamente escolheu a dedo o governo sucessor na Ucrânia. “Eu não acho que Klitch deveria entrar no governo. Não acho que seja necessário. Não acho que seja uma boa ideia”, diz Nuland na gravação, referindo-se ao boxeador-político Vitali Klitschko. “Acho que Yats [Arseniy Yatsenyuk] é a pessoa com experiência econômica, experiência de governo”, continuou ela. Os dois também discutiram planos para a implementação do novo governo. Para não deixar dúvida, menos de um mês após o vazamento do áudio, Yatsenyuk tornou-se primeiro-ministro.
Desde 2014, o governo ucraniano tem conduzido uma campanha de privatizações, bem como firmado acordos com a União Europeia que Yanukovych rejeitou anteriormente. Também expulsou agressivamente a língua russa das escolas e da mídia, prendeu políticos da oposição e fechou os meios de comunicação que se opunham ao seu governo. Cerca de um terço dos ucranianos falam russo como sua primeira língua.
Este contexto quase não foi mencionado nos três jornais; mas, quando o foi, geralmente os termos foram favoráveis aos EUA. O Washington Post alegou que o acordo comercial entre Ucrânia e Rússia era uma verdadeira “invasão da Ucrânia” e representava apenas o esforço de Putin de “subornar a Ucrânia com uma oferta de US$ 15 bilhões em empréstimos e preços mais baixos para o gás”. O Wall Street Journal difamou Yanukovych como sendo tão somente um “fantoche de Putin”. Enquanto isso, o New York Times aplaudiu o que chamou de “processo de ucranização” em que “a língua russa está sendo atirada para fora das escolas e a televisão russa para fora do espaço da mídia”. O Times atualmente acusa a China de fazer algo muito semelhante em sua província ocidental de Xinjiang, denunciando o processo como um “genocídio”.
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/invasao-da-ucrania-a-fabricacao-de-um-mito/
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