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Estado planejador: o singular caso chinês

Em poucas décadas, país superou humilhação, erradicou miséria e virou potência. Fugiu dos dogmas neoliberais e do “socialismo real”. Pôs Estado no centro da vida social. Enfrenta múltiplas contradições — mas não entrega seu futuro aos mercados

Por: Isabela Nogueira

Ao longo dos últimos 40 anos, a China eliminou a pobreza extrema, rompeu com a heterogeneidade estrutural, baniu com qualquer possibilidade de se tornar uma economia dependente ou de enclave, e subiu efetivamente nas cadeias globais de valor, representando o principal desafio econômico e estratégico aos Estados Unidos. Por de trás disso, há um projeto autônomo de desenvolvimento nacional encabeçado pelo Partido Comunista Chinês e que levou ao surgimento de um Estado planejador, regulador, provedor, investidor, empreendedor e vigilante. Historicamente, o desenvolvimento sob o capitalismo jamais prescinde destas funções do Estado nas suas trajetórias de rápida ascensão e mudança estrutural continuada. As condições para a emergência desta forma-Estado foram historicamente construídas através de lutas de classes e de lutas anti-imperialistas, ambas profundamente marcadas pelo nacionalismo.

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Nenhuma outra grande economia do mundo exerce controle de capitais tão intensos como a China o faz. Nenhum outro grande país além da China é sede de tantas empresas estatais. Nenhuma outra economia mantém o sistema financeiro majoritariamente estatal e com enorme centralidade para seus três bancos de desenvolvimento. Nenhum outro grande país dá tanta importância aos planos quinquenais e a diversos outros planos setoriais de desenvolvimento. Nenhuma outra economia do mundo cresceu tanto nos últimos 40 anos quanto a China.

O Estado na China planeja, regula, estabiliza, investe, empreende, provê e vigia. Ele exerce sua presença de maneira massiva, e mesmo a literatura econômica mais ortodoxa se vê obrigada a discutir seu insistente “retorno”1 – ainda que ele nunca tenha nem sequer ensaiado se retirar. Essa forma-Estado poderosa emergiu na China nos anos 1980 encrustada em uma revolução socialista (1949) e amalgamada em um nacionalismo que fora fermentado por cem anos durante o período de humilhação e de esfacelamento do tecido social que caracterizou o choque com o imperialismo (da primeira Guerra do Ópio, em 1839, até a revolução). Isso significa que quando falamos em Estado na China, falamos na verdade do Partido Comunista Chinês. E que quando falamos em desenvolvimento, falamos de uma visão da modernização com um sentido ontológico de Estado-Nação frente a um sistema internacional percebido como uma ameaça permanente.

Esta forma-Estado que me dedico a olhar aqui emerge, nos anos 1980, em paralelo com a hegemonia do padrão monetário do dólar flexível, com a financeirização do restante do mundo, e com o surgimento das cadeias globais de valor, inicialmente comandadas por empresas estadunidenses, europeias e japonesas. A China se inseriu nestas cadeias globais com um projeto de desenvolvimento autônomo e, ao mesmo tempo, com uma financeirização particular da sua economia. Emergiu daí um capitalismo de Estado com características chinesas que é hoje o maior desafio estratégico à hegemonia dos Estados Unidos desde o final da Guerra Fria.

Como pôde a China se desenvolver tão rápido e escapar das armadilhas que caracterizam o subdesenvolvimento de outros grandes países, seja Brasil, Índia, África do Sul ou Rússia? Como o país erradicou a pobreza extrema em 2020 e, ao mesmo tempo, desafiou tecnologicamente os EUA, a Europa e o Japão em vários segmentos de fronteira, desde o 5G e inteligência artificial passando pelas energias renováveis e pelos trens de alta velocidade? Vou explorar nas seções seguintes as várias funções que o Estado ocupou e continua ocupando na trajetória de desenvolvimento chinesa, desde o Estado planejador e regulador até o Estado investidor, empreendedor e vigilante. E termino me perguntando: quais os maiores desafios colocados a esta forma-Estado e a esta trajetória de desenvolvimento neste pós-pandemia?

Estado na China nos anos 1980: rompendo com a heterogeneidade estrutural

No princípio era o campo, e é por lá que as reformas começaram na China. A importância das reformas nas zonas rurais e o tratamento dado à questão agrária não podem ser subestimados na trajetória de desenvolvimento chinesa. Afinal, ao estabelecer um regime de uso da terra descentralizado, ao oferecer estímulos corretos de preços, ao fazer a produtividade agrícola explodir, e ao promover a industrialização rural, o Estado na China foi responsável pela mais rápida redução na pobreza na história da humanidade. Foram 400 milhões de pobres a menos no curtíssimo espaço de seis anos (1979-1985). Ao começar as transformações estruturais pela base da pirâmide social, o Estado criou um tecido socioeconômico que permitiu a penetração dos impulsos dinâmicos da industrialização pelo país inteiro.

A primeira reforma rural teve início em 1978 e implicou na criação de um regime de uso da terra descentralizado e baseado em pequenos lotes, no qual a propriedade é, até hoje, dos governos locais e o uso da terra é dado às famílias via contratos de cerca de 30 anos. Chamado de Sistema de Responsabilidade Familiar, este regime de uso da terra implicou uma estrutura descentralizada de pequenos lotes. Mesmo com o relativo aumento no tamanho dos lotes na última década em função da redução da população rural e da penetração do agronegócio no campo, o sistema continua vigorando e a terra continua sendo desconcentrada na China. O caso chinês, portanto, desafia o discurso de modernização conservadora de que somente a agricultura em larga escala é eficiente. Sob esse sistema, o país se tornou autossuficiente em arroz, milho e trigo, e a produtividade total dos fatores na agricultura cresceu a uma média de 2,86% ao ano, entre 1978 e 2013, o que representa mais de três vezes a média global de 0,95% e acima da média brasileira2.

A segunda reforma rural veio por meio da intervenção do Estado nos preços agrícolas. Os termos de troca favoráveis aos produtos agrícolas e os programas massivos de compras públicas, que asseguravam que todos os grãos produzidos seriam comprados pelo governo, deram forte impulso ao crescimento da renda dos camponeses, contribuindo para diminuir o gap urbano-rural3. Em conjunto com a reforma da terra, os estímulos de preço e as compras públicas promoveram uma explosão de produtividade agrícola nos anos 1980 em um país que estava muito próximo à insegurança alimentar. Conforme resume Oi (2008), não foram os livres mercados preconizados pelo Consenso de Washington que garantiram o impulso extraordinário na produção agrícola nos anos iniciais da reforma, mas a regulação estatal (compras públicas) que garantia a compra de todos os grãos produzidos a um preço alto.

A terceira grande reforma no campo deu-se por meio da promoção da industrialização rural via empresas coletivas de vilas e municípios – Town-Village Enterprises (TVEs). A industrialização rural ganhou impulso com a oferta de crédito abundante oferecida pelos bancos comerciais públicos e cooperativas rurais de crédito e por conta de um mercado doméstico crescente e até então protegido da concorrência estrangeira. Durante a década de 1980, 40% do capital necessário para a abertura de uma nova TVE veio do setor financeiro público4. As TVEs especializaram-se na produção de bens de consumo que seriam consumidos pela classe camponesa em ascensão e rapidamente tornaram-se fornecedoras de insumos para a indústria exportadora e mais pujante da costa.

A grande inovação das TVEs do ponto de vista do desenvolvimento esteve na sua capacidade de industrializar as zonas rurais. Graças a isso, elas reduziram a heterogeneidade estrutural de saída ao transformar a industrialização num fenômeno massivo, descentralizado e efetivamente nacional. É claro que as taxas de industrialização serão muito mais rápidas nas cidades costeiras e nas zonas econômicas especiais tomadas de multinacionais a partir dos anos 1990 (a seguir). Mas as TVEs, em conjunto com a diminuição da pobreza no campo, fizeram com que os impulsos dinâmicos da industrialização da costa efetivamente se endogenizassem. Isso é um dos elementos explicativos de por que a China não se transformou numa economia de enclave ou dependente mesmo com a penetração massiva do investimento estrangeiro na costa nos anos 1990.

Em resumo, o sucesso da trajetória de desenvolvimento da China, em contraste com grandes países como a Índia, Brasil ou África do Sul do ponto de vista do tratamento da questão agrária, é marcante ao ter eliminado a possibilidade de uma massa de população rural sem-terra ou miserável no campo. A distribuição igualitária e universal da terra entre a população rural tornou-se a principal forma de proteção social e substituiu o antigo sistema de comunas agrícolas vigente durante o maoísmo. Ao mesmo tempo, a industrialização rural criou uma malha de produção industrial intensiva em mão de obra em todos os cantos do país, absorvendo trabalhadores que saíam da agricultura e endogenizando os impulsos dinâmicos da industrialização. As reformas deram certo do ponto de vista da trajetória de desenvolvimento porque elas começaram por baixo na pirâmide social chinesa.

Estado na China nos anos 1990: disciplinando o IED e posicionando as estatais

Se os anos 1980 explicam de que maneira a China lança as bases para o rompimento com a heterogeneidade estrutural, a década seguinte é emblemática ao explicitar as estratégias do Partido Comunista Chinês para evitar que o país se transformasse em uma economia de enclave. Afinal, com a abertura inicial para a entrada de investimento estrangeiro direto (IED) em algumas poucas cidades costeiras, havia o enorme risco de criação de zonas de mera montagem de produtos feitos por multinacionais que se aproveitassem da mão de obra barata chinesa e extraíssem excedente de maneira totalmente descolada do restante da economia. No entanto, muito ao contrário, a China se transformou em um caso emblemático de uso do IED como ferramenta de catch-up e emparelhamento tecnológico com países centrais. Como isso foi possível?

Ao contrário do argumento da literatura ortodoxa, o Estado chinês não se abriu ao capital estrangeiro e não aceitou o receituário liberal de que a simples desregulamentação para atrair IED iria contribuir para o seu crescimento econômico. Ao contrário, o Estado chinês empenhou-se sistematicamente em disciplinar esse capital. Dentre as várias obrigações impostas ao IED nas décadas de 1990 e 2000 estiveram: obrigação para ter parceiro local (via formação de joint-venture com empresa estatal chinesa), acordos de transferência de tecnologia, regras de conteúdo local, definição geográfica da localização das fábricas e quotas para exportação e geração de empregos5.

A obrigatoriedade para ter parceiro local estava prevista em leis específicas sobre a necessidade de regulação do IED e se dava via um sistema de aprovação administrativa envolvendo diferentes esferas do governo. Quem definia qual seria a empresa estatal parceira era, invariavelmente, alguma instância (local ou central) do próprio governo chinês. A exigência para formação de joint-venture foi flexibilizada na virada do século na maioria dos setores, mas continua sendo comum a exigência de que a firma 100% estrangeira estabeleça um centro de treinamento, P&D ou laboratório em uma das universidades chinesas ou institutos de pesquisa. Além disso, o Catálogo para Guiar Investimentos Estrangeiros, um documento publicado periodicamente e que determina quais indústrias têm IED “estimulado”, “restringido” ou “proibido”, continua regulando o capital externo de perto. Os investidores que quiserem gozar dos diferentes benefícios oferecidos às indústrias “estimuladas” (atualmente apenas de alta tecnologia e consideradas estratégicas), como deduções tarifárias e vantagens fiscais, devem se enquadrar nas exigências.

Também a previsão de transferência tecnológica deveria constar formalmente nos contratos de entrada de IED. A absorção implicou não apenas a capacidade do país de adquirir tecnologia estrangeira, mas essencialmente de difundi-la internamente, utilizando-a como base para criação de novas tecnologias e processos. Por fim, a localização geográfica das novas fábricas foi um instrumento muito usado para promoção do desenvolvimento regional chinês. Há muitos casos estilizados de multinacionais que foram “convidadas” a se instalar em regiões remotas da China acompanhando o plano de desenvolvimento regional do momento6.

Mas o capital externo foi apenas uma das vertentes da dinâmica de acumulação acelerada da China na década de 1990. Uma segunda vertente continua até hoje centrada no papel das empresas estatais, as quais se mantiveram estrategicamente posicionadas nos nódulos da acumulação de capital. A partir de 1997, uma fatia importante das empresas estatais e coletivas foi privatizada, abrindo espaço para o surgimento de uma burguesia nacional encrustada nas estruturas do Partido7. Ao mesmo tempo em que foram reduzidas em número e em escopo de atuação, livrando-se das suas obrigações de seguridade social que vinham do maoísmo8, as empresas estatais se concentraram nos setores-chave que afetam tanto a taxa quanto a direção do investimento. Esses são os casos dos setores de siderurgia, petroquímica, energia, ferrovia, telecomunicações e sistema bancário9.

As empresas estatais de larga escala e os bancos estatais têm sido utilizados como principais agentes econômicos que moldam a forma e o ritmo da estratégia de acumulação e de inovação tecnológica na China. As mudanças estruturais são necessariamente processos complexos e com múltiplos determinantes, incluindo regimes de produtividade, demanda e um arcabouço institucional subjacente. As empresas estatais chinesas estão em uma posição-chave para direcionar as diretrizes do Estado sobre esses múltiplos determinantes, especialmente porque estão localizadas nos eixos críticos de acumulação de capital, como as indústrias de grande escala e de capital intensivo. Nesse sentido, a propriedade pública segue sendo o eixo essencial para a acumulação de capital na China.

 

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