Duas tendências sobressaem: melancolia pedagógica e compulsão modernizadora. Mas saída pode estar em superar o ensino monótono e padronizado — e apostar em novas subjetividades, no Comum e na agenda democrática
Por: Roberto Rafael Dias da Silva
Recorrentemente, no Brasil, somos convidados a pensar sobre o futuro da escola ou sobre a escola do futuro, questões que adquiriram maior relevância no contexto da pandemia de covid-19. A esperança de que sairíamos transformados da condição pandêmica abriu as portas para novas análises sobre a educação de nosso país. Todavia, particularmente no campo progressista com que escolhemos dialogar, o debate configurou-se por meio de duas atitudes intelectuais recorrentes: a melancolia pedagógica e a compulsão modernizadora. Com essas duas figuras analíticas tentamos mapear os dois posicionamentos predominantes no estudo da escolarização contemporânea em nosso país. De um lado, aqueles que advogam pela defesa da escola, dos conhecimentos e experiências relevantes, idealizados como um direito no projeto de escola erigido na Modernidade. De outro, os autores que assumem posicionamentos voltados para o futuro e que perceberam na pandemia a oportunidade de acelerar a modernização, pela via da combinação entre metodologias inovadoras e tecnologias digitais.
Consideramos este debate, que se dá no interior do campo progressista, como fundamental para mobilizar as nossas reflexões sobre a escolarização de nosso país. Como é de nosso conhecimento, por conta de nossas eleições presenciais, o ano de 2022 deverá marcar uma ampla discussão pública sobre as nossas perspectivas de futuro. Em outras palavras, a possibilidade de uma retomada da agenda progressista, cada vez mais possível, coloca-nos frente a uma ampla e exigente reflexão sobre os caminhos que escolheremos percorrer enquanto nação. Vale destacar, no entanto, que as movimentações políticas ainda não estão acompanhadas de definições ou rotas suficientemente precisas no campo educacional, o que nos encaminha a abrir novas frentes de debate sobre a escola democrática que desejamos (re)construir. Distanciando-nos das duas posições ainda predominantes no campo e considerando o contexto pandêmico que ainda estamos vivenciando, gostaríamos de oferecer uma breve reflexão – quiçá, apontamentos para uma agenda política – abordando os sentidos e as possibilidades democratizadoras. Objetivamente, vamos interrogar: quais sentidos de democratização da escola pública serão mobilizados no interior de nossa agenda política em 2022? Para uma resposta bastante preliminar – e aberta para outras interlocuções – iremos sistematizar nossos posicionamentos nos quatro tópicos a seguir.
1. Ainda concordamos que a escolarização ocupa um papel fundamental para a construção de uma sociedade democrática. Mesmo que nem sempre compreendamos a atualidade deste projeto, em especial em um contexto em que ocorre um declínio do potencial público da escola, ainda encontramos consenso acerca deste ponto, o que nos parece importante para compilarmos, estrategicamente, uma agenda comum. Como nos ensinou Jacques Rancière, no livro O ódio à democracia, ainda somos assombrados pelas críticas aos limites do individualismo democrático, ou mesmo aos dilemas advindos do consumo como princípio de inteligibilidade para explicar nossas relações com as instituições. No entanto, no campo educacional, este ódio à democracia adquire contornos específicos. A separação entre educação e instrução, resguardando para a escola a transmissão de conhecimentos e a preparação dos cidadãos do futuro é um destes contornos. Outro, por sua vez, encontra-se na crítica ao individualismo – nos corpos e nas subjetividades dos estudantes – que é percebido como um perigo para a civilização. Por isso, o primeiro aspecto que precisamos estabelecer encontra-se nos caminhos que percorreremos e nos propósitos que nos impulsionarão para a construção de uma escola progressista. O campo político em que nos situamos precisa manter um debate permanente sobre esta questão, reconhecendo que as respostas que produzimos nas últimas duas décadas carecem de atualização e/ou de reconstrução.
2. Caso optemos pelo conflitivo caminho de construção das escolas democráticas, pelo caminho de nossas proposições, outro aspecto que precisamos colocar sob discussão diz respeito à necessidade de uma renovação de nossas práticas pedagógicas. Pesquisadores e pesquisadoras experientes na área de Didática, há alguns anos, têm nos alertado que a escola deixou de ser um objeto nobre nos estudos educacionais brasileiros. Formamos uma geração de intelectuais bastante hábeis para montar e desmontar políticas ou programas educacionais e, com isso, ao longo do século XX conseguimos construir as pautas democratizadoras de nossas políticas. Porém, torna-se importante reconhecer que um processo de renovação pedagógica requer uma abordagem mais sensível aos cotidianos escolares – seus modos de ensinar e de aprender. Reconstruir a escola democrática em nosso país, após a intensificação da agenda neoconservadora na última década, irá nos exigir uma gramática mais plural na geração de alternativas viáveis. Temos defendido que a inovação educativa que almejamos demandará uma releitura de nossos clássicos e, como aprendi com a leitura dos textos do professor Jordi Collet (2020), torna-se importante a ruptura com a gramática escolar una, substituindo-a por uma gramática mais plural voltada ao comum.
3. Considerando o caminho de colocar em debate os sentidos de democratização, acompanhado por um olhar atento para a gramática transformadora que emerge das próprias escolas, entendemos que o próximo passo seja refletir sobre as aprendizagens que desejamos tornar efetivas. Todos sabemos que, em todo o mundo, há esforços para fomentar a melhoria das escolas. Tais esforços, promovidos por instituições interessadas neste objetivo, conduziram-nos a uma obsessão por resultados educacionais e pelos indicadores de rendimento que lhes são correlatos. O professor Andy Hargreaves, há bastante tempo, denunciava como esta obsessão por resultados impunha-nos uma “monotonia deprimente e debilitadora”. Esses desenhos formativos, materializados em currículos nacionalmente centralizados (como a BNCC), geralmente fracassam em suas intenções e deixam para trás “um currículo estéril baseado em exames”. Esses estudos, muitos deles realizados também em nosso país, são muito explícitos com relação as nossas necessidades de redefinição daquilo que nomeamos como aprendizagem, defendendo aprendizagens mais duradouras, mais profundas, mais abertas e mais justas. Esta, aliás, é a questão que os debates em torno da BNCC inviabilizaram em seus procedimentos políticos: quais aprendizagens desejamos para a escola do século XXI?
4. Por fim, procurando manter essa agenda aberta e convidando os colegas do campo progressista a este diálogo, é muito importante que possamos refletir coletivamente sobre as políticas e práticas educativas que estamos ofertando sobre os temas emergentes neste início de século. Os debates em torno da escola cidadã, atualizando os estudos de Paulo Freire e outras vertentes do campo crítico, foram fundamentais no debate acadêmico desde o final da década de 1970. Entretanto, assessorando políticas de juventude e percebendo as atuais bandeiras dos movimentos estudantis, podemos sinalizar o advento de novas temáticas: cidadania digital, crise climática, migrações internacionais, diferenças e diversidades, novas morfologias do trabalho, pandemias e saúde coletiva, tecnologias 4.0, leitura crítica das mídias e críticas ao negacionismo científico, dentre outras. A efetivação de uma agenda democrática, horizontalmente construída com nossos estudantes, docentes e comunidades educativas, precisará enfrentar temáticas como essas. Ainda poderíamos acrescentar as lutas por novas formas de vida, outros modos de associação ou mesmo as formas econômicas pós-capitalistas.
Ao longo deste texto pretendemos apresentar um esboço das questões que julgamos mais urgentes para a composição de nossa agenda democratizadora para a escola do século XXI. À medida em que o cenário apresenta-se como favorável e distanciando-nos da possibilidade de fabricar posicionamentos padronizados, desejamos lançar questões que as novas políticas progressistas precisam colocar na ordem do dia: a) como fortaleceremos as políticas educacionais apostando nas novas subjetividades democráticas que estão emergindo; b) como desenharemos uma nova escola, renovada em seus propósitos e em suas práticas, com relações mais horizontais e dirigida ao comum; c) como trabalharemos para construir novos sentidos para a aprendizagem, ultrapassando a monotonia das padronizações; d) como incorporaremos em nossos currículos escolares as grandes temáticas demandadas pelos modos de vida democráticos deste início de século. Em linhas gerais, nosso argumento é que precisamos continuar atuando na desmontagem política da escola neoliberal e neoconservadora, ainda predominante, mas seguir construindo novos sentidos sobre a escolarização junto com as comunidades educativas. O campo progressista não pode abdicar da tarefa de pensar a escola como um objeto nobre!
Veja em: https://outraspalavras.net/descolonizacoes/poronde-reconstruir-a-educacao-brasileira/
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