O lançamento do livro de Maria Muniz é um acontecimento de grande significado, no Brasil e na América Latina, às lutas anticoloniais, antirracistas e de afirmação dos povos indígenas – além de representar a poderosa voz de uma mulher indígena que se insurgem contra o capitalismo.
Por: José Jorge de Carvalho| Foto de Dayanne Pereira / divulgação. Maya Pataxó Hãhãhãe
Resenha do livro A Escola da Reconquista, de Mayá Maria Muniz Andrade Ribeiro (Teia dos Povos, janeiro de 2022).
Conheci a mestra Maria Muniz em 2014 em Itabuna, na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), durante o seminário preparatório para a abertura do projeto Encontro de Saberes, destinado a convidar os mestres e mestras dos povos tradicionais para que atuem como docentes nas universidades. Naquela ocasião, ainda bem no início do projeto, Maria cantou para mim um canto sagrado, invocando os encantados da floresta para que me dessem força nessa jornada. Procuro carregar a força deste canto até hoje.
Com a implementação do Encontro de Saberes na UFSB, Mestra Muniz acumulou a longa trajetória de professora do ensino básico com a mais recente função de mestra docente universitária. Seu livro recentemente lançado reflete tanto a sua luta política como sua trajetória intelectual e artística.
Poucas pessoas no nosso meio conseguem alcançar a realização de Maria Muniz, desdobrada em vários planos: a partir de uma origem de extrema opressão e desenraizamento, lutar para transformar-se a si mesma; transformar positivamente a realidade do seu povo; contribuir para a transformação positiva da vida dos outros povos irmãos; mudar o mundo em que atua para melhor; e ainda ter a oportunidade e a capacidade de narrar a história da sua luta política e das transformações que contribuiu para realizar.
Na galeria histórica dos revolucionários
Maria Muniz é uma mestra e uma revolucionária brasileira da nação Pataxó Hã Hã Hãe. Deve ser reconhecida ao lado de outros líderes políticos e sábios dos povos tradicionais, como seu irmão, o Cacique Nailton Pataxó; Joelson Ferreira, da Teia dos Povos; a mestra raizeira Japira Pataxó; a mestra Sueli Maxacali; o mestre Isael Maxacali, e tantos outros que, ao lutar pela sua sobrevivência física e espiritual, conseguem transcendê-la e assim participar da recuperação dos seus territórios, da autodeterminação dos seus povos e comunidades, da sua autonomia diante do Estado.
Na honorável galeria dos revolucionários anticapitalistas que tiveram a oportunidade de contar o que realizaram, seu livro está ao lado das narrativas de Fidel Castro, Mao Ze Dong, Leon Trotsky, Simón Bolívar, Nelson Mandela, Martin Luther King e de Ho Chi Minh. O Manifesto da União Intercolonial de Ho Chi Minh, redigido nos anos vinte do século passado e ainda pouco conhecido entre nós, conclama a união de todos os povos e nações da Indochina, nos vários países e colônias, submetidos ao regime opressor do “indigenato”, contra os imperialismos – na época, o francês e britânico. Aquele movimento de articulação dos povos do sudeste asiático com os coloniais metropolitanos ressoa no Brasil de hoje na articulação do movimento da Teia dos Povos, de caráter explicitamente anticolonial, e que tem em Maria Muniz uma das suas lideranças de destaque. Nesse sentido, seu livro já é uma inspiração a mais para a preparação do nosso Manifesto da União dos Povos Brasileiros e Sul-Americanos.
“A intervenção dos seres espirituais na luta revolucionária é um tema precioso na literatura política anticolonialista e anticapitalista, e Muniz a incorpora e atualiza em seus relatos.”
Infelizmente, nem todos os revolucionários que contribuíram para mudar o mundo tiveram a oportunidade de contar detalhadamente seus feitos, porque faleceram durante o processo de luta, alguns bem cedo em suas vidas. Entre eles estão Che Guevara, Amílcar Cabral, Eduardo Mondlane, Augusto Sandino, Zumbi dos Palmares e Dedan Kimathi, o líder do movimento libertador Mau Mau do Quênia. Felizmente, Mayá conseguiu escapar das contínuas balas de jagunços e pistoleiros atiradas contra ela e os seus (alguns sucumbiram), a mando dos grileiros e invasores de terra, e está aqui para nos contar essa luta vitoriosa e inspiradora.
Como mulher indígena, Mayá é uma continuadora da rebeldia revolucionária de Bartolina Sisa, que no século XVIII lutou na Bolívia contra o poder espanhol. Nascida em 1750, Bartolina era da nação Aimará e foi esquartejada em La Paz em 1783 (como também o havia sido seu companheiro Tupac Atari em 1781). Na lista estabelecida dos revolucionários que lideraram grandes movimentos no mundo aparecem poucas mulheres e pouquíssimos indígenas. Por este motivo, seu livro entra numa outra galeria: a dos escritos dos indígenas que enfrentaram o genocídio, o racismo e o roubo de suas terras em outros países latino-americanos.
Um dos mais inspiradores deles, sem dúvida, foi Manuel Quintín Lame, do povo Nasa, grande líder da recuperação das terras dos indígenas guambianos do Cauca e Tolima na Colômbia. Seu livro mais famoso é Os Pensamentos do Índio que se Educou dentro das Selvas Colombianas. Apesar das inúmeras insurreições e dos períodos de prisão e clandestinidade, Quintín Lame viveu até os 87 anos, porém não chegou a ver o impacto do seu livro, escrito em 1937, mas que só seria publicado em 1971, quatro anos após sua morte. Uma comparação dos escritos de Quintín Lame com os de Mayá já seria uma proposta inspiradora de novas agendas revolucionárias para os jovens indígenas de todo o continente. Já passou da hora de intensificar o diálogo dos povos brasileiros com os demais povos da América Latina.
Um mapa das terras e territórios
AEscola da Reconquista detalha como Maria Muniz participou da retomada de 396 fazendas, recuperando um território de 54.107 hectares. Uma façanha como esta, notável em qualquer parte do mundo pela magnitude prática da tarefa e a escala das terras recobradas, levou-me a pensar nos pontos do mapa da Bahia que Mayá contribuiu para retirar das mãos dos grileiros e usurpadores de terras indígenas.
“A Revolução Haitiana sempre foi inspiração para os movimentos libertários em toda a América Latina.”
Em dezembro de 2021, participei de um Seminário organizado pelo Instituto de Estudos Indígenas da Universidade de Melbourne, na Austrália. Marcia Leighton, a professora indígena sênior do Instituto, mostrou dois mapas inspiradores para nós brasileiros: um Mapa atual dos povos indígenas da Austrália (ou aborígenes, como costumam ser também chamados), o qual deve servir de referência para nós, porque ainda não temos um Mapa completo dos Povos Indígenas no Brasil; e um Mapa dos Massacres, onde se veem todos os pontos do território australiano em que aldeamentos indígenas foram atacados, e muitos deles totalmente dizimados pelos colonos brancos de origem britânica.
As reconquistas de Mayá me fizeram pensar na construção de um mapa brasileiro equivalente, algo como um “Mapa das Terras Indígenas Roubadas e Retomadas”. De posse dessa referência estratégica, celebraremos o grande trabalho já feito e mentalizaremos todas as retomadas ainda por fazer.
A dimensão espiritual e literária
Orelato de Maria Muniz acrescenta uma dimensão que falta na maioria das autobiografias dos revolucionários: a dimensão espiritual. Durante toda a saga das retomadas, os encantados estão sempre presentes e intervêm nos momentos de maior perigo para proteger os indígenas dos ataques armados, inclusive em situações que requerem algum tipo de auxílio extraordinário, tal como ocorreu, por exemplo, durante um ataque sofrido pelos indígenas em que caiu uma chuva descomunal durante a sua fuga que fez subir o córrego, impedindo os jagunços que os perseguiam de atravessar.
A intervenção dos seres espirituais na luta revolucionária é um tema precioso na literatura política anticolonialista e anticapitalista, e Muniz a incorpora e atualiza em seus relatos. Lembro aqui do famoso episódio que deu início à Revolução Haitiana: o ritual ocorrido na floresta conhecida como Bois Caiman, em 1791, quando os guerreiros liderados por Boukman se reuniram numa clareira para realizar uma cerimônia de vodu. Naquela noite única e prenhe de potencial revolucionário, a sacerdotisa Cécile Fatiman ofereceu um porco a Ogum e todos fizeram o juramento de destruir o regime de escravidão na ilha.
“As retomadas das terras dos Pataxó usurpadas pelas classes neocoloniais e neoescravistas brasileiras devem tornar-se também inspiração no nosso continente, ainda hoje marcado pela presença genocida e opressora dessas mesmas classes.”
Não é comum também que os relatos revolucionários alcancem valor literário. O livro de Mayá alterna o tom poético com o descritivo, e é recheado de cantos. Ao longo de sua trajetória, Mestra Maria Muniz ensina, canta, lidera, organiza, constrói. Sua visão não é apenas cuidar dos seus irmãos indígenas, mas também de todos os não-indígenas. Cuidar também da terra, dos encantados, dos espíritos que cuidam dos humanos, da natureza (os animais, as plantas, os rios, as montanhas, as chuvas), e do cosmos como um todo. Por esta atuação integrada de cuidado com tudo que existe, considero a Mestra Muniz como uma guardiã do cosmos, que não se concentra apenas na justiça étnica, mas também nas outras justiças, igualmente prioritárias: a justiça social, para todos; a justiça ecológica; a justiça espiritual; e a justiça cósmica.
Enquanto Muniz cantava, girava, ensinava e retomava centenas de fazendas, a roda da justiça cósmica foi girando em direção favorável aos nossos povos em processo de libertação do jugo racista-capitalista-colonialista. Dedan Kimathi foi enforcado, aos 37 anos, pelos colonialistas britânicos em 1957, após um julgamento tão absurdo quanto épico. Contudo, mais de meio século depois, Mukami, sua viúva, recebeu terras do Estado queniano em 2009 como reparação pela grande rebelião dos Mau Mau encabeçada pelo seu esposo. Nelson Mandela alcançou ver a grande estátua de Kimathi inaugurada em Nairobi em 2007, aos exatos cinquenta anos de sua execução. Manuel Quitín Lane tornou-se a grande referência do pensamento indígena colombiano, e aos poucos nos países vizinhos também. Na mesma linha do reconhecimento dos mártires dos povos, em 1983, o dia 5 setembro foi proclamado o Dia Internacional da Mulher Indígena por ser o bicentenário da morte de Bartolina Sisa, e, em 2005, ela e Tupac Katari foram declarados Heroína e Herói Nacionais da Bolívia.
A Revolução Haitiana sempre foi inspiração para os movimentos libertários em toda a América Latina. As retomadas das terras dos Pataxó usurpadas pelas classes neocoloniais e neoescravistas brasileiras, narradas por uma das suas principais protagonistas, devem tornar-se também inspiração no nosso continente, ainda hoje marcado pela presença genocida e opressora dessas mesmas classes. Ao incluir a dimensão espiritual na luta pela emancipação dos povos, Muniz defende não somente a revolução continuada, ou permanente, mas a revolução integral, em que todas as potencialidades humanas, sejam de corpo, da alma ou do espírito, alcancem realização plena.
Esta proposta de revolução integral – material e espiritual – precisa chegar ao conhecimento das atuais correntes marxistas e ecossocialistas em vigência na América Latina centradas, por um lado, nas experiências nas experiências andinas da Bolívia e no Equador, com reflexo nos países vizinhos; e por outro, no movimento bolivariano da Venezuela. Assim como nós acompanhamos no Brasil os relatos e programas de um intelectual revolucionário como Álvaro García Linera, em cujo livro recente, A política como disputa, reverberam as vozes de Tupac Katari e Bartolina Sisa, esperamos que em breve lideranças como ele incorporarão também as lutas dos povos tradicionais brasileiros guiados, entre outras fontes, pelo relato de Maria Muniz.
Recordar os irmãos de luta de outros povos e países da América Latina e da África é um dever histórico. Maria Muniz lança seu livro, munida ainda de todo o seu vigor físico, mental e espiritual do alto dos seus 72 anos. Se pela voz de um oprimido falam todos os oprimidos, na voz de Maria Muniz ressoam as vozes desses outros mártires de outros povos e outros tempos. A luta de todos eles é sempre a mesma. Necessitamos de mais revolucionárias guardiães dos povos e do cosmos, como a mestra Maria Muniz. Nossa esperança é que seu livro desperte muitas vocações.
Veja em: https://jacobin.com.br/2022/04/uma-mestra-indigena-revolucionaria/
Comente aqui