Contra o produtivismo neoliberal, que degrada a universidade e a vida docente, acadêmicos se mobilizam para defender a centralidade da avaliação qualitativa. E fazer dos resultados de pesquisa uma dádiva, não uma mercadoria
Por: Marcos Barbosa de Oliveira
4. Formas tradicionais de avaliação na ciência
Os adeptos da avaliação neoliberal difundem implicitamente a tese de que essa é a única forma possível ‒ bem no espírito do princípio TINA, de Margaret Thatcher, “There is no alternative”. O objetivo desta seção é refutar a tese, demonstrando que a avaliação sempre fez parte das atividades científicas. No artigo “A dádiva como princípio organizador da ciência” (Oliveira, 2014), expus uma concepção, baseada em ideias do sociólogo da ciência norte-americano Warren Hagstrom, em que as contribuições dos cientistas, incluindo artigos e livros, funcionam como dádivas, não como mercadorias, nem como simulacros de mercadoria.
Uma mercadoria realiza-se numa operação de troca, a qual tem a natureza de um contrato, que estabelece direitos e obrigações mútuos. A troca de dádivas também envolve direitos e obrigações, que são porém de natureza moral, não contratual: pode-se processar o comerciante que não entregou a mercadoria pela qual pagamos; pode-se censurar, mas não levar à Justiça, o amigo que não retribuiu o presente de aniversário que lhe demos.
No campo da ciência, de acordo com Hagstrom, o doador é o cientista, individualmente ou como membro de um grupo de pesquisa; o que é doado é tipicamente um artigo, em que são expostos resultados de pesquisa; o receptor é a comunidade científica; e a retribuição é o reconhecimento. A seguinte passagem expressa algumas das ideias centrais da concepção do autor.
A troca de presentes […], em contraste com a troca mercantil ou contratual, é particularmente adequada a sistemas sociais muito dependentes da capacidade, por parte de pessoas bem socializadas, de operarem independentemente de controles formais. A prolongada e intensiva socialização pela qual passam os cientistas é reforçada e complementada pela prática da troca de informação por reconhecimento. A experiência de socialização produz cientistas fortemente comprometidos com os valores da ciência, que precisam da estima e admiração de seus pares. A recompensa do reconhecimento reforça esse compromisso mas também o faz flexível. (Hagstrom, 1965, p. 21)
Quais são as formas em que o reconhecimento se expressa? Com base nas ideias de Merton sobre o sistema de recompensa da ciência (reward system of science), pode-se dizer que elas constituem uma hierarquia. Nos níveis superiores encontram-se os títulos de paternidade (Morgagni, pai da patologia; Cuvier, pai da paleontologia); os inúmeros tipos de eponímia, como as leis (de Hooke, de Curie), efeitos (Faraday, Zeeman), unidades (watt, volt), fenômenos (movimento browniano), corpos celestes (cometa de Halley), etc. Vêm a seguir os prêmios (também ordenados numa hierarquia, com o Nobel no topo), medalhas, títulos honoríficos (p. ex., de professor emérito), outros tipos de homenagens, como colóquios, Festschriften, etc. Um aspecto do estudo de Merton que pode ser interpretado como sintoma de elitismo é o fato de que ele é restrito às formas que cabem aos cientistas mais eminentes, os grandes cientistas, ignorando as mais comezinhas, como os títulos – de mestre, doutor, etc. –, os elogios de colegas e leitores de seus artigos, os pareceres favoráveis, aplausos por palestras ministradas, etc. As citações também não deixam de ser expressão de reconhecimento, quando consideradas qualitativamente, e não quantitativamente. No que se refere à docência, vigora a tradição da escolha de patronos e paraninfos de turmas de formandos.
Com isso chegamos ao xis da questão. O fato é que todas essas formas de reconhecimento, primeiro, envolvem avaliações; segundo, essas avaliações são qualitativas, e terceiro, em diferentes graus, as formas de reconhecimento têm outros aspectos positivos. Uma defesa de dissertação de mestrado ou tese de doutorado, p. ex., não deixa de ser uma avaliação, mas é também uma troca de ideias em que todos aprendem – o candidato, com as arguições, e cada membro da banca, com a leitura do trabalho e os comentários dos outros membros. Mais do que meras avaliações, impostas por instâncias externas, as defesas são parte importante da vida acadêmica, momentos cruciais, sempre lembrados, na formação dos docentes, para isso contribuindo o tanto de ritual presente em sua condução.
Pode-se alegar, por outro lado, que, enquanto crítica à avaliação neoliberal, essas considerações são irrelevantes, uma vez que nem todas as formas tradicionais são extintas – em particular, defesas de mestrado e doutorado continuam a ser realizadas. Acontece, porém, que já se observam sinais de uma tendência à sua extinção. Um exemplo é o sistema de progressão horizontal implementado nas universidades estaduais paulistas, em que o avanço na carreira é decidido com base não em defesas, mas sim em avaliações essencialmente quantitativas – contagem de pontos correspondentes a número de artigos publicados, de citações recebidas, índice-h, etc. Não é difícil imaginar que, sendo mantida a hegemonia do espírito neoliberal, as defesas passem a ser vistas como formas antiquadas, fora de sintonia com os novos tempos, e em consequência eliminadas da vida acadêmica.
Concluindo, para os proponentes de reformas no sistema de avaliação em vigor que comentaremos a seguir, fica a sugestão de que as propostas envolvam a revalorização das formas tradicionais.
5. Memoriais
De maneira geral, no contexto acadêmico brasileiro, por memorial entende-se um texto autobiográfico centrado na carreira acadêmica, posto como requisito aos candidatos num concurso de livre-docência ou de titularidade. Essencialmente, um memorial desse tipo deve expor as razões pelas quais o candidato se julga merecedor do título a que concorre. Mais concretamente, o que se espera de um memorial é um registro não apenas dos episódios da formação, das atividades realizadas como docente, instituições a que se filiou, etc. mas também das motivações para as escolhas feitas, as explicações para mudanças de rumo, quando existem, enfim elementos que dão o sentido do percurso realizado, e das perspectivas futuras. Alguns editais em que os concursos são anunciados trazem uma lista de informações que devem necessariamente constar no memorial, outros – como os editais para concursos de titulação na USP que consultei – limitam-se a prescrever que o memorial deve ser “circunstanciado”.
Essa ausência de normas formais faz com o que o docente tenha inteira liberdade na elaboração do memorial, que resulta numa grande variedade. Enquanto alguns não passam de CVs comentados, outros têm a natureza de autobiografia intelectual ou, no outro extremo, de autobiografia tout court. Uns dedicam grande espaço às circunstâncias históricas, outros às influências mais próximas. Alguns contêm reflexões sobre o próprio ato de escrever o memorial, e assim por diante.
O importante para nossos propósitos é a ausência de normas formais, e a consequente liberdade na elaboração do memorial. Mas vale a pena observar que os concursos em pauta constituem formas de avaliação tradicionais qualitativas que – como vimos em relação a defesas de dissertações e teses – mais que meras avaliações, são atividades importantes da vida acadêmica. Isso acontece porque os concursos têm várias etapas, sendo uma delas a arguição, baseada no memorial, em que ‒ assim como nas defesas de mestrado e doutorado ‒ todos aprendem: o candidato, os membros da banca e o público.
Como na seção anterior, concluo uma sugestão, dirigida agora aos engajados nas iniciativas no Brasil visando a reforma do sistema de avaliação. A sugestão diz respeito à Plataforma Lattes, e o sistema de avaliação fundamentado nos CVs nela arquivados. Como todos sabem, tais CVs trazem em primeiro lugar um pequeno texto, denominado “resumo”, que registra as principais etapas da carreira acadêmica do pesquisador. O resumo pode ser gerado automaticamente pelo sistema, ou redigido pelo pesquisador, com inteira liberdade, podendo ser alterado ou atualizado a qualquer momento. Muito resumidamente, a sugestão é a de que no lugar, ou além do resumo, eles incluam também um memorial, nos moldes em que foram delineados, com destaque para a ausência de requisitos formais no que se refere ao conteúdo. Cada um decide qual é a melhor maneira de se apresentar, para a comunidade acadêmica, mas também para toda a sociedade. O memorial dá aos autores a possibilidade de explicar qual é o valor para a sociedade de suas contribuições, contemplando assim o Princípio Republicano.
Num segundo momento, pode-se expandir o conceito de memorial, de forma que se refira não apenas a indivíduos, mas a qualquer órgão no campo da ciência e da educação superior, isto é, departamentos, programas de pós-graduação, grupos de pesquisa, institutos de pesquisa, faculdades e universidades.
6. A reação da comunidade científica
Até este ponto, a exposição sobre a forma de avaliação neoliberal foi de certo modo unilateral, sugerindo implicitamente que a comunidade científica, no mundo todo, tenha reagido de forma submissa, acatando acriticamente diretrizes, vindas de cima para baixo, escoradas na ideologia neoliberal, em particular a que promove o empresariamento da Academia. O objetivo agora é relativizar tal sugestão, mencionando episódios recentes em que, num movimento de baixo para cima, a forma neoliberal de avaliação começa a ser questionada. Estou me referindo não ao enorme volume de críticas, levantadas por especialistas, e na prática ignoradas pelas camadas dirigentes, mas a mobilizações de setores da comunidade mais sensíveis às disfuncionalidades da avaliação neoliberal, engajados na luta pela reforma dos sistemas.
A primeira manifestação digna de nota dessa postura foi uma iniciativa da International Mathematical Union, em colaboração com o International Council of Industrial and Applied Mathematics e o Institute of Mathematical Statistics. Com o objetivo de realizar um estudo crítico das formas de avaliação baseadas em números de citações, foi formado um comitê que se desincumbiu da tarefa elaborando um extenso relatório (Adler, Ewing e Taylor, 2009).
Um aspecto interessante da iniciativa é o de que, sendo obra de matemáticos e estatísticos, ela exemplifica o fenômeno em que uma área do conhecimento científico critica outras. Assim, pode-se dizer que as críticas expostas correspondem a uma exigência de que, em seu autoentendimento e na avaliação de seus produtos, os cientistas devem atuar como cientistas, isto é, devem pautar-se pelos valores do rigor, clareza, adequação metodológica, etc., próprios da ciência. Deste ponto de vista, vale a pena observar também uma das limitações do FI (fator de impacto), a saber, a de que ele não serve de base para comparações entre a produtividade de diferentes áreas do saber, uma vez que as médias de citações por área variam bastante. Num extremo situa-se a matemática/computação, com média de pouco menos de 1 citação por artigo, no outro as ciências da vida, com pouco mais de 6 (Adler et al, 2009, p. 8).
A segunda iniciativa a ser considerada é a mais influente. Foi gestada durante o encontro anual da American Society for Cell Biology, realizada em São Francisco (Califórnia) em 2012. Como parte das atividades do evento, em 16 de dezembro reuniu-se um grupo de editores e publishers de revistas científicas, que desenvolveu uma série de recomendações, expressas no documento intitulado San Francisco Declaration on Research Assessment, e conhecido pelo acrônimo DORA. Sua importância deve-se principalmente ao fato de que a partir do grupo inicial constituiu-se um movimento, representado por uma ONG, que leva também o nome DORA. Quando foi publicada, em maio de 2013, a declaração já contava com a filiação de mais de 150 cientistas e 75 organizações científicas. No momento em que escrevo estas linhas (3/5/2022), estão inscritos 19.126 indivíduos e 2.549 instituições, de 158 países.
A partir de 2013 multiplicam-se manifestações desse tipo. Uma análise minimamente informativa de cada uma extrapola os limites deste ensaio. Apresentarei apenas uma lista, com breves observações a respeito de algumas, em notas de rodapé, e a seguir comentários sobre todas, consideradas em bloco.
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/mercadovsdemocracia/por-que-resgatar-formas-tradicionais-de-avaliacao-academica/
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