Para Pablo Iglesias, novo livro de Juliano Medeiros aponta os caminhos de uma janela histórica para a esquerda latino-americana se renovar e superar neoliberalismo, analisando as estratégias dos movimentos radicais que emergiram no Chile, México e Brasil na última década.
Por: Pablo Iglesias. |Crédito Foto: La Tercera.
Olivro A nova esquerda na América Latina: partidos e movimentos em luta contra o neoliberalismo não é apenas a versão simplificada da tese de doutorado de um professor de Ciência Política. É também uma contribuição teórica crucial para os debates mais atuais da esquerda, escrita por ninguém menos que o presidente do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Juliano Medeiros. Acreditem, não é pouca coisa que um profissional de Ciência Política também seja um líder político.
Os colegas cientistas políticos que ensinam e pesquisam sem nunca terem praticado política terão que me perdoar, mas acho que o valor da reflexão da ciência política de quem tem responsabilidades militantes merece outra relevância. Talvez eu esteja levando em consideração a identificação com o autor, por compartilhar com ele a condição de cientista político que teve tarefas e compromissos políticos. Seja como for, vocês concordarão comigo que não é o mesmo escrever e refletir a partir do conforto e da liberdade que a distância universitária dá, do que ser obrigado a estabelecer uma correlação permanente entre suas reflexões teóricas e suas decisões políticas. Não é o mesmo defender o rigor intelectual e analítico em um seminário acadêmico ou apresentação em um Congresso do que fazer o mesmo quando se fala em uma tribuna parlamentar, em uma assembleia, em uma reunião partidária ou em um debate na televisão.
“Existe hoje uma janela histórica de oportunidade para a construção de uma alternativa ao modelo neoliberal.”
Acho que vocês já perceberam que não posso esconder que tenho um respeito especial e uma empatia inevitável pelos cientistas políticos que têm também atuação política. Isso responde, sem dúvida, à identificação que lhes indiquei, mas também à convicção intelectual de que a experiência política enriquece a reflexão teórica. Este é, sem dúvida, o caso de Medeiros que nos mostra, neste livro, que ele não é apenas um profissional competente nas ciências sociais, mas também um líder com uma inteligência afiada capaz de apontar, com a precisão de um cirurgião, os principais desafios políticos da esquerda antineoliberal, começando pelo fundamental: sua relação com a economia de mercado e com os sistemas políticos demoliberais.
Os desafios da esquerda latino-americana
Medeiros conhece bem as esquerdas europeias e americanas. Conhece a experiência do Syriza na Grécia, do Podemos na Espanha, da França Insubmissa, do Bloco de Esquerda em Portugal e também o que significou o surgimento de lideranças políticas não convencionais dentro das velhas forças social-liberais nos EUA e no Reino Unido, como Bernie Sanders e Jeremy Corbyn. Mas sua preocupação política e teórica está localizada na América Latina. Essa preocupação é sintetizada em uma questão de pesquisa muito clara: quais são as dificuldades da esquerda latino-americana para colocar em pauta um projeto de superação do neoliberalismo. Medeiros também levanta, como cientista político (mas acho que também como líder político), a seguinte hipótese, a saber, que existe hoje uma janela histórica de oportunidade para a construção de uma alternativa ao modelo neoliberal.
Juliano Medeiros defende que o esgotamento do modelo político e econômico neoliberal na região latino-americana produziu movimentos sociais, politicamente à esquerda do social-liberalismo, que tiveram trajetórias muito diferentes em termos de institucionalização e definição ou não de projetos políticos de transformação do Estado. Dessa forma, ele analisa e compara três movimentos políticos. Por um lado, o movimento estudantil chileno de 10 anos atrás que acabaria se cristalizando politicamente na nova geração de jovens líderes políticos chilenos da Frente Ampla que governam o Chile hoje. Por outro lado, o movimento mexicano #YoSoy132, que não desenvolveu uma experiência de institucionalização política. E, por fim, a experiência do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) no Brasil que teria construído alianças para intervenção e transformação eleitoral a partir do Estado. E que agora enfrenta uma campanha eleitoral muito especial com Lula.
“Outra esquerda é possível, não apenas no discurso e na identidade, mas também no que se refere à liderança do Estado.”
Para Medeiros é possível falar novamente de uma “nova esquerda” (no sentido radical e diferente do social-liberalismo), fruto da crise da globalização neoliberal, que teria trazido uma nova geração de ativistas críticos das instituições tradicionais dos sistemas demoliberais. Para o líder do PSOL, essa nova esquerda tem diante de si o desafio de propor um novo modelo social a partir do momento em que a combinação das crises econômica e política colocasse em questão a estratégia de simples administração progressista do sistema, desenvolvida pelas forças hegemônicas de esquerda nas últimas décadas. Para Medeiros, outra esquerda é possível, não apenas no discurso e na identidade, mas também no que se refere à liderança do Estado.
Superando o neoliberalismo
Nesse ponto, permitam-me dialogar diretamente com o autor. O que Medeiros descreve em seu livro como institucionalização são basicamente estratégias de transformação do Estado. O presidente do PSOL aponta, com autoridade de líder político, que a esquerda deve pensar “fora da caixa”, ou seja, fora dos esquemas mentais do neoliberalismo. Mas, ao mesmo tempo, Medeiros reconhece (pelo menos implicitamente) que isso implica o desenho de uma estratégia de gestão do Estado.
O Chile, um dos casos analisados pelo autor, é provavelmente o exemplo mais claro nos dias de hoje. A tradução institucional da eclosão social de 2019 em processo constituinte e a vitória de Gabriel Boric são basicamente o maior desafio, em termos de liderança do Estado, para uma esquerda chilena historicamente excluída do Estado desde o golpe militar de Pinochet.
Essa nova esquerda chilena e seus líderes nascidos no final da década de 1980 devem administrar um movimento constituinte antineoliberal que se institucionalizou em duas vitórias fundamentais: a formação da convenção constitucional e a vitória eleitoral contra a extrema direita. Mas essa nova esquerda frenteamplista que governa hoje (aliada com a velha social-democracia) enfrenta agora uma reação virulenta da poderosa direita chilena (econômica, midiática, política…) que pode, simultaneamente, derrubar a Assembleia Constituinte e encurralar o jovem presidente, paradoxalmente forçados a buscar apoio no mundo cultural da velha social-democracia da Concertação.
Não pode faltar aos partidos e seus dirigentes um projeto de sociedade e uma estratégia estatal para realizá-lo. Essa consciência está no livro de Medeiros. Mas, ao mesmo tempo, a vontade política está sempre sujeita à violência da contingência reacionária, à correlação de forças e à ação política e cultural do inimigo. Estamos vendo isso no Chile e vamos ver nos próximos meses no Brasil.
Leiam este livro. Isso os ajudará a entender o lugar exato (fascinante e ao mesmo tempo extremamente difícil) em que se encontra boa parte da esquerda latino-americana.
Veja em: https://jacobin.com.br/2022/07/pensar-fora-da-caixa-e-dentro-do-estado/
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