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Petro, os ninguéns e a nova Colômbia

Gustavo Petro e Francia Marquez assumiram ontem. Três cenas dão pistas sobre a mudança – política, ética e estética – em curso. No centro, a altivez das maiorias e a esperança de justiça social e descolonização, em horizonte de paz e vivir sabroso

Por: Ivan Olano Duque | Tradução: Rôney Rodrigues

Gustavo Petro, 62, ex-guerrilheiro e ex-senador, tomou posse neste domingo (7/8) como presidente da Colômbia, o primeiro nome da esquerda a chegar ao poder no país sul-americano. A cerimônia, realizada na Praça de Bolívar, em Bogotá, contou com a presença de mais de 150 mil pessoas – e foi carregada de simbolismos.

Como ocorre tradicionalmente, o novo presidente foi caminhando do Palácio de San Carlos, sede da chancelaria, até a praça. Porém, Petro inovou ao pedir que não fosse estendido no local um tapete vermelho. Ele foi recebido por gritos de “Sim, se pode”, que o acompanharam em toda sua campanha. A cerimônia contou com a presença, entre outros, do rei da Espanha, Felipe 6º, do presidente do Chile, Gabriel Boric, dos ex-presidentes colombianos Juan Manuel Santos e Cesar Gavíria. Porém, o povo colombiano era o convidado de honra: junto a chefes de Estado, sentaram-se um pescador de Tolima; uma senhora de Chochó; um camponês de Caldas; um vendedor de flores de Antioquia e uma gari de Medellín.

Logo após ser juramentado, o novo mandatário deu sua primeira ordem: “Como presidente da República ordeno à Casa Militar que traga a espada de Bolívar”. O artefato histórico fora roubado, em 1974, pelo grupo guerrilheiro M-19, do qual Petro fez parte, e devolvido ao Estado colombiano em 1990, após acordos de paz. Porém, Iván Duque, em uma de suas últimas ações no governo, não permitiu o translado da espada para a cerimônia, alegando questões de segurança e relacionados às políticas do seguro.

Francia Márquez, sua vice-presidenta, quebrou alguns protocolos do texto-padrão de juramento, prometendo cumprir a Constituição diante de Deus e o povo, mas também diante de seus e suas “ancestrais”, assim como trabalhar pelos “colombianos e colombianas que historicamente têm sido excluídos”.

Com a presença da urna que continha a espada de Bolívar, Petro, enfim, pode fazer seu discurso de posse. Leu uma passagem de Cem Ano de Solidão, de Gabriel García Márquez, e disse: “Tudo o que foi escrito neles era irrepetível desde sempre e para sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra […]. Hoje começa a Colômbia do possível, nossa segunda oportunidade na Terra. Estamos aqui contra todos os prognósticos, contra uma história que dizia que nunca íamos governar, contra os de sempre, contra os que não queriam soltar o poder”. (Rôney Rodrigues)

É o primeiro governo popular e de esquerda na história da Colômbia. Ninguém contesta isso. Em 200 anos de vida republicana houve alguns impulsos reformistas, como o primeiro governo de Alfonso López Pumarejo em 1934 ou a Constituição de 1991 ‒ que foi fruto de um processo de paz e do esforço de uma geração ‒, mas o poder sempre foi em um quadro oligárquico: um punhado de sobrenomes, homens ricos e parentes. As poucas irrupções populares nas instituições não conseguiram derrubar esse quadro. Até agora.

O triunfo de Gustavo Petro e Francia Márquez é uma ruptura radical e evidente com essa inércia histórica. Mas não foi um golpe de sorte ou um produto eleitoral de sucesso, mas o resultado de um acúmulo de lutas, de coincidências afortunadas e, inclusive, pode até ser lido como uma curva política que começa no momento de maior violência do último meio século na Colômbia (a ascensão do narcoparamilitarismo e a chegada ao poder de Álvaro Uribe Vélez em 2002), passa pela reativação de muitas organizações populares durante o Processo de Paz entre o governo de Juan Manuel Santos e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), e desemboca em mobilizações e revoltas sociais cada vez maiores entre 2018 e 2021. O antigo regime chegou a um ponto sem retorno.

E o mérito de Gustavo Petro e Francia Márquez não é pequeno, pois palavra após palavra estabeleceram outros pontos de referência que articulavam as demandas por mudanças: feminismo, antirracismo, previdência, modelo de saúde, cuidado com a água e o meio ambiente, limitações ao modelo extrativista, justiça fiscal, propriedade da terra e soberania alimentar. Eles definiram a agenda e os termos do debate para o qual os demais candidatos e o próprio establishment foram arrastados.

Em um país assolado pela violência e pela incerteza, Francia Márquez falou em vivir sabroso, um conceito amplo de uma vida digna, livre e sem medo. Em um país com fome e imensa desigualdade, Gustavo Petro não deixou de falar de reconciliação e diálogo, da necessidade de uma transição para um verdadeiro projeto democrático e de lembrar que a paz, como disse o líder popular-liberal Jorge Eliécer Gaitán, assassinado em 1948, nada mais é do que justiça social.

Mas a crise do antigo regime oligárquico, a definição dos termos do debate e o apelo à reconciliação não são suficientes para conquistar a Presidência. Por trás disso há toda uma série de tensões culturais, disputas narrativas, movimentos do imaginário coletivo. E dada a impossibilidade de ver e descrevê-los todos, pode ser conveniente escolher algumas situações que parecem anedóticas, mas que ilustram dinâmicas e têm raízes e consequências nas relações de poder.

Proponho, portanto, três momentos que resumem e explicam não apenas o discurso disruptivo de Petro e Márquez, mas sobretudo a mudança no senso comum da sociedade colombiana que levou à sua vitória.

Uma trabalhadora varrendo as ruas

Aconteceu em Medellín, uma semana antes do primeiro turno, em um bairro de classe média alta. Um homem dirigia sua caminhonete de luxo com um anúncio de Federico Gutiérrez (o principal candidato de direita, com o apoio do uribismo) no vidro traseiro, quando viu que no carrinho de lixo de uma trabalhadora de uma empresa pública de saneamento havia um pequeno panfleto de Gustavo Petro e Francia Márquez. O homem parou sua caminhonete, confrontou a mulher que estava sozinha varrendo as ruas e, completamente certo de que sua postura era justificada, pegou seu celular e começou a gravar. Com tom agressivo e ar de superioridade, ele a repreendeu:

— Quem te falou que você tinha que carregar esse anúncio?

A mulher, de uniforme laranja com faixas refletivas, continuou varrendo a rua.

— Ninguém, senhor — ela respondeu.

— Por sua própria convicção? — o homem perguntou com desdém. A mulher assentiu várias vezes enquanto continuava a varrer as folhas secas no chão.

— Muito ilegal, vejam — disse o homem, e foi se concentrar nas provas do suposto crime, enquanto ao fundo o som da vassoura continuava a ser ouvido. — Essa niña pregou no seu carrinho de Empresas Varias essa publicidade.

Era tão contrastante que parecia uma paródia. Ele, um direitista em seu grande veículo, sentiu que tinha toda a legitimidade para expressar publicamente sua inclinação política, mas que ela, uma niña (o termo usual na Colômbia, produto do cruzamento do patriarcado e do elitismo), uma mulher da classe trabalhadora, ela estava ultrapassando seu lugar natural de invisibilidade e silêncio. Ele estava bravo e agressivo em seu bairro de mansões e ruas arborizadas, e gravou a cena para mostrar a todos a ousadia daquela mulher. Ela estava varrendo as ruas, como fazia todos os dias, e suportou a intimidação com dignidade e disse a ele que sim, ela mesma havia colado por convicção aqueles dois panfletos amassados em sua ferramenta de trabalho.

O vídeo viralizou nas redes sociais. Era o retrato de um país que ainda carrega o peso das castas coloniais e em que nada desespera tanto alguns setores quanto a irrupção da voz popular. Uma semana antes das eleições, milhares de pessoas viram a cena como símbolo da situação política — e aquela mulher como reflexo da dignidade das maiorias sociais. Até o candidato Gustavo Petro respondeu ao vídeo e comentou sem esconder sua emoção: “Esta é o povo pelo qual eu daria minha vida”.

Mas a história não terminou aí. O dia seguinte foi o último grande ato de campanha antes do primeiro turno. A Praça Bolívar de Bogotá estava cheia, a iminência da mudança se fazia sentir no ar e, no meio de seu discurso, Petro lembrou o vídeo do homem rico tentando humilhar a trabalhadora. Ele disse que não a conhecia e acrescentou:

No dia da posse do governo popular quero tê-la ao meu lado, quero que ela nos acompanhe como convidada de honra, porque ela representa a dignidade do povo trabalhador, a dignidade de quem não abaixa a cabeça, a dignidade de quem não se ajoelha, a cidadania moderna que sabe ser livre, autônoma, sujeito de direitos; uma mulher poderosa e sábia, uma trabalhadora, como Policarpa, tão querida, que ajudou a fundar esta nação”.

Até então, havia uma poderosa mensagem política contra uma ordem elitista, uma ordem permanente de exclusão e humilhação dos que estão abaixo. Mas Petro foi mais longe, talvez pela afinidade com a Teologia da Libertação e pela opção preferencial pelos mais pobres; talvez porque lhe parecesse um ato mínimo de justiça. A última coisa que ele fez no sábado, 28 de maio, véspera do primeiro turno das eleições presidenciais, foi jantar com essa trabalhadora, Kellyth Garcés, e seu filho Justin. Era uma mensagem direta ao antigo regime e aos “ninguéns”, conceito de Eduardo Galeano que se tornou tão popular durante a campanha. E apenas uma foto foi publicada, de longe, discreta, conversando, sorrindo.

Kellyth Garcés, a gari que ultradireitista tentou humilhar, com Gustavo Petro

As famílias e a politização da vida cotidiana

Houve tantas transformações e marcos políticos na Colômbia dos últimos anos que, muitas vezes, é esquecido que Petro devolveu a política às praças públicas. Por muito tempo, a disputa política e eleitoral ficou reduzida ao âmbito dos grandes meios de comunicação. E no oligopólio midiático colombiano não havia muito espaço para a irrupção de discursos que iam além da segurança, do conflito armado e da corrupção.

Foi durante sua destituição em 2013 do cargo de prefeito de Bogotá – por um funcionário administrativo de extrema direita e como retaliação à desprivatização parcial de um serviço público – que Petro surgiu como convocador, orador e líder de multidões . Foram três dias seguidos com a Praça Bolívar cheia de cidadãos que exigiam respeito ao voto popular e a reintegração do prefeito que impulsionava ambicionsas políticas sociais. O nervosismo do establishment foi retratado na capa da revista Semana: uma fotografia de Petro fazendo um discurso da Prefeitura e a manchete “Chega de sacada!”.

Graças à descoberta acidental desse potencial comunicativo e popular, a aposta de Petro e da Colômbia Humana ‒ seu projeto político ‒ em 2018 foi começar a encher as praças de todo o país. Às vezes um, dois e até três no mesmo dia. A grande mídia não reproduziu as imagens, mas as redes sociais sim, e seu discurso de justiça social se enraizou com tanta força que, mais cedo ou mais tarde, os outros candidatos foram obrigados a se referir a ele e a se movimentarem pelas suas margens.

Nesta campanha de 2022, não só com a Colômbia Humana, mas também com o Pacto Histórico – a posta numa frente ampla –, a estratégia foi a mesma: praças públicas, multidões em grandes, médias e pequenas cidades, discursos longos e pedagógicos. Decidiu-se também marcar uma maior presença nas zonas do país onde há quatro anos havia menos apoio, com a convicção de que bastava o povo ouvir, quebrar o cerco mediático nas praças para construir uma nova maioria e um novo senso comum.

Assim, nos últimos meses antes das eleições, Petro encheu e fez discursos em cerca de 130 praças em toda a Colômbia. Foi uma maratona e logística difícil, mas também uma tensão com o oligopólio midiático, pois houve algumas semanas em que o candidato deixou de ir aos debates quase diários que a grande mídia estava organizando. A abordagem era clara: já havia sido debatido e voltaria a ser debatido nos últimos dias antes das eleições, mas se Petro dedicasse seu último mês à mídia, não estaria apenas no terreno do adversário – em que o único objetivo de candidatos e comunicadores era derrotá-lo –, mas isso também o impediria de marcar presença nas praças de muitas cidades. Foi uma decisão sábia: as praças estavam lotadas e os debates sem Petro ficaram sem rating.

Assim se conseguiu a vitória no primeiro turno: oito milhões e meio de votos para Gustavo Petro e Francia Márquez. E devido a uma reviravolta nas últimas duas semanas, seu adversário no segundo turno seria Rodolfo Hernández, um empresário bilionário acusado de corrupção, famoso por seu despotismo, seu autoritarismo e sua ignorância em quase todos os assuntos, mas que foi um produto de sucesso de marketing político através das redes sociais e da repetição incessante de que ia acabar com a corrupção “dando cintada nos corruptos”. Qual deveria ser, então, a estratégia do Petro para as semanas que faltam para o segundo turno? As praças pareciam já esgotadas. Multidões já haviam sido convocadas e discursos de muitas horas já haviam sido proferidos. A decisão, inteligente e sensível ao mesmo tempo, é na minha opinião o segundo momento que resume e explica o triunfo.

Decidiu-se fazer o contrário das praças, dos discursos e das multidões: durante duas semanas Petro se dedicou a visitar, conversar, dividir a cozinha e a mesa com famílias operárias de todo o país.

Numa sexta-feira começou dormindo na casa de Arnulfo, pescador às margens do rio Magdalena. Na manhã seguinte, ele o acompanhou no rio por várias horas e depois conversou com sua família. Naquela tarde ele viajou para Medellín para jantar com uma família de camponeses floricultores. Na segunda-feira, almoçou com mineiros de Boyacá, todos sentados em uma mesa comprida e com a panela nas pernas, tirou dúvidas sobre seu plano de transição energética e desceu para a mina. Na quarta-feira foi à casa de Genoveva e seus filhos em um bairro de Quibdó — a cidade com maior índice de pobreza da Colômbia –, ajudou a fritar as bananas para o jantar, dormiu em um dos cômodos da casa e, no dia seguinte, teve que tomar banho com balde porque o chuveiro não funcionava.

Foi assim por vários dias, para cima e para baixo, de um canto a outro da Colômbia. Antes da primeira rodada, seus dias eram de praça em praça, agora eram de mesa em mesa, de família em família, dialogando, dividindo os dias de trabalho. A cobertura da mídia foi mínima e pairava no ar o ressentimento de que desistir das multidões na reta final poderia ser um erro. Mas havia algo naquelas imagens que deu um novo significado a toda a campanha.

Petro com o pescador Arnulfo Muñoz

Ao contrário de Iván Duque e Álvaro Uribe, do candidato Hernández e de quase qualquer membro da classe dominante colombiana, Petro foi aos bairros populares não como turista, pegou um facão e colocou botas de borracha não como fantasia, mas como ferramentas naturais de seu ambiente econômico e cultural. Em outras palavras, ao contrário de todos os outros, Petro faz parte da classe trabalhadora colombiana e, por isso, embora ninguém ignorasse que ele estava fazendo campanha e transmitindo uma mensagem, nesses espaços não se viu uma atitude falsa ou impostora.

Havia ainda mais do que a mensagem de pertencer – e, portanto, defender – a classe trabalhadora. Talvez não tenha sido o propósito, mas foi o resultado: transmitiu-se por toda a Colômbia, em uma conjuntura vertiginosa, que a política não está nos grandes discursos lotados, mas na vida cotidiana, no ar de cada dia, nos tempos de conversar, trabalhar, cozinhar e dividir a mesa. E que foi possível dar a este conjunto de particularidades uma história partilhada e um horizonte de ação.

A mãe de Dilan Cruz

Em 21 de novembro de 2019 começou a grande Greve Nacional em defesa da paz, contra o assassinato de lideranças sociais e as políticas neoliberais do governo Duque. Tal era a dimensão das mobilizações em todo o país que se tornou comum falar da última grande referência de algo assim na Colômbia: a Greve Cívica Nacional de 1977. E assim como faria no ano seguinte, nas mobilizações de 2020 contra brutalidade policial, e a seguinte, na grande revolta social de 2021 (provavelmente o maior em meio século), a resposta do governo Duque foi militarizar cidades, intensificar o discurso de criminalização do protesto social e dar rédea solta à Polícia Nacional reprimir com sangue e fogo os manifestantes.

Em 23 de novembro daquele 2019, no centro de Bogotá, um capitão do Esquadrão Móvel Antimotim (esmad) atirou com uma escopeta de “letalidade reduzida” na cabeça de Dilan Cruz, um jovem de 18 anos há dois dias de se formar no ensino médio. A mesma coisa acontecia em todo o país: jovens feridos, mutilados, assassinados pela Polícia, mas desta vez aconteceu em um ponto onde havia, pelo menos, uma dúzia de câmeras gravando de diferentes ângulos. Em um deles, os oficiais da esmad são vistos dizendo, pouco antes de disparar: “Pare qualquer um já! Dá nele, dá nele”!”.

Dilan Cruz ficou em estado crítico por dois dias: o saco de pano com chumbinhos de metal (a munição de “letalidade reduzida”) estava escrutado em seu cérebro. Tanta gente viu que se tornou em um símbolo das mobilizações, o símbolo de um Estado que não parava de assassinar – na guerra e no protesto – os mais jovens. Dilan Cruz protestava por um país mais justo e um sistema educacional para todos, e morreu às vésperas de sua formatura.

É por isso que a noite de 19 de junho de 2022, quando Gustavo Petro e Francia Márquez comemoravam sua vitória junto com milhares de cidadãos, foi tão significativa. Todas as redes de televisão estavam transmitindo ao vivo. Todos os meios de comunicação internacionais estavam gravando e enviando as primeiras reportagens. Estávamos todos atentos aos primeiros discursos da vice-presidenta e presidente eleitos, ainda sem acreditar no que estava acontecendo. Francia Márquez falou primeiro e então, quando Petro estava no meio de seu discurso, uma grande fotografia em uma moldura de madeira começou a ser levantada no palco, sobre as cabeças das dezenas de pessoas.

Era Jenny Alejandra Medina, mãe de Dilan Cruz, abrindo caminho. As pessoas viram a fotografia de seu filho e aos poucos a deixaram passar, até chegar ao lado de Petro, que fazia seu discurso de vitória. Ele a viu, cortou a frase ao meio, abraçou-a e deu-lhe o microfone.

Este é, na minha opinião, o terceiro momento que resume e explica o triunfo: a mãe de Dilan Cruz não só falou, disse o que lhe tinha acontecido e o que estava pensando e sentindo, como também irrompeu no meio do grande discurso de poder. Este foi o exemplo de uma necessária mudança de paradigma na relação entre o Estado e as vítimas. E faz parte de uma nova história que foi construída a partir de baixo, nas associações de vítimas, no movimento social, no Processo de Paz, e que Márquez e Petro coletaram e replicaram em todo o país. Não é mais o momento para os negacionistas do conflito; não mais espaço para os gestores da indolência herdada das elites. Num dos países mais desiguais do mundo, depois de décadas de conflito armado em que 80% das vítimas eram civis e em que o Estado tem sido um vitimizador central, por ação e por omissão; diante dos milhões de pessoas em situação de deslocamento forçado, diante da impunidade sistemática, diante do vício arraigado de silenciar e revitimizar as vítimas, os futuros governos só serão legítimos na medida em que forem capaz de olhar a barbárie nos olhos e reconhecer publicamente o horror de tantas injustiças acumuladas.

Jenny Alejandra Medina

O que Petro fez ao entregar o microfone à mãe de Dilan Cruz em seu grande momento de vitória ‒quando todas as câmeras estavam esperando para ouvi-lo ‒ significa uma mudança de prioridades no uso da palavra na esfera pública. Isso significa que quando os de baixo falam, quando as vítimas falam, os que estão no poder devem se calar e ouvir.

O “sancocho nacional”

Assim, o novo governo, popular e de esquerda, foi resultado não apenas de lutas acumuladas e de uma crise do antigo regime de exclusão, mas também de importantes transformações no senso comum. A questão natural agora é qual será sua real margem de ação e até onde chegarão as transformações.

Pois bem, devemos começar reconhecendo que, apesar de um dia ter sido membro de uma guerrilha revolucionária e ter pegado em armas contra o Estado, é difícil encontrar na Colômbia um líder político menos sectário do que Petro, mais disposto a falar até com seus adversários mais intransigentes. Ou corrijo: isso pode acontecer justamente porque ele militou em uma guerrilha particular, o M-19, e não apenas participou de um processo de paz que levaria à Assembleia Nacional Constituinte de 1991, como acompanhou de perto o comandante Carlos Pizarro em sua defesa apaixonada da audácia e imaginação para transformar a Colômbia, mas também porque ele sempre teve como referência a ideia do “sancocho nacional”.

O conceito é de Jaime Bateman Cayón, cofundador e comandante do M-19 até a manhã de 1983, quando o avião em que viajava para o Panamá caiu na selva de Darién. Era um homem caribenho, festivo, espontâneo e, por isso, para resumir a necessidade de um grande diálogo nacional em que se entendessem velhos adversários, diferentes ideologias e correntes políticas para o bem do país, apelou ao nome do mais popular de sopas colombianas.

Nesta campanha de 2022, ainda mais do que em 2018, Petro constantemente convocou todos os atores políticos, incluindo a direita e a extrema direita, a aderir a um grande pacto pela justiça social na Colômbia. Por isso o nome de sua coalizão é Pacto Histórico. E isso se complementa com outra bandeira icônica da reconciliação e modernização da Colômbia, a de Álvaro Gómez Hurtado (filho do ex-presidente, conservador, constituinte em 1991 e assassinado em 1995): o pacto sobre o fundamental.

Petro defendeu essas ideias ao longo da campanha, razão pela qual aceitou membros do antigo establishment em seu projeto político e disse que – ao contrário do que a direita sempre fez – a oposição terá as portas abertas para falar na Casa de Nariño. E é também por isso que, em seus primeiros dias como presidente eleito, ele se encontrou não apenas com Hernández, o candidato derrotado, mas também com o ex-presidente Uribe.

Nisso reside uma das grandes potências do novo governo (todos são bem-vindos no sancocho nacional, a concertação é possível e, em meio às divergências, podemos firmar um pacto sobre o que é fundamental), mas talvez também uma limitação e um reconhecimento de sua fragilidade. É bom conversar e deixar entrar ar fresco nas instituições. É bom abrir espaço no governo para indivíduos com habilidades gerenciais, mesmo que venham de outras ideologias e tradições políticas. É bom, em um país acostumado à guerra, que os diferentes atores se escutem em um quadro institucional e não violento. Mas a política – a realidade – é conflituosa. O grande hosana do abraço coletivo satisfaz a moral conservadora, talvez neutralize alguns discursos hostis, mas corre o risco de reduzir radicalmente a margem de ação. É também uma miragem, porque mudar as coisas envolve incomodar muitas pessoas.

Mais cedo ou mais tarde, quando as reformas começarem, quando a doutrina neoliberal for questionada e as grandes potências forem ameaçadas com medidas concretas, todas as molduras e gesso da conciliação e da unidade cairão por terra. E então os pilares da força real serão expostos.

O revolucionário na Colômbia

Gustavo Petro está ciente da tensão e da fragilidade. Ele já as viveu na Prefeitura de Bogotá e de lá tirou várias lições. Ele sabe que tem muitas frentes para lutar, e que qualquer uma delas pode desencadear as forças para derrubar seu governo. Lembro-me de uma entrevista de muitos anos atrás em que ele disse – cito de memória – “Basta uma ação coordenada de caminhoneiros para derrubar um governo na Colômbia”. E nestes dias tem havido reuniões organizadas por oficiais aposentados convidando militares da ativa a ignorarem o comando do novo presidente, porque dizem que prestar contas a um ex-guerrilheiro é a maior humilhação da história das Forças Armadas.

Os adversários são muitos e poderosos. A indústria financeira, as máfias em todos os setores, os exércitos do narcotráfico, o oligopólio midiático, os grandes latifundiários… Assim que eles virem uma grande fraqueza, pularão na jugular do novo governo. E é pela consciência disso, pela análise concreta da realidade concreta, que poucos meses antes das eleições, Petro começou a afirmar que o realmente ambicioso era aspirar a um governo de transição, que sem ser um revolução abriria um novo ciclo na Colômbia, deixaria finalmente a violência política para trás e garantiria uma série de direitos fundamentais. É a assinatura de outra das ideias de Jaime Bateman Cayón: “A coisa mais revolucionária hoje na Colômbia é a democracia”.

Até onde irá o novo governo? Atrevo-me a dizer que as mudanças de senso comum que o levaram à vitória são a melhor garantia de uma transformação a longo prazo e que ela não termina com Gustavo Petro e Francia Márquez, mas apenas começa. Os pontos de partida já foram ampliados, os mitos funcionais ao velho regime foram despedaçados, a correlação de forças não para de se mover e o futuro nunca pareceu tão imenso.

É por isso que esses três momentos da campanha são tão significativos: o da dignidade dos “ninguéns”, o da politização da vida cotidiana e o da legitimidade e urgência da voz das vítimas e dos de baixo na esfera pública. Além do triunfo histórico, além do novo ciclo progressista na América Latina, essa demanda popular já é revolucionária na Colômbia. Temos esperança: uma mudança política, ética e estética já está no ar.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/movimentoserebeldias/petro-os-ninguens-e-a-nova-colombia/

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