No Pará, moradores de uma reserva extrativista mostram como é possível lucrar com a floresta sem derrubá-la. Mulheres são as principais defensoras dessa tradição e alvos frequentes de ameaças.
Por: Philipp Lichterbeck |Créditos da foto: Ian Cheibub. Claudecir colhe na floresta seu sustento
Em uma pequena vala no meio do pasto, Claudia dos Santos para o carro. Na beira do caminho, há uma grande cruz de madeira e, ao lado, os restos de uma placa de pedra destruída. “Eles atiraram nela”, conta Santos. “O nome do meu tio e da minha tia estavam gravados na pedra. Até hoje somos ameaçados porque protegemos a floresta.”
A jovem de 20 anos é sobrinha de José Cláudio Ribeiro, que junto com sua mulher, Maria do Espírito Santo, foi alvejado por dois pistoleiros neste local. O casal liderava uma comunidade extrativista no sudeste do Pará. Os extrativistas coletam e processam frutos da Amazônia, são os agricultores da floresta. Mas o Pará vem sendo desmatado a um ritmo raramente visto em outros lugares do Brasil. José Cláudio e Maria resistiam à destruição e denunciavam madeireiros e pecuaristas ilegais. Até esse contra-ataque brutal.
Um dos pistoleiros foi condenado, assim como dois dos mandantes. Porém, o assassino conseguiu fugir da prisão, e um dos mandantes – um pecuarista que estava de olho em terras da reserva – escapou da polícia. “Vivemos com medo”, afirma Claudia dos Santos.
O Pará abriga a segunda maior porção da Amazônia brasileira. Mas madeireiros, pecuaristas, sojeiros e garimpeiros ilegais avançam há anos sobre a floresta, invadindo áreas protegidas, reservas indígenas e territórios de extrativistas. Desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, em 2019, eles ficaram mais agressivos. O número de conflitos por terras no Pará é extremamente alto – ambientalistas, indígenas e comunidades tradicionais vivem perigosamente.
Guerra cultural
O termo extrativismo descreve a coleta de frutos que a natureza oferece. A prática é uma resposta importante para a pergunta sobre como é possível viver na região da Floresta Amazônica sem destruir o meio ambiente. “Meu tio e minha tia provaram que o extrativismo funciona”, afirma Santos. “Por isso, eles precisaram morrer. Eles mostraram que uma floresta intacta produz mais riqueza do que o gado.”
A jovem cresceu numa família de quatro integrantes na comunidade Praia Alta-Piranheira, famosa por suas castanhas-do-pará e que, em 1997, foi declarada reserva agroextrativista pelo Estado. José Cláudio Ribeiro e sua esposa desempenharam um importante papel para que isso ocorresse. Contudo, a demarcação não impediu madeireiros e pecuaristas de continuar invadindo os 22 mil hectares de área protegida. O Estado está em grande parte ausente na Amazônia e, em várias regiões, o que vale é a lei do mais forte.
Há também uma guerra cultural no Pará. Em muitas partes do Brasil, a natureza ainda é considerada algo atrasado e importuno, que deve ser domado e de preferência eliminado para abrir espaço para o desenvolvimento econômico. Bolsonaro encarna esse ponto de vista por excelência, ele fala de “árvores de merda” e defende garimpeiros e madeireiros ilegais. Para ele, aqueles que defendem a floresta são baderneiros. Os recordes de desmatamento na Amazônia sob o governo Bolsonaro não são uma coincidência.
Sustento vindo da floresta
Depois dos assassinatos de José Cláudio e Maria, Santos e sua mãe, que também recebeu ameaças de morte, se mudaram para Marabá, que fica a duas horas e meia de carro da reserva. Lá Santos estuda e trabalha no instituto Zé Cláudio e Maria – uma ONG fundada por sua mãe para ajudar a manter de pé a luta por Justiça e a memória dos mártires socioambientais.
Nesta tarde, ela vai à reserva para visitar a tia, Claudecir dos Santos, que deu continuidade à tradição do extrativismo. Depois de um longo trajeto numa estrada de terra e ao longo de pastagens, ela chega à área protegida, fácil de reconhecer devido à mata fechada. Para recebê-la, Claudecir matou uma galinha que prepara num fogão à lenha numa cozinha aberta. “Estou satisfeita com a minha vida”, diz a viúva de 57 anos.
Na manhã seguinte, a mulher pequena e musculosa entra na floresta com um facão e uma cesta nas costas – cerca de 30 hectares de mata pertencem ao seu quintal. Ela conta que há quatro ou cinco frutos que a ajudam a ganhar a vida.
Em primeiro lugar, está a castanha-do-pará. Elas crescem em castanheiras e, em ouriços que parecem balas de canhão, as castanhas amadurecem envoltas cada uma em uma casca dura. A castanha-do-pará não pode ser cultivada em plantações, ela dá apenas na floresta. Essa é uma das razões para o alto preço de venda desse produto no mercado. Nutritivas, as castanhas possuem um elevado teor de proteína e gordura, além de muitos minerais.
Cada uma das dezenas de castanheiras na floresta produz por safra castanhas no valor de cerca de R$ 500, segundo Claudecir. Ela acrescenta que, ao longo dos anos, isso rende muito mais do que se derrubassem a árvore e vendessem sua valiosa madeira. Apesar de o corte da espécie ser proibido pela legislação brasileira, madeireiros continuam derrubando castanheiras. Eles simplesmente declararam a madeira como de outro tipo.
Igualmente importante para a renda de Claudecir é a andiroba, de cujas sementes é extraído um valioso óleo, que tem efeitos antissépticos e é usado na fabricação de sabonetes. Em sua oficina, Claudecir mostra como funciona o processo de extração do óleo. Ela se uniu com outras mulheres da reserva numa cooperativa para comercializarem juntas o óleo.
Açaí, cacau e cupuaçu também são coletados e vendidos. Já mamão, manga e limão são para consumo próprio. Além disso, Claudecir planta mandioca, feijão, cana-de-açúcar e ervilha. O quintal dela parece um paraíso autossuficiente. Mas é claro que não cresce tudo que é necessário para viver na floresta.
Claudecir, que recebe ajuda de um irmão mais novo para cuidar da plantação, compra açúcar, sal, arroz, café e óleo na cidade. “Mas eu não gosto da cidade”, diz. “A floresta me dá tudo que eu preciso. Ver como ela é viva me dá coragem. Apesar de tudo.”
Ameaças de morte
Faz dois anos que a mãe de Claudecir, que vive em Marabá, recebeu uma carta na qual estava escrito com letras recortadas: “Vamos acabar com o resto da família”. E essa não foi a única ameaça.
Ao anoitecer, vestindo jeans e chinelos de dedo, Claudia dos Santos atravessa um riacho do qual vem a água usada por sua tia. As cigarras já começaram com sua cantoria ensurdecedora, e longe um grupo de bugios grita. Santos senta embaixo de uma castanheira imponente, que emerge para o céu de uma clareira. A idade da poderosa árvore é estimada entre 350 e 400 anos, ela conta. Sua família a batizou com o nome de Majestade. “Eu venho aqui para encontrar minha paz. Essa clareira é minha catedral.”
Santos conta que há dois anos, na volta de uma visita à reserva com uma amiga, elas foram seguidas por uma pick-up com luz alta que chegava cada vez mais perto. “Entramos em pânico e aceleramos até que nosso carro quase capotou numa curva.” A jovem acredita que um pecuarista que tem uma fazenda na divisa com a reserva esteja por trás do episódio.
O extrativismo, como o praticado por Claudecir e sua família, é uma provocação. A economia predominante na região é a pecuária, que também se espalhou pela reserva extrativista. De 400 famílias que moram no local, apenas 20 ainda praticam a silvicultura. As outras possuem gado, o que contradiz o objetivo da reserva, mas é a realidade.
“Querem lucro rápido. Pensam que só os que têm gado contam”, afirma Suena Nascimento, de 28 anos, que é professora numa escola rural e presidente do coletivo de extrativistas do qual 15 mulheres fazem parte.
“Nós, mulheres, pensamos a longo prazo”, afirma a professora. “Algumas famílias que começaram a criar gado já se arrependeram”, diz, apontando que elas não calcularam os custos de fertilizantes para as pastagens, ração, vacinas e outros. “As primeiras a mudar de ideia são as mulheres. Os homens precisam de mais tempo. Mas o mais tardar quando a água se torna escassa e o solo esgotado, eles percebem que algo não vai bem. É preciso se aliar à natureza para sobreviver na Amazônia”, ressalta.
Comente aqui