Clipping

O agro não é pop

O latifúndio monoexportador, herdado do sistema escravocrata colonial, se apresentam, hoje, para os donos do poder, como um pilar intocável do modo de produção capitalista. Mas esse é apenas um modelo que nos mantem preso ao velho subdesenvolvimento.

Por: João Moreno |Crédito Foto: (Foto retirada do blog da Syngenta)

Oclipe da música “Agro é top”, da dupla de sertanejo universitário Léo e Raphael, tem mais de 19 milhões de visualizações no YouTube. Assistimos a picapes e grande extensão de terras agricultáveis, maquinários ultratecnológicos para colheitas mecanizadas, bois, peões selando cavalos, e mulheres, muitas mulheres, enquanto o refrão Agro é top/ agro é chique/ agro é show/ agro é nóis” toca. Nos mais de 1.700 comentários direcionados ao vídeo, encontramos concepções que destoam da realidade do nosso país: “O clipe é uma aula de informação” e “Por isso o Brasil e os brasileiros são abençoados; nunca saberemos o que é fome!!! viva o agro, viva o brasil!!!!”.

É possível identificar quais são os mecanismos responsáveis por essa alienação? Como se transforma uma atividade deletéria ao próprio desenvolvimento capitalista, e que aprofunda o subdesenvolvimento brasileiro, em sinônimo de riqueza e sucesso? Tentaremos aqui aglutinar informações, furar bolhas e, por fim, indicar alternativas.

O latifúndio e a economia monoexportadora, as bases do sistema escravocrata do Brasil colonial, se apresentam, hoje, para os donos do poder, como um pilar intocável do modo de produção capitalista no país. Sob a ótica da economia política, buscaremos compreender o imbricamento entre a renda da terra e o poder político, e de que forma essa relação é responsável pela atual configuração da realidade brasileira. A partir de dados e estudos, apontaremos o vínculo entre o agronegócio e o subdesenvolvimento.

Eles nos disseram que “O agro é a riqueza do Brasil”

Em uma peça publicitária da Rede Globo, um tom de voz otimista anuncia  “Agro, a indústria-riqueza do Brasil”. E, entre a frase “Agro é tech” e “porque tudo que vem do campo é feito com tecnologia, que não para de avançar”, tratores, ceifadeiras e drones ajudam o agricultor na colheita do vastíssimo campo.

A peça mercadológica não para por aí. Mais uma vez, uma área cultivável quase sem fim ganha a tela enquanto o texto conecta o agronegócio ao cotidiano dos brasileiros. “Agro é pop porque está no dia a dia, nas indústrias, no comércio e na vida das pessoas. Porque gera emprego”, diz. A publicidade televisiva, além aproximar os universos urbano e rural, apresenta uma suposta proximidade entre camponeses e agronegócio: pouco depois do recorte de uma família de agricultores – pai, mãe e filhos pequenos –, a imagem de um latifúndio produtivo aparece. Ao mesmo tempo, o narrador afirma que o “Agro é tudo! É o sustento de famílias e a riqueza do Brasil”.

“Na América Latina, 51,19% das terras agrícolas concentram-se sob o poder de 1% dos proprietários rurais.”

A Rede Globo foi ainda mais longe em sua propaganda ideológica. Lançou outra campanha institucional em 2021, mesmo ano em que o aumento acumulado no preço das carnes, medido pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), chegou a 69%. A campanha consistia em uma “ode” aos ovos como substitutos da carne e como a indústria granjeira alcançou a marca de 16 bilhões de reais. Tais números contrastam com os dados levantados pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede penssan) com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil.

Nos três últimos meses de 2020, “do total de 211,7 milhões de brasileiros(as), 116,8 milhões conviviam com algum grau de Insegurança Alimentar e, destes, 43,4 milhões não tinham alimentos em quantidade suficiente e 19 milhões de brasileiros(as) enfrentavam a fome”. A pesquisa fala de um Brasil em que ossos de animais e farelos de arroz e de feijão tornaram-se as únicas opções de alimentos disponíveis para muita gente.

Como a mesma realidade pode comportar situações tão opostas? O “Agro, a indústria-riqueza do Brasil” e a fome de milhões?

Mau negócio

Segundo os pesquisadores Marco Antonio Mitidiero Junior e Yamila Goldfarb, no estudo chamado “O agro não é tech, o agro não é pop e muito menos tudo” (2021), o agronegócio pode ser definido como um “um modelo de produção e gestão resultante da associação do capital agroindustrial nacional e internacional com a grande propriedade fundiária”. Por meio do sistema financeiro, do capital bancário e do uso de tecnologia intensiva, o agro impõe um modelo único de produzir alimentos (não destinados à alimentação dos brasileiros, aliás) e de enxergar a relação com a terra.

Para além do consenso – construído pelos “aparelhos ideológicos” – , uma análise detalhada do agronegócio demonstra que o setor está muito longe de ser a “salvação” do Brasil, tal como ele se define. Segundo o estudo de Mitidiero e Goldfarb, “A análise da balança comercial, da balança de pagamentos e dos créditos recebidos pelo setor somados aos incentivos fiscais, como é o caso da Lei Kandir, à baixa arrecadação, como no caso do itr, e à constante renegociação e perdão das dívidas do setor mostra um país atado a uma economia reprimarizada, de uso intensivo de recursos naturais e profundamente dependente”. Ou seja, “até sobre o ponto de vista do capitalismo, o agronegócio é um mau negócio”, como os pesquisadoresresumiram em uma entrevista.

Em Economia política: uma introdução crítica, José Paulo Netto e Marcelo Braz afirmam que a sociedade não pode existir sem a natureza, “afinal, é a natureza, transformada pelo trabalho, que propicia as condições da manutenção da vida”. Especialmente a partir da Revolução Industrial, a sociedade capitalista revolucionou tal relação, primeiro com uma nova forma de produzir energia, o carvão; depois, com o desenvolvimento de novas matrizes de transportes, encurtando distâncias e conectando mercados, agora globais.

Todavia, apesar de um “sistema global”, o capitalismo não se desenvolveu em todo o globo de forma homogênea. No Sul Global ele está subordinado ao centro capitalista, o que cria estruturas específicas de dominação, nas diferentes áreas. Como sintetizou o escritor Eduardo Galeano, no clássico As veias abertas da América Latina:

“a América Latina nasceu para obedecer, quando o mercado mundial ainda não se chamava assim, e aos trancos e barrancos continuamos atados ao dever de obediência. Essa triste rotina dos séculos começou com o ouro e a prata, e seguiu com o açúcar, o tabaco, o guano, o salitre, o cobre, o estanho, a borracha, o cacau, a banana, o café, o petróleo. O que nos legaram esses esplendores? […] Agora é a vez da soja transgênica”.

Essa relação de dependência possibilitou o desenvolvimento de estruturas específicas no capitalismo periférico brasileiro que permanecem até hoje, como uma burguesia reacionária e o latifúndio de base escravista. Galeano escreveu em 1971 que

“as burguesias dessas terras nasceram como simples instrumentos do capitalismo internacional, prósperas peças da engrenagem mundial que sangravam as colônias e as semicolônias […] Por sua vez seus sócios, os donos de terras, não estavam interessados em resolver a ‘questão agrária’, a não ser na medida de suas próprias conveniências. O latifúndio se consolidou sobre a espoliação, tudo ao longo do século XIX”.

Na América Latina do presente, 51,19% das terras agrícolas concentram-se sob o poder de 1% dos proprietários rurais, de acordo com levantamento da Oxfam.

O século XX viu o Brasil abandonar o eixo do poder oligárquico agrário, mesmo que momentaneamente, fruto dos impactos Revolução de 30 e da ditadura do Estado Novo. Todavia, enquanto o país sustentou, entre os anos de 1930 e 1980, notável desenvolvimento industrial, crescimento econômico e aspirações modernizantes, o latifúndio permaneceu. Pode ser apontado, inclusive, como uma das razões para o Golpe de 1964, pois, como escreveu o historiador Moniz Bandeira, a reforma agrária proposta por João Goulart “afetaria os interesses dos latifundiários”.

O poder do agronegócio não recrudesceu com a redemocratização. Muito pelo contrário. Segundo a historiadora Adelaide Gonçalves, a Assembleia Nacional Constituinte foi um dos lugares em que o lobby do agronegócio mostrou o poder acumulado pela elite fundiária durante o Regime Militar. Financiamento de milícias para “extermínio de trabalhadores sem-terra, posseiros, sindicalistas, agentes de pastoral leigos e missionários e advogados das causas camponesa”; arrecadação de fundos; financiamento de Meios de Comunicação. O agronegócio, por meio da União Democrática Ruralista (UDR), também lançou candidato à presidência, em 1989. Assim, a estrutura da terra, herdada da escravidão, permaneceu e se multiplicou.

É a parte que te cabe deste latifúndio

Aextensão do latifúndio brasileiro é equivalente à da Arábia Saudita. São 2,3 milhões de quilômetros quadrados. Do total de imóveis rurais, 0,91%  concentram 45% da área produtiva do país. E 10,9% da superfície agrícola é composta de terras públicas “sem destinação”. A grilagem de terras faz com que o Brasil tenha registrado 38 milhões de hectares a mais do que seria possível existir em suas fronteiras. As terras improdutivas alcançam 175,9 milhões de hectares e seriam suficientes para conceder posse aos mais de 800 mil produtores rurais sem-terras, conforme dados do Atlas do Agronegócio 2018, organizado pelas fundações Heinrich Böll e Rosa Luxemburgo.

“Apenas a construção de alternativas populares ao agronegócio poderá salvar o Brasil desse tiro no pé.”

Um exemplo dessa realidade de consenso e de poder é o Centro-Oeste brasileiro, região em que o agronegócio representa 80% do PIB e onde o discurso de que o “agro é pop” tem grande relevância econômica e política. A extensão média de imóveis rurais no Centro-Oeste é de 339 hectares contra os 79 hectares da média nacional. O tamanho da propriedade privada contrasta com as áreas públicas destinadas à preservação ambiental. Característico da região, o cerrado tem 178 milhões de hectares sob propriedade particular de latifundiários; apenas 7% desse bioma, que está entre os mais devastados do mundo, é protegido. De acordo com o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), em 15 anos (2000-15), o cerrado perdeu 236 mil quilômetros quadrados de cobertura vegetal. O Atlas do Agronegócio calcula que 52% de sua área vegetal sofreu perdas irreversíveis. No mesmo período, a agropecuária expandiu suas fronteiras de 76 para 90 milhões de hectares.

A ofensiva às nossas terras pelo setor ruralista carrega em si contradições fundamentais. Ao mesmo tempo que avança sobre recursos naturais e sobre as formas de resistência à sua dominação, evidencia os limites socioambientais de um sistema cuja prioridade é sempre o aumento da produtividade, aceleradamente e a qualquer custo. Como resumem Mitidiero e Goldfarb, o “agro” contribui para a reprimarização da economia, com a desindustrialização do país e uma inserção subordinada no mercado mundial. Ele tem pouca participação no crescimento do PIB, sendo responsável por apenas 5% dele. Contudo, recebe muito subsídios e paga pouco imposto, além de gerar pouco emprego e renda. Apenas a construção de alternativas populares ao agronegócio poderá salvar o Brasil desse tiro no pé, até para o capitalismo brasileiro, que é o atual modelo produtivo.

 

Veja em: https://jacobin.com.br/2022/08/o-agro-nao-e-pop/

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