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Os obstáculos de Alberto Fernández

Presidente argentino entregou ao ministro da Economia plenos poderes e enfrenta crise de liderança. Falta de habilidade para capitalizar conquistas e relação truncada com Cristina o isolaram, a um ano das eleições presidenciais

Por: Maíra Vasconcelos

Após quase três anos de governo e a um ano das próximas eleições presidenciais, a reeleição de Alberto Fernández não é uma possibilidade sequer considerada. Por um lado, os problemas e erros de condução política e a relação truncada com Cristina Kirchner. Externo a seu governo, Alberto teve que lidar com a crise social e econômica recebida do governo macrista, a maior dívida contraída com o FMI na história do país, a pandemia e a guerra na Ucrânia. Como dizem, tampouco contou com a sorte a seu favor. No entanto, sem meias-palavras, Alberto Fernández perdeu a autoridade. Hoje, poderia-se dizer que o país depende mais das ações do ministro da Economia Sergio Massa e das estratégias políticas traçadas por Fernández de Kirchner. Também, dizendo de outro modo, já pode se dar por terminado seu mandato, pese as conquistas alcançadas.

A falta de autonomia de Alberto é um fato. Além dos desacordos públicos com a vice-presidente, o ministro da Economia é hoje quem tem plenos poderes no governo. O presidente ficou sem poder de ação entre ambos e apenas sustenta o bastão presidencial, até 10 de dezembro de 2023. É oficialmente o chefe de Estado, mas sufocado por seus próprios erros e pelas estratégias daqueles que o cercam. Se Massa mostra resultados favoráveis à frente da pasta, sua candidatura para as próximas eleições é considerada bastante provável. Além do mais, a coalizão de governo, “Frente de todos”, não contaria com muitas outras opções.

Um parêntesis sobre a economia, antes de voltar ao cenário político. A depender do “dólar soja”, pode-se dizer que a economia argentina deu um leve respiro. Replico trecho de uma matéria da última quinta, 22, no jornal Ámbito Financiero: “O Ministro da Economia terá uma cobrança de impostos recorde este mês, graças aos rendimentos produzidos pelo dólar da soja”. Por isso, o governo pode também cumprir com a meta trimestral de pagamento da dívida junto ao FMI – Fundo Monetário Internacional. O chamado “dólar soja” é um tipo especial de câmbio que esses produtores podem ter acesso na hora de vender a safra. Com isso, o Estado pretende aumentar as reservas internacionais.

Mas voltando ao cenário político, algumas dessas considerações ditas a princípio partem de uma breve conversa pelo whatsApp com dois colegas jornalistas argentinos. O Marcelo Falak (@marcelofalak) é editor do jornal digital LetraP e o Sebastián Lacunza (@sebalacunza) comentarista-analista político no programa “Desiguais” da TV Pública argentina. Ambos analisam permanentemente o cenário político-econômico do país.

Em artigo recente, “Alberto, um presidente que retirou a palavra e ficou como testemunha do seu próprio mandato”, publicado no El DiarioAR, Lacunza disse que o presidente não conseguiu construir uma liderança e, tampouco, soube capitalizar as conquistas do seu governo. Perguntei se o fato de Alberto se auto assessorar na comunicação teria influenciado essa impossibilidade de apresentar os ganhos do seu próprio mandato.

Sebastián conta que o presidente sempre teve uma equipe de imprensa e comunicação. Quem aconselha Alberto é o espanhol Antoni Gutiérrez Rubí, mas durante a campanha presidencial, em 2018, Alberto tinha uma tendência a assumir o papel de porta-voz, segundo conta sua equipe de trabalho. Para Lacunza, essa postura autônoma na comunicação teve bons resultados quando presidenciável, mas passou a ser um problema ao assumir a presidência. “E neutralizou as estratégias de seus conselheiros”.

Lacunza acredita que o déficit na política de comunicação é uma questão secundária, frente a postura de rivalidade de Cristina Kirchner, que além do mais é responsável por mais de 70% dos votos à aliança. “Acho que a incapacidade de capitalizar está relacionada com um problema de liderança política, com a dimensão da sua comitiva e sua incapacidade de resolver problemas internos do governo. E a hostilidade de Cristina foi um obstáculo muito difícil de resolver”, disse.

Para Marcelo Falak, Alberto resultou ser um presidente que foi diminuindo até perder a autoridade e que, com o tempo, Fernández de Kirchner impôs seu modo de governar. Além do mais, pesa o fato de seu governo ter se deparado com uma pandemia que estava completamente fora de qualquer planejamento. “Como presidente da República ficou muito minguado, produto de uma série de crises. Para além dos seus erros, muitos erros, sem dúvida, não contou com o azar a seu favor. Acho que seu governo recebeu uma crise econômica e social muito forte”, disparou no áudio do whatsApp.

Falak desenhou um curioso e interessante panorama político da Argentina atual, utilizando como pano de fundo o modelo parlamentarista. “A sensação que dá é que se esse fosse um regime parlamentar, Alberto seria um presidente testemunho, Massa seria o primeiro-ministro e Cristina Kirchner uma chefe de bancada da maioria governante”, arquitetou. Marcelo terminou a conversa sem dar chance a uma volta albertista em 2024. “É certo que, sim, sua autoridade parece ter se reduzido sem remédio, ao ponto que a hipótese de sua reeleição nem sequer está sobre a mesa”.

As conquistas ficaram sem lugar

Alberto foi proposto como candidato pela vice, que sempre teve maior representação e popularidade. Isso por si só representava um grande desafio para que Alberto construísse sua própria liderança, considerou Lacunza. Se voltamos ao que dizia Alberto em campanha, ipsis litteris: “Temos de compreender que com Cristina não é suficiente e sem ela não é possível”. E como bem disse Sebastián, a máxima de Alberto continua vigente, “sem Cristina não é possível”.

Para citar algumas conquistas importantes do atual governo, volto ao artigo de Sebastián Lacunza e listo alguns pontos. Aumento de financiamento do setor científico, uma resposta sanitária satisfatória à pandemia, ontínuas políticas públicas sobre direitos civis e memória histórica, e incremento das obras públicas sem práticas sistemáticas de suborno.

Na política externa latino-americana, é quase irretocável a postura multilateralista do governo Fernández. “Não se sentiu tentado a intensificar a luta com Jair Bolsonaro e nomeou como seu representante em Brasília o único político capaz de acalmar este temível pistoleiro. O governo de Alberto conseguiu distanciar-se de Nicolás Maduro, condenou repetidamente o regime de Daniel Ortega, contribuiu para restaurar a democracia na Bolívia, e não se omitiu de se pronunciar contra os abusos do presidente pró-Uribe da Colômbia”, escreveu Lacunza.

No entanto, o presidente ficou aquém das expectativas, foi incapaz de resolver a “anomalia que o seu lugar no governo representava”, comentou Lacunza pelo whatsApp. Além do mais, carrega a marca do maior período inflacionário dos últimos vinte anos, que minou o salário mínimo. A projeção da inflação para este ano chega a 100%, segundo consultorias privadas.

É necessário considerar o cenário em que Alberto assumiu como presidente, principalmente, pelas obrigações financeiras impostas ao Estado para o pagamento da maior dívida já contraída na história do país junto ao FMI, de US$44 bilhões. Por isso, todas as críticas aqui citadas ao governo de Alberto devem ser colocadas ao lado dos acontecimentos externos e internos extremamente desfavoráveis que seu governo enfrentou, quando outros presidentes não se depararam com tamanhos obstáculos.

“Macri deixou uma dívida monumental e paralisante, com uma crise social e de emprego. Depois veio a pandemia, depois a guerra na Ucrânia e, no meio de tudo isto, o ataque absurdo a Cristina Kirchner. Em comparação com os seus pares, Alberto suporta a injustiça de ser avaliado num cenário tão extraordinariamente adverso”. O primeiro empréstimo da Argentina com o Fundo Monetário remonta a 1958. E o montante contratado pelo ex-presidente Macri é o maior da história de empréstimos do FMI.

O estilo não conflituoso de Alberto virou meme. O presidente com seu violão tocando Bob Dylan (seu cachorro se chama Dylan por causa do poeta e músico estadunidense), compondo músicas para resolver os problemas do país. Para além dessas piadas sempre irônicas que permeiam o cotidiano argentino, a possibilidade de ter um presidente menos confrontativo é um ponto positivo num ambiente político marcado por uma postura de enfrentamentos, como é o caso argentino. Como também jogava a favor o seu passado sem vínculos conhecidos com empresários donos de offshore* no Panamá – vale dizer, é o caso do ex-presidente Mauricio Macri e sua família – a sua presumível capacidade de articulação com diferentes setores do peronismo e experiência como militante e funcionário público.

Como disse Lacunza, todos esses fatores, “nos levaram a acreditar que ele tinha as qualidades necessárias para enfrentar o desafio e, se fosse necessário, também poderia se reinventar como líder político”. Mas não foi o que aconteceu. Esperamos os desenlaces do fim do governo nas mãos de Massa e Cristina, espera-se também o que provavelmente não irá ocorrer, ou ao menos não se tem ainda notícia de um programa efetivo de diminuição da inflação e aumento do poder aquisitivo da população.

*A TNB Investments Limited foi criada em Belize, em 2016, por Mariano Macri, irmão de Mauricio Macri. As últimas revelações do segundo capítulo do Pandora Papers contam que o empresário Nicolás Caputo, melhor amigo e sócio do ex-presidente Macri, abriu uma conta bancária na Suíça, em 2015, em nome de uma estrutura offshore para depositar dinheiro não declarado, que logo foi lavado durante a declaração fiscal promovida por Macri. (fonte: El DiarioAR)

 

Veja em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/os-obstaculos-de-alberto-fernandez/

 

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