Em 1789, Olaudah Equiano transformou sua vida em livro – denunciando seu sequestro na África e a escravidão a que foi submetido nos EUA. Editora 34 publica seu relato, estopim do abolicionismo. Nossos apoiadores concorrem a 2 exemplares
Por: Guilherme Arruda
Se a escravidão e o tráfico negreiro transatlântico foram o ápice da desumanização promovida pelo colonialismo, o abolicionismo foi, por contraste, uma afirmação radical do direito de milhões de negros e negras à humanidade, à autodeterminação e à liberdade. O histórico livro A interessante narrativa da vida de Olaudah Equiano, possivelmente a primeira autobiografia de um ex-escravizado a ser publicada no mundo, chega agora ao Brasil pela Editora 34, afirmando também o direito do povo negro a contar sua própria história e quebrar as correntes do colonialismo intelectual.
Só no século XVIII, nove edições deste livro foram publicadas na Inglaterra, um verdadeiro best-seller de seu tempo. A descrição de horrores como a captura em sua terra natal no Reino do Benin, a travessia do Atlântico em um navio negreiro, a humilhação de ser vendido como mercadoria em local público e a exploração nas plantations das colônias inglesas nas Américas nunca havia sido feita por alguém que as havia vivido, e foi de grande importância política em sua época. A história de vida de Olaudah Equiano arrastou milhares para a causa abolicionista, e contribuiu para a pressão social que desembocou na aprovação de uma lei que proibiu o tráfico de escravizados no Império Britânico.
O próprio Equiano era bastante engajado nos círculos abolicionistas que atuavam na Inglaterra. Liberto, ele foi fundador da Sons of Africa, que é apontada como a primeira organização política de negros no país. Seus membros escreviam panfletos anti-escravistas, promoviam aulas públicas sobre os crimes dos traficantes de escravos e pressionavam parlamentares para que lutassem pela abolição. A publicação da autobiografia do africano muito provavelmente foi motivada por uma estratégia de sensibilização do público letrado inglês sobre a pauta.
Em sua trajetória da escravidão à conquista da liberdade, Equiano passou pelo que os historiadores denominam de muitas margens do Atlântico. Nasceu na África, foi levado de navio negreiro ao Caribe, foi vendido a senhores da América do Norte e comprou sua alforria na Europa Ocidental. Sua história se confunde com a própria história do capitalismo, calcada na acumulação de capital oriunda do tráfico e da exploração da mão de obra escrava no Atlântico, cujas rotas econômicas acabaram sendo o berço da modernidade, como identificou o grande Eric Williams.
Ao se inserir na história global do capitalismo, a narrativa da vida de Equiano acaba inevitavelmente tendo notáveis paralelismos com os acontecimentos que marcaram a formação do Brasil, um projeto de nação construído sobre as costas de seis milhões de homens e mulheres traficadas da África durante quatro séculos – o que só aumenta a importância de sua publicação pela Editora 34 em 2022. Apenas um relato autobiográfico de um homem escravizado no Brasil sobreviveu aos nossos dias, o de Mahommah Baquaqua, e mesmo essa foi publicada originalmente em inglês, por Mahommah ter fugido de Olinda para Nova York.
Inédito em nosso país, o livro da vida de Olaudah pode estimular o leitor brasileiro a buscar esses paralelismos e visualizar com mais clareza a rotina fúnebre dos tumbeiros – como os escravizados chamavam os navios dos traficantes – que chegavam a colônias como nosso país, assentadas na mão de obra acorrentada. Sua leitura, inclusive, não está restrita ao público acadêmico. As notas e o roteiro de leitura assinados pelo historiador Carlos da Silva Jr. auxiliam na compreensão do contexto e dos sentidos da obra para o leitor não-especializado.
Com posfácio de Vincent Carretta, um dos principais especialistas na vida de Olaudah Equiano, a edição da Editora 34 ajuda a entender de forma crítica os caminhos da escrita de um liberto que não estava alheio a contradições (é interessante pensá-lo como um contemporâneo da Revolução Haitiana), que se converteu ao cristianismo, se entendia como um self-made man e buscava convencer para o abolicionismo leitores igualmente imersos na ideologia liberal típica da sociedade inglesa da virada do século XVIII para o XIX. E, por isso mesmo, é uma adição valiosa à literatura em português sobre a escravidão, a abolição e a produção literária negra.
Veja em: https://outraspalavras.net/blog/a-autobiografia-de-um-ex-escravizado-inedita-no-brasil/
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