Conselhos e conferências foram asfixiados. Os anseios das maiorias, limitados a governo eletrônico e redes sociais. Será preciso reconstruir os dispositivos de participação social: mais popular que institucional; digital, mas sem perder as rua
Por: Milena Fransceschinelli e André Leirner
Desde o fim da ditadura militar (1964-1985), o Estado brasileiro estabeleceu políticas para comunidades indígenas, de atenção ao idoso e de reconhecimento e proteção da população LGBTQIA+ envolvendo atores desses próprios grupos em sua formulação. Esses são alguns exemplos indicativos de quanto a transição democrática foi capaz de produzir canais aptos a assegurar a participação, para além dos partidos políticos, de múltiplos atores sociais, na elaboração de políticas públicas1. Tais direitos permitiram a emergência e a constituição de mecanismos de controles democráticos não eleitorais, formas pelas quais cidadãos, direta ou indiretamente, por intermédio de instituições que fazem parte do arcabouço do Estado, incidem no curso de determinada ação de política pública.
Os conselhos e as conferências são exemplos emblemáticos de como a sociedade tem contribuído para o funcionamento democrático do Estado para além do ciclo eleitoral (Mezarobba 2020). O período 2003 – 2016 foi marcado por um crescente de conferências municipais, estaduais e nacionais, chegando aos milhares. Quatro mil pontos de cultura foram implantados no período2. Alguns conselhos estão presentes em 98% dos municípios brasileiros. Até recentemente tínhamos entre 60 e 65 mil conselhos no Brasil: há mais conselheiros da sociedade civil do que vereadores.
Essa maior diversidade e potência de mecanismos de controle social e, no geral, de mecanismos de responsabilização são indicativos da qualidade da democracia. Impulsionado pelo sucesso da implementação do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), a ação participa.br realizada pela secretaria de governo do governo federal chegou a contar com 119 comunidades, 102 trilhas de participação, 13,5 mil usuários cadastrados, 400 mil comentários e mais de 6 milhões de acessos (Peixoto 2015), marco inédito na história participativa do país e caso exemplar no cenário da democracia. É desse período ainda o Sistema Nacional de Participação Social, Decreto 8243/2014, marco regulatório do setor, fruto de pressões por ganhos organizacionais e de gestão por parte de movimentos sociais e de setores do Estado, rejeitado na Câmara em 28/10 do mesmo ano3 e revogado em definitivo em 2019.
Apesar desse florescimento democrático, algo inclusive reconhecido no mundo, é necessário admitir que do ponto de vista pragmático esse movimento foi mais institucional do que popular. As representações institucionais conquistadas nesse período careceram, em sua maioria, de uma maior participação dos coletivos que davam sustentação a estas cadeiras, algo que contribuiu com o quadro de fragilidade política e institucional que ensejou a inflexão autoritária que se viu em 2016. Havia uma “forte” participação, mas isso não se refletiu em força política ou em representação legislativa. O impeachment de Dilma Rousseff (2016) é prova disso.
A asfixia de conselhos e a caça aos órgãos de participação social colegiada
Realizado o impeachment, o primeiro ato de Michel Temer na presidência foi a acabar com a Comissão da Verdade, responsável por investigar os abusos cometidos na ditadura. Ato contínuo, atacou-se a base de contato do governo com as comunidades. Primeiro, eliminou-se o Ministério da Cultura, e com ele, do programa de pontos de cultura. Ato contínuo, a base de dados contendo nome, entidade, e-mail, telefone e o mapa de articulação de interesses dos ativistas que participaram do participa.br foram capturados pela ABIN4. Depois, na frente institucional, esvaziou-se o Conselho de Cidades5, o Fórum Nacional de Educação 6 e o conselho da Empresa Brasileira de Comunicação – EBC7. 2019 viu a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA)8 e de dezenas de colegiados não previstos em lei, mas que operavam normalmente9. O Conselho de Meio Ambiente perdeu 18 de suas 22 cadeiras da sociedade civil e dezenas de decretos foram ainda emitidos instituindo mudanças em 52 colegiados de áreas as mais diversas 10 e 55 colegiados ligados à Casa Civil11. Atos ainda alteraram o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas12 e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Esses são alguns dos principais atos de desmonte de órgãos colegiados de representação da sociedade civil, uma lista mais completa desses atos encontra-se no fim desse documento[1].
A substituição incremental de canais participativos pelas ouvidorias de governo eletrônico
Concomitantemente ao desmonte de políticas participativas, foi implementado um novo marco legal de governo eletrônico no país. Nesse novo marco, os canais de controle social de políticas públicas passaram a ser regulados a partir de um novo repertório participativo, característico do campo tecnológico, em substituição ao repertório anterior, de cunho histórico-político13. As técnicas recomendadas de escuta social nesse contexto são os “minipúblicos” e o emprego de inteligência artificial para a lida da massa de dados.
Minipúblicos são reuniões qualitativas realizadas com uma amostra estatística da população. Ainda que efetivos, descartam padrões históricos de lutas por direitos e oferecem um expediente circunstancial à participação, haja vista que não mantém qualquer mobilização dos sujeitos participantes, ou comunidades as quais pertencem, após a escuta. A inteligência artificial, por sua vez, relega a programadores e tomadores de decisão, sejam eles públicos ou privados, o critério de análise e avaliação de dados, de modo unilateral. Tipos de participação em que cidadãos são destituídos de espaços regulares e reconhecidos de encontro e representação, locais estabelecidos para o exercício do debate e concertação frente ao dissenso e a divergência. Uma opção participativa que tem como efeito uma democracia superficial, esvaziada de qualquer natureza pedagógica, ausente de oportunidades de construção de consciências autônomas e de sujeitos sociais historicamente reconhecidos.
A emergência da comunicação de massa politicamente orientada e a disputa pela voz popular
O período 2016-2022 é também um período de “crise da democracia” aqui e no mundo (Levitsky e Ziblatt 2019; Landemore 2020). A eleição americana de 2016, o Brexit (2016-2020) e a ascensão de democracias iliberais (Zakaria 1997, 2007) são exemplos desse fenômeno. O Brexit e a eleição americana de 2016, em especial, oferecem aspectos peculiares dessa crise, encontrados também no Brasil a partir de 2017 e 2018.
Nesses episódios, observamos um novo modelo de conexão entre o poder político e apelo popular por uso instrumental de mídias sociais e cultivo de comunidades circunscritas a bolhas de informação. Essas bolhas constituem mundos apartados de um contexto social e institucional mais amplo, fenômeno alcançado pela veiculação reiterada de mensagens de descrédito e ressentimento à organismos de controle, sistemas formais de checagem de fatos (jornais e universidades) e meios institucionalizados de representação política. Medidas que encontram sucesso junto a camadas dotadas de ressentimento social e baixa confiança em instituições, pessoas cuidadosamente colhidas por meio da inteligência analítica de mídias sociais14, que passam a adotar e compartilhar comportamento antipolítico e a viver, por meio das mídias sociais, uma ilusão de proximidade entre seus iguais. Essa perspectiva de anti-poder encontra ressonância com uma perspectiva de ação pública antissistema que os representa. Possuem impressão de que compõem um coletivo dotado de uma força antissistema quando, na realidade, são objeto de manipulação por sofisticados mecanismos de circulação de conteúdo ideológico controlados por grupos políticos específicos.
O caso da Cambridge Analitica, as estratégias de Steve Bannon e do seu site alt-right, são exemplos conhecidos desses procedimentos (Grassegger e Krogerus 2017; Cadwalladr 2018). O caso brasileiro do gabinete do ódio não é exceção15. Esses mecanismos de circulação ideológica (indústria cultural) inicialmente descritos por Adorno e Horkheimer e utilizados durante a ascensão do nazismo (Cook 1996; Adorno e Horkheimer 2002), voltam a baila no século XXI fortalecidos por tecnologias sociais e técnicas de economia do comportamento (Sunstein 2013, 2017), compondo estratégias de manipulação e controle social em larga escala (Bond et al. 2012; Zuboff 2015; Zubbof 2019).
O resultado dessa prática é um cenário de disputa por legitimidade do apelo popular. Processos participativos tradicionais, ainda que excepcionalmente relevantes do ponto político, se mostram tímidos em termos de capilarização social e número de participantes envolvidos quando comparados à processos massivos de circulação de conteúdo ideológico por meio de mídias sociais. Processos participativos e de incidência política comunitária tradicionais ecoam de maneira débil no tecido social comunitário, quando comparados a campanhas de comunicação de massa politicamente orientadas, perdendo relevância. A ausência de pontos de cultura e a presença de cultos pentecostais agravam esse cenário. O movimento escola sem partido é um exemplo desse tipo de estratégia. Uma coalizão formada de maneira rápida, a partir de uma campanha, pôs em cheque o sistema participativo do sistema de educação.
A pandemia de covid-19 (2020) teve ainda papel preponderante nesse quadro uma vez que encontros presenciais se tornaram impraticáveis, o que comprometeu a realização de atividades participativas, quando aconteciam, como previstas em lei. Por sua vez, a participação por meio digital por não ser previsto na legislação, e quando aconteceu, muitas vezes não foi reconhecida legalmente.
De modo específico, observou-se um anacronismo no modo de comunicação política por parte das esquerdas. A falta de traquejo nas redes sociais isolou membros de conselhos de suas comunidades, deixando-as à mercê de forças políticas que se organizaram e que, com uso de mídias sociais, tomaram o debate público e por consequência, a dimensão cotidiana da comunicação nessas comunidades.
Os fatos acima mostram que a participação está inscrita atualmente em um novo contexto. O campo da comunicação política adquire centralidade e o tema da legitimidade do processo participativo passa a ser um campo de disputa. O marco legal mostra-se defasado frente aos desafios atuais do engajamento político-popular e há um vácuo institucional dentro do campo civil no que toca a esse tema. Esses pontos são desenvolvidos de maneira sucinta, a seguir
A centralidade da comunicação política
Como advento das mídias sociais, o modo pelo qual a informação flui entre o governo e a sociedade foi alterado. A comunicação política passa a ser objeto de ação permanente e não restrita aos períodos eleitorais e adquire ainda maior centralidade no processo político. Mídias sociais se tornam redes de advocacy bidirecionais e conectam bases diretamente com centros de poder de maneira dinâmica, enfraquecendo a relevância de canais institucionalizados de comunicação. A resposta governamental passa a ser direta, por mídia social, by-passando instâncias representativas e canais institucionais. Advocacy e influência dentro das redes e afinidades pessoais ganham peso e muitas vezes substituem a participação institucionalizada. Por sua vez, métricas das redes sociais passam a expressar a “vontade popular”, disputando legitimidade com processos participativos tradicionais. Não há controle social desse processo, uma vez que esse processo se intitula o “novo controle social”. O território – pontos de cultura, igrejas e locais de encontro e socialização – opera como lócus de reafirmação e correção das diretrizes comportamentais propagandeadas em rede.
No que toca à centralidade dos processos de comunicação política, portanto, o desafio que se apresenta é reinserir a participação social no circuito de circulação de conteúdos ideológicos de maneira relevante e bidirecional – em diálogo permanente com a população. Por sua vez, isso implica em estruturar e constituir uma indústria cultural – coleta, produção, circulação e registros sistemáticos de informações – para fins democráticos, constituindo uma memória do processo de luta por direitos.
Diferentemente da direita, que construiu sua indústria cultural atrelada a cultos evangélicos, academias militares e grupos empresariais, a esquerda não tem conseguido proporcionar espaços para vínculos de pertença como fez no passado com as comunidades eclesiais de base, pontos de cultura, sindicatos e associações.
Nesse contexto, é importante reconhecer a luta pela afirmação de identidades sociais realizada por minorias – mulheres, negros, LGBTQIA+, indígenas, etc. e seu protagonismo na recente articulação e comunicação política e reconhecer sua potência. O desafio reside em ampliar a influência do campo progressista para além do arco ideológico das esquerdas e em desenhar estratégias agregadoras, que operem além da defesa de nichos identitários de interesse e criem novas perspectivas de identificação e pertencimento.
A disputa pela legitimidade participativa
Nesse novo quadro, de comunicação de massa politicamente orientada, a legitimidade participativa passa a ser campo de disputa. De um lado, instrumentos instituídos legalmente, mas com pouca oxigenação popular. Do outro, campanhas de comunicação de massa politicamente orientadas, dotadas de ferramentas tecnológicas de reconhecimento, classificação e mobilização customizada de indivíduos e grupos de interesse, e com grande capacidade de mobilização popular. Não é preciso dizer que a baixa oxigenação popular dos instrumentos constituídos tem levado ao questionamento tanto da legitimidade desses espaços quanto das agendas discutidas nessas arenas participativas16. Temos observado, ainda, grupos de interesse que se contrapunham aos processos participativos institucionalizados criarem movimentos de mobilização política para ocupar os espaços de participação institucionalizada, que ora criticavam17.
Fica claro, portanto, que a conexão com a base popular é hoje elemento estratégico e fundamental para sustentação de agendas em espaços participativos, e a ausência dessa conexão tem colocado em xeque a legitimidade desses espaços. O desafio que se apresenta, nesse quesito, é implementar metodologias e tecnologias sociais que possam superar a anemia participativa e motivar o engajamento político pedagógico popular – cultura plural, viva e participativa, aderente à realidade do cidadão (paradigma freireano). Tal iniciativa já se encontra em implementação dentro do campo conservador18, e de extrema direita, e ainda não se observa uma implementação de maneira sistemática dessa natureza dentro do campo popular democrático.
A fragilidade normativa do controle social
A facilidade com que o campo participativo democrático foi desmontado na história recente do país demonstra a fragilidade normativa da atividade participativa para o controle social no sistema político brasileiro. A ausência de um marco regulador integrado favorece a profusão de atos normativos no setor, e cria um quadro de multiplicação e fragmentação de instâncias participativas e de relacionamento entre cidadão e o Estado. A legislação participativa setorial, de ouvidoria, de acesso a informações, de transparência e de controle social operam em paralelismo e com baixa integração. Resulta desse panorama uma arquitetura verticalizada da contribuição social, cuja gestão apresenta custos elevados – financeiros e de oportunidade – para o Estado e, especialmente, para o cidadão. O que se observa é um cenário participativo complexo e com pouco apelo a oxigenação e a contribuições de camadas mais extensas da população.
Não há, tampouco, um setor estatal responsável pela gestão de dados ou métrica estabelecida para a aferição da qualidade e transparência participativa. Essa lassitude metodológica e procedimental encontra par na baixa capacidade deliberativa dos conselhos. Apesar de suas atribuições regimentais de aprovações de contas e de controle de fundos públicos, operam mais como mecanismos de coalizão para fins políticos do que instâncias de governança propriamente ditas, apesar de estarem atrelados regimentalmente ao Executivo. Contudo, tampouco encontramos relações estabelecidas de contribuição entre conselhos e o legislativo municipal.
Consequentemente testemunha-se, por um lado, heterogeneidade metodológica na coleta de informações e dados cidadãos, métodos participativos em disputa e um panorama de fragmentação na gestão de dados dificultando a elaboração de diagnósticos sociais amplos e integrados. Por outro, lassitude metodológica e procedimental e baixa capacidade de influência e deliberação, seja junto ao Executivo ou ao Legislativo, nas três esferas federativas.
Nesse quadro, o desafio que se impõe é (i) estabelecer, na legislação constitucional brasileira, a garantia de existência dos conselhos populares; (ii) realizar uma consolidação normativa do marco legal para a participação social e a aprovação de um Sistema Nacional de Participação Social19; (iii) instituir e estruturar uma área de governo para essa finalidade, relacionada à área de transparência e gestão de dados, com representação dos conselheiros em postos estratégicos de governança20; (iv) consolidar uma visão metodológica de meios de coleta de informações cidadã, (v) implementar uma métrica e um prêmio nacional de qualidade para o controle social e para a participação, (vi) integrar órgãos de controle – tribunais de contas, controladorias, ministério público e defensorias – nos procedimentos participativos de modo a fortalecer o controle social de políticas publicas, inclusive nas etapas de guarida e gestão de dados; (vii) restabelecer e superar lógicas setoriais de participação e controle social nas políticas públicas – implementação de lógicas “orientada a objeto” (metas multissetoriais compartilhadas) e de base ambiental e territorial21 e (viii) incrementar capacidade deliberativa e de gestão de conselhos, consolidando seu papel contributivo junto ao Legislativo – criando pontes qualificadas entre a produção legislativa e a sociedade, e deliberativo junto a Executivo.
O personalismo e a baixa oxigenação na operação dos processos participativos
É fato que processos participativos tradicionais têm tido baixa oxigenação junto à sociedade civil quando comparados à campanhas de comunicação de massa politicamente orientadas. A seção acima, sobre centralidade da comunicação fala um pouco desse tema. É preciso admitir, contudo, que essa baixa participação não se deve somente à falta de recursos e insumos de comunicação nesses processos, mas também à concentração de poder. É notório que há uma renovação excepcionalmente baixa dos quadros participativos e que inexistem linhas de capacitação continuada para o controle social. Nos conselhos, perdura ainda uma visão personalista de representação, com foco em lideranças históricas que, na ausência de protocolos de uma memória histórica da participação, se tornam testemunho pessoal de um percurso heroico de luta por direitos. Observa-se que tampouco há um regime de governança organizada do setor de participação e controle social. Como consequência, além de baixa oxigenação, observamos uma lacuna de memória institucional desse setor. Os registros existentes são peças normativas, de cunho legal e estudo acadêmicos que pouco apelam ao diálogo com as necessidades cotidianas das populações. Nesse sentido, o desafio que se impõe é criar linhas de formação continuada para a participação e o controle social22, e fortalecer a classe dos conselheiros por meio da constituição de uma rede nacional. Essa medida poderá, inclusive, conferir maior segurança jurídica à atividade participativa.
Esses desafios, uma vez reunidos, formam uma agenda para uma nova participação e controle social no Brasil.
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