Mais de 1.500 jatos atravancam o balneário onde os super-ricos fazem planos. Mas dali já não se esperam saídas. A globalização refluiu, a economia global fragmenta-se e patina. Da “nova ordem” restaram desigualdade, arrogância e impotência
Por: Michael Roberts | Tradução: Eleutério Prado
Esta semana, o acampamento da rica elite global do Fórum Econômico Mundial (WEF em inglês) começou novamente após o interregno da pandemia da covid. Os principais líderes políticos e empresariais voaram em seus jatos particulares para discutir as mudanças climáticas e o aquecimento global, bem como a iminente crise econômica global, a crise do custo de vida e a guerra na Ucrânia.
O humor reinante é aparentemente pessimista. Dois terços dos principais economistas entrevistados pelo WEF acreditam que é provável que haja uma recessão global em 2023; quase um em cada cinco dizem que é extremamente provável que ela ocorra. Os líderes corporativos também estão ansiosos; 73% dos CEOs em todo o mundo avaliam que o crescimento econômico global diminuirá nos próximos 12 meses. Essa é a perspectiva mais pessimista desde que a pesquisa do WEF foi feita pela primeira vez há 12 anos.
Sob neve, pouco antes do início do Fórum na exclusiva estação de esqui de Davos, na Suíça, o WEF publicou seu Relatório de Risco Global . Nele consta uma leitura chocante sobre o estado do capitalismo global na década de 2020.
O relatório diz que: “a próxima década será caracterizada por crises ambientais e sociais, impulsionadas por tendências geopolíticas e econômicas subjacentes”. A crise do custo de vida é classificada como o risco global mais grave nos próximos dois anos, com pico no curto prazo. A perda de biodiversidade e o colapso do ecossistema são vistos como um dos riscos globais de deterioração mais rápida na próxima década e todos os seis riscos ambientais figuram entre os dez principais riscos nos próximos dez anos.
O relatório continua assim:
“A inflação continua a ser impulsionada pela oferta e isso pode levar à estagflação, cujas consequências socioeconômicas podem ser graves, dada uma interação sem precedentes com níveis historicamente altos de dívida pública. A fragmentação econômica global, as tensões geopolíticas e a reestruturação mais difícil podem contribuir para o endividamento generalizado nos próximos 10 anos”.
O documento observa que “a tecnologia exacerbará as desigualdades”. Os esforços de mitigação e adaptação climática são considerados como uma aposta arriscada, à medida que a natureza entra em colapso. Ademais, as “crises associadas aos alimentos, aos combustível e aos custos exacerbam a vulnerabilidade social, enquanto o declínio dos investimentos no desenvolvimento humano corrói a resiliência futura”. Aparentemente, o risco de uma “policrise” tem se acelerado.
O que os organizadores do WEF e seus participantes planejam fazer sobre essa “policrise”? Bem, eles partem da suposição de que o capitalismo deve sobreviver, admitindo que a melhor maneira de atingir o objetivo é “moldar” o capitalismo de modo que ele se torne “inclusivo para todos”. Klaus Schwab, o co-fundador do WEF gosta de chamá-lo de “capitalismo das partes interessadas”. Eis como explica:
“De um modo geral, temos três modelos para escolher. O primeiro é o “capitalismo dos acionistas”, adotado pela maioria das nações ocidentais; ele afirma que o objetivo principal de toda corporação deve ser maximizar seus lucros. O segundo modelo é o “capitalismo de Estado”, que confia ao governo a definição da direção da economia; esse modelo ganhou destaque em muitos mercados emergentes, inclusive na China. Mas, comparada a essas duas opções, a terceira é bem mais recomendável. O “capitalismo das partes interessadas”, um modelo que propus pela primeira vez há meio século, posiciona as empresas privadas como administradoras da sociedade e é claramente a melhor resposta aos desafios sociais e ambientais de hoje.”
As grandes corporações devem ser os “curadores da sociedade”; devem ser a principal força na solução dos “desafios sociais e ambientais de hoje”. Por isso é preciso substituir o “capitalismo de acionistas” em que “o foco único está nos lucros, o que torna o capitalismo cada vez mais desconectado da economia real”. Segundo Schwab, “essa forma de capitalismo não é mais sustentável”. Em contraste, as grandes corporações, em conjunto com governos e organizações multilaterais, podem desenvolver um “capitalismo de partes interessadas”, o qual, segundo Schwab, pode “aproximar o mundo de alcançar objetivos compartilhados”.
Todos os anos, para coincidir com a reunião do WEF, a Oxfam divulga seu relatório anual sobre desigualdade; assim, expõe também a hipocrisia do “capitalismo das partes interessadas”. O relatório deste ano mostrou o aumento da desigualdade de riqueza e renda desde a pandemia. “Nos últimos dois anos, o 1% dos super-ricos do mundo ganhou quase o dobro da riqueza dos 99% restantes juntos” – disse a Oxfam.
Embora existam quase 8 bilhões de pessoas no mundo, pouco mais de 3.000 constaram como bilionários em novembro de 2022. Esse pequeno grupo de pessoas soma uma riqueza de quase US$ 11,8 trilhões – o equivalente a cerca de 11,8% do PIB global. Enquanto isso, pelo menos 1,7 bilhão de trabalhadores vivem em países onde a inflação está superando o crescimento salarial. As fortunas bilionárias engordam US$ 2,7 bilhões (R$ 14,1 bilhões) por dia.
O relatório anual de riqueza global do Credit Suisse é a análise mais abrangente da riqueza pessoal global e sua distribuição. A ediçao de 2022 revelou que, até o final de 2021, a riqueza global total atingira US$ 463,6 trilhões, ou mais de 4,5 vezes a produção anual mundial. A riqueza global subiu 9,8% em 2021, muito acima da média anual de 6,6% registrada desde o início do século. Se se excluir o movimento das moedas, a riqueza global agregada cresceu 12,7%. É a taxa anual de crescimento mais rápida já registrada.
Esse aumento vertiginoso deveu-se a dois fatores: o aumento acentuado dos preços dos imóveis e um boom do mercado de ações alimentado pelo crédito. Por isso, quase todo esse aumento de riqueza foi para os mais ricos do mundo. De fato, em 2020, 1% de todos os adultos (56 milhões) no mundo possuía 45,8% de toda a riqueza pessoal do mundo; enquanto 2,9 milhões possuíam apenas 1,3%. Em 2021, essa desigualdade se agravou. Em 2021, o 1% mais rico agora possuía 47,8% de toda a riqueza pessoal, enquanto 2,8 bilhões possuíam apenas 1,1%. E os 13% do topo possuem 86% do todos riqueza.
O relatório da Oxfam aponta que para cada US$ 1 arrecadado em impostos, apenas US$ 0,04 vêm de impostos sobre a riqueza. O fracasso em tributar a riqueza é mais pronunciado em países de baixa e média renda, onde a desigualdade é maior. Dois terços dos países não têm nenhuma forma de imposto sobre herança sobre riqueza e bens passados para descendentes diretos. Metade dos bilionários do mundo agora vive em países sem esse imposto, o que significa que US$ 5 trilhões serão repassados sem impostos para a próxima geração, uma soma maior que o PIB da África.
As alíquotas máximas de imposto sobre a renda tornaram-se mais baixas e menos progressivas, com a alíquota média dos mais ricos caindo de 58% em 1980 para 42% mais recentemente nos países da OCDE. Em 100 países, a taxa média é ainda menor, de 31%. As taxas de imposto sobre ganhos de capital – na maioria dos países, a fonte de renda mais importante para o 1% mais rico – são de apenas 18%, em média, em mais de 100 países. Apenas três países tributam mais os rendimentos do capital do que os rendimentos do trabalho.
Muitos dos homens mais ricos do planeta hoje conseguem pagar quase nenhum imposto. Por exemplo, um dos homens mais ricos da história, Elon Musk, pagou uma “taxa de imposto real” de 3,2%, enquanto outro dos maiores bilionários, Jeff Bezos, paga menos de 1%.
A resposta política da Oxfam é tributar os ricos. A organização pede um imposto de até 5% sobre os multimilionários e bilionários do mundo, que poderia arrecadar US$ 1,7 trilhão por ano “o suficiente para tirar 2 bilhões de pessoas da pobreza e financiar um plano global para acabar com a fome”. “O objetivo final deve ser ir além e abolir completamente os bilionários, como parte de uma distribuição mais justa e racional da riqueza mundial.”
A pergunta que deve ser feita naturalmente é: quão realista vem a ser esperar que os governos que apóiam o “capitalismo das partes interessadas” introduzam impostos mais altos sobre riqueza e renda? Nesse caso, quão realista é supor que eles abolirão todos os bilionários por meio de impostos? Isso vai exigir uma luta de massas para levar ao poder governos de trabalhadores dispostos a trabalhar em coordenação global. Nesse caso, por que tributar os ricos, se, em vez disso, for mais razoável acabar com o capitalismo completamente?
A mesma história se repete com as mudanças climáticas. A Convenção sobre Mudanças Climáticas e a Convenção sobre Biodiversidade da ONU têm enormes dificuldades até mesmo para cumprir a meta da COP de Paris, de limitar as temperaturas médias globais a 1,5°C acima dos níveis pré-industriais. O ano passado foi o quinto mais quente já registrado, com a temperatura média global quase 1,2°C acima dos níveis pré-industriais, de acordo com o Programa de Observação da Terra da União Europeia.
O ano passado foi marcado por 12 meses de extremos climáticos. A Europa registrou o verão mais quente desde sempre, apesar da presença pelo terceiro ano consecutivo do fenômeno La Niña, o qual tem efeito de arrefecimento – apurou o Copernicus Climate Change Service na sua ronda anual do clima da Terra. Ao mesmo tempo, as emissões de gases de efeito estufa dos EUA aumentaram novamente em 2022, deixando o país ainda mais atrás de suas metas assumidas em Paris, apesar da aprovação de uma ampla legislação de energia limpa no ano passado.
As emissões globais de dióxido de carbono provindas de combustíveis fósseis e cimento aumentaram 1,0% em 2022, atingindo um novo recorde de 36,6 bilhões de toneladas de CO² (GtCO²). As emissões “estão aproximadamente constantes desde 2015” devido a um modesto declínio nas emissões do uso da terra, equilibrando aumentos modestos no CO² fóssil. Mas lembre-se, níveis estáveis de emissão não são suficientes para impedir que o mundo continue aquecendo além dos limites. É necessária, no mínimo, uma redução de 50% nas emissões até o final desta década e zero emissões liquidas até o final do século.
Em vez disso, as emissões dos EUA aumentaram 1,3% no ano passado, de acordo com estimativas preliminares da consultoria ambiental Rhodium Group, lideradas por fortes aumentos relacionados ao setor imobilíario, indústria e transporte do país. “Com o ligeiro aumento nas emissões em 2022, os EUA continuam a ficar para trás em seus compromissos de cumprir a meta estabelecida no Acordo de Paris de reduzir as emissões de GEE 50-52% abaixo dos níveis de 2005 até 2030”, disseram os autores. No ano passado, as emissões dos EUA ficaram apenas 15,5% abaixo dos níveis de 2005.
Mas leitores, não se preocupem! O porta-voz do clima dos EUA, John Kerry, esteve em Davos esta semana para reclamar do lento progresso. E o ex-governador do Banco da Inglaterra, Mark Carney, agora o organizador entre os bancos internacionais de um fundo de financiamento climático, também estava lá para reclamar do lento progresso. Tenho certeza de que isso levará à ação – acreditem!
E depois há o estado da própria economia mundial. Pouco antes de Davos, a chefe do FMI, Kristalina Georgieva, alertou que um terço da economia global seria atingido pela recessão este ano. O FMI calcula que o crescimento real do PIB global será de apenas 2,7% em 2023. Ora, isso não aponta oficialmente para uma recessão em 2023 – “mas se parecerá, sim, com uma recessão”. E o FMI deve reduzir suas previsões novamente no final deste mês. “Há riscos para as perspectivas permanecem extraordinariamente negativas e magnificadas”.
A previsão do FMI é a mais otimista. A OCDE estima que o crescimento global desacelere para 2,2% no próximo ano. “A economia global está enfrentando desafios significativos. O crescimento perdeu ímpeto, a alta inflação se espalhou por todos os países e setores e está se mostrando persistente. Os riscos são distorcidos para o lado negativo.” Então a UNCTAD, em seu relatório mais recente sobre Comércio e Desenvolvimento, também projeta que o crescimento econômico mundial cairá para 2,2% em 2023. “A desaceleração global deixaria o PIB real ainda abaixo de sua tendência pré-pandêmica, custando ao mundo mais de US$ 17 trilhões – quase 20% da renda mundial”.
O mais recente relatório Global Economic Prospects do Banco Mundial é ainda mais pessimista. O Banco Mundial avalia que o crescimento global recuará para o terceiro ritmo mais fraco em quase três décadas, ofuscado apenas pelas recessões globais de 2009 e 2020. Será uma desaceleração acentuada e duradoura, com o crescimento global caindo para 1,7% em 2023, com deterioração generalizada: em praticamente todas as regiões do mundo, o crescimento da renda per capita será mais lento do que na década antes do covid-19. E essa foi a década do que chamo de Longa Depressão. Até o final de 2024, os níveis do PIB nas economias em desenvolvimento estarão cerca de 6% abaixo do nível esperado às vésperas da pandemia.
Além disso, há as crescentes tensões geopolíticas – não apenas o conflito Rússia-Ucrânia, mas a crescente “fragmentação” da economia mundial. A hegemonia estadunidense, construída em torno da “globalização” e da Grande Moderação dos anos 1980 até os anos 2000, acabou.
Georgieva, a diretora-gerente do FMI, está particularmente preocupada. Em sua mensagem pré-Davos, ela gemeu: “estamos enfrentando o espectro de uma nova Guerra Fria que pode ver o mundo se fragmentar em blocos econômicos rivais”. Os ganhos da globalização poderiam ser “desperdiçados”. Mas é outro mito que a “globalização” beneficiou a maioria. Georgieva diz que “desde o fim da Guerra Fria, o tamanho da economia global praticamente triplicou e quase 1,5 bilhão de pessoas saíram da pobreza extrema”. Mas as melhorias alcançadas na produção global e nos padrões de vida limitaram-se principalmente à China e ao Leste Asiático. O crescimento econômico mundial desacelerou desde a década de 1990 e a pobreza não foi reduzida para cerca de 4 bilhões de pessoas no planeta, enquanto a desigualdade aumentou (como revelado acima).
Georgieva quer reverter o aumento de novas restrições comerciais, que é “uma perigosa ladeira escorregadia rumo à fragmentação geoeconômica descontrolada”. Ela avalia que o custo de longo prazo da fragmentação do comércio sozinho pode variar de 0,2% da produção global em um cenário de “fragmentação limitada” a quase 7% em um “cenário severo” – aproximadamente equivalente à produção anual combinada da Alemanha e do Japão. Se o desacoplamento tecnológico for adicionado à mistura, alguns países podem ter perdas de até 12% do PIB. A globalização aumentou as desigualdades e não conseguiu reduzir a pobreza; é provável que a fragmentação intensifique esses resultados.
Qual é a resposta de Georgieva para tudo isso? Primeiro, fortalecer o sistema de comércio internacional. Em segundo lugar, ajudar os países vulneráveis a lidar com a dívida. Terceiro, intensificar a ação climática. Ela mesma resumiu a sua proposta: “As discussões em Davos serão um sinal de esperança de que podemos seguir na direção certa e promover uma integração econômica que traga paz e prosperidade para todos”.
Esperança, muita esperança! Davos quer “moldar” o capitalismo, mas em vez disso está assistindo seus projetos despencarem água abaixo.
Veja em: https://outraspalavras.net/mercadovsdemocracia/luxo-e-angustia-nos-saloes-dourados-davos/
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