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Célia Xakriabá, jenipapo e urucum no Congresso

Jovem parlamentar encarna a voz do Cerrado, onde vivem mais de 70 povos ancestrais. Aposta em colocar os saberes originários nas políticas públicas e ampliar demarcação de terras indígenas que, hoje, protegem 80% das florestas do país

Por: Letícia Leite | Entrevista com: Célia Xakriabá | Créditos da foto: Pedro Gontijo/Agência Senado

Célia Xakriabá é uma conhecida criadora de palavras. E quem cria palavras faz o parto de mundos. É com essa potência que, aos 33 anos, ela entrará no Congresso brasileiro como uma das mais jovens parlamentares indígenas do planeta. Eleita deputada federal pelo PSOL de Minas Gerais com 101.154 mil votos, Célia é uma indígena do Cerrado. Desde menina luta ao lado não apenas dos povos indígenas, mas também das outras populações tradicionais do bioma que já foi 50% destruído, apesar de ser o berço das águas do Brasil. Não há nomes mais poéticos do que o das comunidades do Cerrado: além de quilombolas e indígenas, camponeses e pescadores artesanais, há quebradeiras de coco-babaçu, raizeiras, geraizeiras, fecho de pasto, apanhadoras de flores sempre-vivas, benzedeiras, retireiras, vazanteiras, veredeiros, vacarianos, catingueiros, entre outras. Cada uma dessas comunidades é um mundo conectado com todos os outros. E todas essas comunidades-mundos estão ameaçadas de extinção, tanto quanto o ecossistema ao qual pertencem e que está sendo arrasado pelo agronegócio predatório e por grandes corporações transnacionais. Em setembro de 2022, o Tribunal Permanente dos Povos condenou o Estado brasileiro por ecocídio do Cerrado e genocídio de seus povos.

A mulher Célia Xakriabá, que chega ao Congresso brasileiro para, como ela afirma, defender a Terra, é filha de sua ancestralidade e da luta pela vida em uma das paisagens mais fascinantes do Brasil. Por essa luta fez greve de fome e dormiu embaixo de uma das pilastras modernistas de Oscar Niemeyer (1907-2012) no Palácio do Planalto. Lançou sua campanha no exato local de uma grande chacina ocorrida em fevereiro de 1987 no norte de Minas que assinalou o povo Xakriabá: as lideranças Rosalino Gomes de Oliveira, Manuel Fiúza da Silva e José Pereira Santana foram assassinados enquanto dormiam.

Célia Xakriabá recebeu a equipe de SUMAÚMA no dia 3 de janeiro, no Ministério dos Povos Indígenas. Ela compareceu à posse de Luiz Inácio Lula da Silva, de ministras e ministros afinados com as causas indígena e climática, ecoou seu canto e poesia no primeiro dia informal de trabalho de Joenia Wapichana na presidência da Funai e ajudou a ministra Sonia Guajajara a receber os parentes que chegavam de todo o Brasil com demandas e curiosidades sobre o novo ministério. Célia sabe da potência do momento. E de sua delicadeza: os indígenas finalmente ocupam o poder central em cargos estratégicos – e as protagonistas são mulheres. A nova deputada federal é uma das fundadoras da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA), criada para enfrentar a violência de gênero, questão que atravessa a luta pela Terra e pelo equilíbrio climático.

Nesta entrevista, Célia Xakriabá encarna a diferença da política indígena para a convencional. Sua diferença já está na linguagem – e nada muda em profundidade sem a mudança na linguagem. A poética de Célia é borduna. Sua moda é ancestral e não anual, como explica. Sua vestimenta é gesto político.

Com a palavra, a parentíssima.

Célia Xakriabá em protesto contra o genocídio indígena, em Brasília. Foto: Pablo Albarenga/SUMAÚMA

Quem é Célia Xakriabá e o que o Brasil e o mundo podem esperar de uma das deputadas indígenas mais jovens do planeta?

Sou Célia Xakriabá, do povo indígena Xakriabá, do bioma Cerrado, dessa força que vem de raiz profunda. O território Cerrado, bioma Cerrado, onde vivem mais de 70 povos indígenas. O bioma Cerrado faz divisa com mais de 11 estados brasileiros e tem como referência ali no norte de Minas Gerais o povo Xakriabá, que é a maior população indígena do estado. Também sou da Articulação Nacional das Indígenas, cofundadora da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga), e agora sou a primeira indígena deputada federal pelo estado de Minas Gerais, rompendo com o racismo da ausência. Como deputada indígena mais jovem do planeta, tenho um compromisso com a mulher mais velha da humanidade, que é a Terra.

Como foi acompanhar Raoni subindo a rampa com Lula?

Para mim foi muito emocionante ver a posse de Lula, porque a primeira e última vez que eu estive no Palácio antes disso foi no penúltimo encontro nacional dos povos do Cerrado, e passei um dia inteiro e uma noite inteira ali, dormi dentro, naquele pilar debaixo do Palácio, fazendo greve de fome para conseguir criar a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Nascentes dos Gerais.

Pra mim é uma emoção muito grande retornar aos territórios durante a campanha, e as pessoas baterem no meu ombro e falar: “Eu lembro de você naquela greve de fome, onde muita gente foi embora porque estava muito frio, nunca vi tanto frio em Brasília, muita gente foi embora, e você não. E não era exatamente o seu povo, era uma mobilização pelas comunidades geraizeiras, e você foi a única menina, mulher que ficou ali”.

Como você se prepara para enfrentar um congresso majoritariamente masculino e branco?

As pessoas me perguntavam, ainda quando Sonia estava no Congresso: “O que vocês vão poder fazer se vocês são 2 mulheres indígenas no Congresso Nacional com 513 deputados?”. E eu falava: “Nós somos menos de 1% da população brasileira, somos 5% da população do mundo e protegemos mais de 80% da biodiversidade. Nem sempre a maioria está fazendo melhoria. Nós somos minoria, mas estamos fazendo a melhoria de um país, de um planeta. Estaremos no Planalto fazendo pelo planeta”.

E quando me falam: “Mas vocês têm muito menos tempo de Congresso Nacional. Aqui é uma casa de leões”. Eu respondo: “O que é leão para nós que somos onça?”. Conhecemos bem o território. E podemos até ter menos tempo de Congresso Nacional, podemos até ter menos tempo de ministra, podemos até ter menos tempo de secretário de saúde, podemos até ter menos tempo de presidenta da Funai, mas nós temos muito mais tempo de Brasil. Falamos isso com o presidente Lula na COP27, o Brasil só não perdeu o protagonismo internacional nas questões ambientais porque nós fomos ministras do meio ambiente.

O Congresso Nacional tem um salão verde, mas é um salão verde desmatado. Nós chegamos para reflorestar com as nossas ideias, com os nossos posicionamentos. Somos poucas, mas também a gente não vem só. Nós entendemos que é um momento de virada no Brasil. É um momento de virada para a humanidade. E a humanidade precisa entender a nossa responsabilidade.

Quando se demarca um território indígena, é oportunidade de ter água para beber. Quando se demarca um território indígena, é a oportunidade também de ter respiração. Nós somos pneumologistas. Nós sustentamos o pulmão do mundo e das pessoas. Nós precisamos caminhar juntos. Esse é um ministério de articulação, meu mandato é um mandato de articulação. Nós queremos manter a vida das nossas lideranças, das nossas crianças, das nossas mulheres.

Durante a retomada da Funai, na segunda-feira, 2 de janeiro, você falou da “política do mistério”. Como é essa dimensão espiritual da política?

Quando eu entrei no Congresso Nacional para receber o crachá de deputada federal, me lembrei que, na última vez em que nós estivemos ali, depositamos mais de 200 caixões representando os projetos de lei de retrocesso e as lideranças indígenas assassinadas. [Fomos recebidos com] spray de pimenta, bala de borracha, até rasguei minha orelha em frente àquele Congresso.

E foi a reza de fogo das mulheres Guarani que fez chover somente naquele lugar. Naquele momento, em 2015, quando nós pensávamos que não conseguiríamos barrar a PEC 215 [projeto de emenda constitucional que transfere do Executivo para o Congresso o poder de demarcar terras indígenas, territórios quilombolas e unidades de conservação], foi pelo canto, pelo maracá, que fez acabar as luzes do Congresso Nacional. Começou a chover e até hoje eles não conseguiram votar. Estarei agora num lugar onde há poder de legislar, de fazer lei, de poder falar. Mas é preciso dizer que, para além das leis judiciais, as nossas leis são ancestrais. E é importante levar [ao Congresso] essa força das leis ancestrais.

Estamos aqui no Ministério dos Povos Indígenas, pela primeira vez na história, caminhando junto com o mistério dos povos indígenas. O mistério da terra, o mistério da floresta, o mistério do Cerrado, da Mata Atlântica, do Pampa, da Caatinga e do Pantanal.

Você é uma criadora de palavras: “parentíssima”, “mulheragem”… Eu queria que você me falasse quem é Manuelzão Xakriabá, o que são as loas, e o que que Manuelzão e as loas têm a ver com o seu modo de falar?

O Manuelzão é meu bisavô. Meu bisavô foi um dos primeiros leitores de carta reconhecido do território Xakriabá na década de 1940, quando não circulava a escrita, quando não circulava a leitura. E ler carta naquele período não era ler para virar professor. Tinha relação de poder. Como em documentos onde se lia assim: “Aqui deu uma reintegração de posse. Vocês têm que desocupar essa área”. Mesmo que aquela notícia fosse uma mentira, se fosse lida por um não indígena, aquela mentira perdurava por 10, 20 anos, porque não tinha autonomia de ler o papel.

Mesmo as pessoas não reconhecendo, não entendendo as mais de 274 línguas indígenas, os mais de 305 povos, nós temos um jeito diferente de falar. Não é sobre entender o nosso canto, é sobre sentir o nosso canto. Meu bisavô era essa referência, depois meu avô era essa referência, a da força da oralidade. E meu avô não falava, ele assuntava. Então a gente somente fala depois de assuntar muito, porque assuntar também é uma escola.

Meu avô foi o primeiro livro que eu li na minha vida. Então eu aprendi a ler outros livros, mas sem perder a capacidade de ler as pessoas. Como continuar lendo o livro e não perder a capacidade de ler o tempo? De ler a terra? Mais de 522 anos [depois da invasão europeia], um Brasil tão diverso não pode ter a força do povo, daquilo que não é visível, da força da oralidade como um lugar menor. Nós temos compromisso na nossa fala. Eu tenho orgulho também porque depois de [Mário] Juruna, eu sou a segunda deputada que vem do Cerrado. Ele já usava o gravador, usava a oralidade, mas as pessoas não acreditavam, porque aqui é o papel que é a verdade.

E as loas?

As loas são esse lugar da entoação da palavra Xakriabá, que tem uma melodia no jeito de falar. Nos últimos tempos, as pessoas falam assim: “Celinha, você ganhou essa eleição porque tem um jeito diferente de falar. Você é mais poética”. Por muitas vezes, as pessoas vão ver no Congresso Nacional a poesia virando borduna, porque a poesia é algo que atinge, não na velocidade, na altura que a gente fala, mas na sensibilidade. Nesse momento, quando chegamos aqui também nessa melodia da palavra, nesse jeito diferente de falar, ocupando vários lugares com a presença indígena. Isso é reflorestar também. O reflorestar é quando a gente faz renascer esperança também em pessoas que estavam adormecidas. O Brasil não estava morto, o Brasil estava adormecido, e com a nossa presença, o nosso jeito de chegar diferente, com a força da nossa pintura, com a força da nossa voz, da nossa oralidade, do nosso canto, vamos continuar fazendo lei sem perder a melodia da palavra. Vamos continuar fazendo lei sem perder o entoar do nosso cantar.

Célia, em janeiro de 2021, eu entrevistei o geraizeiro Braulino Caetano, e perguntei a ele quem deu o nome da Articulação Rosalino. E ele me respondeu o seguinte: “Olha, na verdade, a gente criou essa articulação para juntar todos os povos para luta. Teve uma filha Xakriabá, uma menina, naquela ocasião, chamada Célia. Foi ela quem defendeu o nome do Rosalino. Nosso movimento se chama Articulação Rosalino Gomes justamente por causa dessa menina. Ela estudou, formou, fez o mestrado, e eu espero que ela seja uma grande força pro Brasil. Que amanhã ou depois ela possa ser uma deputada federal.” O que a história do Rosalino tem a ver com a sua história política na política?

Rosalino foi uma grande liderança Xakriabá assassinada em 1987, com mais 2 companheiros. Só então o território Xakriabá foi reconhecido. Infelizmente, todos os territórios indígenas que eu conheço no Brasil só foram demarcados depois de alguma liderança indígena ser assassinada. É como se alguma pessoa da sua família precisasse morrer para ter uma casa, para ter um apartamento. Ninguém pensa assim: “Será que a cada vez que pensar no direito à sua casa, ao seu lugar de morar, tem que morrer alguém da sua família?”.

O processo da luta Xakriabá é marcado por essa chacina, mas ao mesmo tempo foi da dor que ganhamos a liberdade do território. E Rosalino falava: “Eu prefiro virar adubo, mas sair daqui não vou”. Rosalino foi morto no dia 12 de fevereiro de 1987, numa chacina que marcou a história do povo Xakriabá, que marcou a história do Brasil. Foi o primeiro crime julgado como genocídio indígena no Brasil. Rosalino foi assassinado e sua companheira, dona Anísia, estava grávida e também foi baleada. Quando, na minha pesquisa do mestrado, eu voltava ao território e perguntava para as mulheres Xakriabá qual foi a contribuição delas para a luta, elas respondiam: “Ah, minha fia, eu não contribuí muito, não. Meu marido era liderança, ia para Brasília a pé, ficava 3 meses buscando carona, e o que eu tinha que fazer era abrir grande braçada de roça para sustentar meus filhos”. Perguntei à dona Elisa, perguntei à dona Nena, que também teve seu companheiro morto nessa chacina. E fiquei bem frustrada porque as mulheres diziam que o protagonismo da luta não estava exatamente nas mulheres. As contribuições [das mulheres] parecem invisíveis. Hoje, no território Xakriabá os 4 caciques são homens, mas ao mesmo tempo eles me construíram em uma outra referência, também. E 33 anos depois da chacina que matou Rosalino, nós fizemos o lançamento da nossa pré-campanha, em fevereiro de 2022, no mesmo local onde Rosalino foi morto em 1987. E nesse dia, o filho de Rosalino me falava: “Aqui esse chão foi demarcado com sangue e você vai ter a oportunidade de sustentar a mão na caneta para impedir que a chacina dos povos indígenas continue sendo um elemento responsável pelo extermínio dos povos indígenas no Brasil”.

Este é o motivo de defender o nome da Articulação Rosalino de Povos e Comunidades Tradicionais, há mais de 10 anos. Quando eu conheci [o geraizeiro] Braulino, eu tinha 13 anos, e ele já falava assim: “Minha filha, você ainda vai ser uma representação política”. Mas eu era só uma criança e fiquei rindo. Mais tarde, ele falou: “Você não ri do seu pai, eu estou te falando”. A Articulação Rosalino é uma das únicas que eu conheço no Brasil e no mundo que reúne 8 povos, os indígenas Xakriabá e Tuxás e as comunidades quilombolas, geraizeiras, vazanteiras, veredeiras, catingueiras e apanhadoras de flores [povos tradicionais do norte de Minas Gerais]. Tem uma articulação em que a dor é unificada, mas a força também é unificada. Várias vezes nós participamos da retomada dos povos quilombolas, várias vezes o quilombo foi solidário nas nossas retomadas.

Quem é Sonia Guajajara e o que ela representa pra você hoje?

Sonia para mim é uma referência, uma inspiração, uma irmã, uma parentíssima, guerreiríssima ministra que também vem desse ajuntamento de mulheres. Somos cofundadoras da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade. Eu conheci Sonia com 14 anos de idade. E, depois, em 2018, quando eu estava acabando de sair do mestrado, Sonia falou: “Celinha, eu queria que você viesse ajudar na campanha, eu vou ser copresidente da República junto com Guilherme Boulos”. E eu falei: “Minha irmã, eu tô muito cansada, tô acabando de sair do mestrado, eu não consigo”. E ela disse: “Vem pra ficar só uma semana”. E de repente eu fiquei 3 meses junto com a Sonia na campanha, em 2018. Quando as pessoas perguntavam se estava preparada, ela falava: “Nós estamos preparadas. Nós nos preparamos na luta”. E quando as pessoas nessa eleição perguntavam: “Mas vocês estão preparadas? Suas candidaturas são viáveis?”. Eu falava: “As candidaturas nossas não são somente viáveis, são enviadas. Porque há um chamado pela Terra nesse momento. Já que as pessoas não escutam a Terra, não entendem a Terra como maior autoridade, nós vamos nos candidatar junto com a Terra”. E quando as pessoas falavam assim: “Mas será que é a hora? Não existe um fato político que vai conseguir fazer vocês eleger”. E aí, quando eu falava assim: “Estuprar meninas Yanomami não é um fato político? Violentar meninas Guarani-Kaiowá não é um fato político? Matar mulheres não é um fato político? O ecocídio não é um fato político? O genocídio não é um fato político? O que é um fato político?”.

Foi a Sonia Guajajara que te convidou pra ser deputada? Como foi esse convite?

Essa construção foi conjunta, pela bancada do cocar. Nós falamos: “Se tem a bancada ruralista, vamos lançar a bancada do cocar”. Quem é que tem mais condição de fazer o enfrentamento à bancada ruralista senão a bancada do cocar, que traz essa força da Terra? E foi quando ela me falou: “Celinha, vamos!”. A gente só chega porque existem outras pessoas que abriram caminho também. Mesmo sem conseguir estar nesse lugar. E aí, no ano passado, as lideranças falaram: “Vocês têm que ir”. Foi quando nós decidimos ir.

Quando foi?

No Acampamento Terra Livre, na Marcha das Mulheres Indígenas, alguns parentes Krenak nos questionaram. Falaram:, “É hora de ir! Xacriabá ainda não decidiu ir?”. Em novembro de 2021 as lideranças Xakriabá decidiram e em março de 2022 nós lançamos exatamente no local da chacina de Rosalino. Sonia demorou um pouco ainda mais pra decidir, porque ela tinha que decidir se era pelo Maranhão ou São Paulo e se ela ia mudar de partido ou se ficaria no partido. Entendi que, assim como demorou 33 anos depois de Juruna Xavante para eleger Joênia Wapichana como a segunda pessoa indígena no Congresso Nacional, primeira mulher indígena, correria o risco também de ficar 10 a 20 anos sem eleger indígenas se nós não fôssemos eleitas nesse momento. É uma luta de contexto, porque o contexto do governo Bolsonaro colocou o estado da questão indígena no estado de emergência existencial humanitária e não humana.

Muita gente falava assim: “Ó, se vocês não forem eleitas nesse momento, não fiquem tristes, não! Vocês vão tentar de novo. Uma hora vocês conseguem”. Eu falei: “Se vocês estão querendo pessoas revolucionárias, que têm condição de defender com o corpo a questão territorial, ambiental, votem agora. Não dá para adiar”. Então diziam: “Ah, mas eu não tenho 2 votos. Eu gostaria muito de votar em vocês”. Isso acontecia comigo, com Sonia. “Mas infelizmente já tenho um outro candidato…”.

Na última semana, eu falei: “Não tem 2 votos, mas a gente também não tem 2 planetas. A hora é agora”. E foi quando nós lançamos o Chamado pela Terra [slogan da campanha usado por mulheres indígenas candidatas]. Mesmo Sonia estando em São Paulo e eu em Minas Gerais, nós fizemos muita coisa juntas. A hora é agora, o chamado pela Terra mobilizando também outras candidaturas indígenas. Foram mais de 180 candidaturas indígenas no Brasil, fortalecendo. Ainda precisamos avançar, fortalecer, porque precisamos avançar em nível estadual. Não conseguimos eleger nenhuma candidatura estadual.

Nós estamos aqui, na sede do Ministério dos Povos Indígenas, e a gente acompanhou um Fla-Flu antes do anúncio do presidente Lula. Tinha torcida pra Joênia, Sonia e Weibe. A Apib encaminhou a lista tríplice e o presidente Lula fez as escolhas e acabou contemplando todos os nomes. Qual é a sua avaliação desse processo?

O povo fala muito de embaixada, de Itamaraty, onde impera a diplomacia. Mas eu desconheço povo mais diplomático do que nós, povos indígenas, que construímos tudo pelo diálogo. Vai ter diferença porque somos mais de 305 povos diferentes, 274 línguas diferentes. Ontem [2 de janeiro] foi um momento histórico assim pra mim: estar junto com Sonia ministra, Joênia presidenta da Funai e nós no parlamento, Weibe tomando posse também ali, na importante Secretaria da Saúde Indígena. As pessoas falavam que íamos nos dividir, mas a nossa lista tríplice foi a indicação de ministério mais democrática que teve. Nenhum outro ministério foi indicado por uma lista tríplice. As pessoas fazem indicação direta. Mesmo tendo 3 nomes, foi a partir de uma consulta dos movimentos e da própria Apib. Então, isso demonstra também o nosso jeito diferente de fazer. E aquilo não nos dividiu, pelo contrário: Sonia assume como ministra, Weibe assume como secretário de saúde [indígena], Joênia assume como presidente da Funai.

Estamos mostrando a importância de ter parentes indígenas em todos os lugares. Acabamos de ter uma reunião agora com Joênia Wapichana, para fazer um plano de trabalho, [que estamos] traçando coletivamente. Nós não estamos em caixinhas. A presidenta da Funai acabou de sair daqui do ministério, o secretário de saúde indígena está aqui na sala ao lado, a parlamentar indígena está aqui, porque nós sabemos fazer junto. Mesmo fazendo de maneira diferente, mesmo tomando algumas decisões a partir das indicações das escutas da base, mas na hora de buscar o melhor caminho, nós estamos juntos.

Estamos aqui no ministério presidido por uma mulher indígena, a parentíssima ministra Sonia Guajajara, [com] a parentíssima presidenta da Funai Joênia Wapichana e o parentíssimo secretário da saúde indígena Weber Tapeba. Estamos também no Congresso Nacional e a bancada do cocar não se destituiu. A bancada do cocar está sementeada por vários lugares. A nossa posse, dia 1 de fevereiro, vai ser um momento histórico. Eu não estarei sozinha no Congresso Nacional, porque vamos ocupar aquelas rampas ali com vários parentes indígenas, com mulheres indígenas. A bancada do cocar é o povo.

O que é a Anmiga? Você vê a Anmiga como uma corrente de política indígena?

Anmiga, a Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade, é uma articulação que traz a força das mulheres de todas os biomas. Mulheres-terra, mulheres-semente, mulheres-água, mulheres-raiz. E eu falo que nós não somos mulheres-somente, somos mulheres-semente. O século 21 é das mulheres indígenas.

Em 2018, eu falava: “Sonia, eu acredito que, para consolidar esse movimento político e para as lideranças realmente fazerem esse realdeamento da política, nós precisamos visitar os territórios”. Nós já tínhamos um desejo de pensar as caravanas da Anmiga. Em 2019, começamos a construir o projeto aqui em Brasília, mas 3 dias depois decretou pandemia no Brasil e no mundo e nós não conseguimos fazer a caravana naquele momento.

Em 2019, Sônia puxou a jornada “Sangue Indígena: Nenhuma Gota Mais”, percorrendo 12 países e 20 cidades em 35 dias, denunciando o que acontecia no Brasil. Protocolamos no Tribunal de Haia, na Holanda, denúncia contra Bolsonaro do crime de ecocídio da humanidade, e as pessoas falavam assim: “Por que vocês vão para Europa? Você não sabe que eles são grande parte do problema?”. E nós falávamos: “Essa grande parte do problema tem que somar como maior parte da solução”.

Questionamos a ratificação do acordo Mercosul, também, que premiava o governo Bolsonaro, e falamos da importância do parlamento europeu e de todos os países, assim como do Reino Unido, para criar leis de rastreabilidade para garantir que esses produtos não venham de territórios indígenas, não venham de trabalho escravo. Como resultado dessa pressão, agora, na COP, o parlamento europeu estava com a lei antidesmatamento.

Nós questionamos, também, que na lei antidesmatamento só se considerava a Amazônia, não se considerava os outros biomas, a Mata Atlântica, o Cerrado, o Pampa, o Pantanal. Quando não há leis de proteção ambiental a todos os biomas, isso significa legalizar, pressionar mais ainda a expansão agrícola nesses outros biomas. Quando você faz isso, você também coloca a Amazônia em mais conflitos territoriais e maior pressão também de produção e de desmatamento.

Nós desconhecemos qualquer projeto que tenha visitado todas as regiões do Brasil, todos os biomas brasileiros, nessa escuta sensível de entender que, se o palco não é suficiente para escutar todas as mulheres indígenas, o nosso microfone vai ser o maracá, o nosso palco vai ser deslocar para o chão do território. E foi isso que nós fizemos com o projeto da caravana, entendendo que o microfone mais amplo que a gente tem é escutar as mulheres indígenas a partir da bioeconomia. A Anmiga tem como projeto central o combate à violência contra as mulheres indígenas nos territórios. No Ministério dos Povos Indígenas, temos essa provocação: a de ter esse núcleo relacionado à violência e à violação das mulheres indígenas.

Ainda pela Anmiga, na Marcha Mundial das Mulheres vocês organizaram um grande desfile. O que a vestimenta tem a ver com política?

Nós temos falado em descolonizar a moda, porque para nós não é exatamente moda. Eu falo que tanto na música quanto na moda a tendência anual não é a que pega, o que pega, para nós, é uma tendência mais ancestral. Então, quanto mais velho, mais bonito. A nossa moda não é anual, a nossa moda é ancestral. Para mim, esse vestimentar é uma roupa que veste, reveste e subverte.

Todo o design da minha campanha em Minas Gerais foi inspirado nas minhas vestimentas. É esse lugar de trazer encantamento, as bonitezas, porque política não precisa ser esse lugar truculento. Política é o lugar que a gente faz com cultura. Onde não podia falar da campanha, eu fazia poesia, eu trazia a luta, a emergência dos povos indígenas. E isso em palcos importantes, junto com alguns artistas, junto com Nando Reis, com Gilberto Gil. Então, é esse lugar que a gente traz à tona, entendendo esse jeito de fazer uma política que tem as vozes do território, que tem as cores do território, que tem as cores de nosso bioma.

Eu sempre mantive a minha autonomia vestimentar. Tenho vestido pintado durante o julgamento do STF. Enquanto nós estávamos ali, na vigília, eu parava, pintava minhas roupas. Faço isso não porque tenho tempo, mas porque nós precisamos ter autonomia de nosso tempo, e somente tem tempo aqueles que retomam o tempo. Eu falo que a luta pela liberdade, pela verdadeira autonomia, não é exatamente quem tem mais dinheiro, é quem tem a liberdade do tempo.

Como ser parlamentar, como ser ministra, como ser presidente da Funai, como ser professora, advogada sem perder a nossa autonomia vestimentar, sem perder a nossa autonomia do alimentar? Porque nós podemos ser muitas coisas, mas o primeiro livro que eu li foi meu avô, a primeira caneta que eu segurei não foi exatamente para fazer o “x” da escrita, mas foi para pegar o jenipapo, escrever no meu corpo. Então, mesmo no Congresso Nacional, continuo tendo essa autonomia de me vestir com jenipapo. É a força do cocar que orienta o nosso pensamento, que orienta as tomadas de decisão. O cocar, para nós, é como se fosse a casa da cabeça. Ajuda a orientar esse lugar. Vamos juntas pintar o Congresso Nacional de jenipapo e de urucum. O Congresso não vai ser mais cinza, o Congresso vai ter a nossa cor.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/celia-xakiaba-jenipapo-e-urucum-no-congresso/

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