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Trabalho escravo: depois do vinho, o arroz

Formiga na comida. Dedos cortados. Restrição de água. Em arrozais gaúchos, dezenas de trabalhadores foram resgatados. Em três meses, estado já registrou o dobro de denúncias do ano passado. Fiscais apontam: falta de pessoal para ações preventivas

Por: Amanda Gorziza e Lara Machado. Carvall

Eram 13 horas da última sexta-feira (10) quando o auditor fiscal do trabalho Vitor Siqueira Ferreira chegou à estância São Joaquim, no interior de Uruguaiana, na fronteira Oeste do Rio Grande do Sul. Fora chamado para integrar uma força tarefa em conjunto com Ministério do Trabalho e Emprego, Polícia Federal do Ministério Público do Trabalho para verificar uma denúncia de trabalho análogo à escravidão em duas fazendas no município. Ao chegar à estância no horário do intervalo de almoço dos trabalhadores encarregados da colheita do arroz, Ferreira se deparou com homens em situação precária, sem nenhum equipamento adequado para a tarefa, como ferramentas de poda, botas, vestimentas adequadas e proteção contra o sol. Os trabalhadores que estavam almoçando tentavam afastar as formigas que se juntavam à comida trazida de casa. Outros dormiam sobre camisetas nos feixes de sombra das poucas árvores. Na tarde daquela sexta-feira, a temperatura chegou a 37º C em Uruguaiana.

Nessa fazenda, foram resgatados 31 trabalhadores em condições análogas à escravidão. Além da São Joaquim, também foi inspecionada a estância Santa Adelaide, onde foram encontradas 54 pessoas nas mesmas condições, totalizando 85, segundo dados do Ministério Público do Trabalho. São todos gaúchos vindos de Uruguaiana, Itaqui, São Borja e Alegrete. Desses, onze são adolescentes entre 14 e 17 anos. Nos depoimentos coletados posteriormente, foi mencionada a presença de adolescentes ainda mais novos, de 12 anos de idade.

As duas fazendas têm contrato com a Basf, empresa multinacional, para produção de sementes de arroz. O MPT-RS investiga o caso, e a investigação corre em sigilo. A ação no arrozal foi o segundo maior resgate de trabalhadores em condições análogas à escravidão no Rio Grande do Sul, depois do caso de Bento Gonçalves, em fevereiro deste ano, quando foram libertadas 207 pessoas que trabalhavam no cultivo da uva.

Só nos primeiros três meses de 2023, já foram registrados 294 resgates de trabalhadores em condições análogas à escravidão no Rio Grande do Sul – quase o dobro dos casos de 2022 inteiro (156). No Brasil, foram resgatados 2.469 trabalhadores sob as mesmas condições em 2022. É o maior número registrado em dez anos, segundo dados do Radar SIT.

Em Uruguaiana, os homens foram contratados informalmente para realizar a remoção do chamado “arroz vermelho”, uma praga que prolifera junto ao arroz cultivado e provoca perdas na safra. No ano passado, o município foi o maior produtor de arroz do estado. Sem a disponibilidade de equipamentos, os trabalhadores providenciavam os próprios materiais necessários para a realização da tarefa, como facas de serra. Também faziam aplicação de agrotóxicos com uma “barra química” sem materiais de proteção. Caso alguém passasse mal durante a jornada de trabalho, o que era bastante comum, tinha o valor da diária, de 100 reais, descontado – além de não haver estrutura para prestar socorro.

O coordenador da Procuradoria do Trabalho de Uruguaiana, Hermano Martins Domingues, também esteve presente na ação de resgate. Segundo ele, um jovem de 14 anos, sem contrato de trabalho nem treinamento, relatou em depoimento que teve dois dedos do pé cortados durante a jornada de trabalho por falta de equipamentos adequados. Ele não recebeu atendimento hospitalar; o ferimento foi coberto com um pano sujo de barro, e o rapaz foi levado para casa. Ele contou ainda que, durante o período que ficou sem trabalhar, recebeu 50 reais pela diária. Segundo o depoimento, ele não conseguia mexer dois dedos e não conseguia levantar o pé. “O sonho do garoto é jogar bola. Já até fez testes em clubes de futebol”, afirmou o procurador.

O auditor Vitor Ferreira, que também é chefe do Setor de Inspeção do Trabalho da Gerência Regional do Trabalho de Uruguaiana, permaneceu a tarde daquela sexta-feira na fazenda recolhendo depoimentos dos trabalhadores. Eles relataram ser obrigados a trazer água e comida de casa. Como não havia espaço para guardar a refeição, havia dias em que a comida azedava ou era tomada por formigas, deixando-os sem almoço. Dependendo da temperatura, a água não era suficiente para a jornada. “Se somamos uma jornada de trabalho braçal feita sob o sol forte, com restrição de água, falta de condições sanitárias e de local de descanso, isso tudo configura o que a chamamos de condição degradante do trabalho, que é uma das modalidades de submissão do trabalhador à condição análoga à escravidão”, afirmou o auditor do trabalho. Segundo o artigo 149 do Código Penal brasileiro, além de condições degradantes do trabalho, outras três modalidades também se enquadram como trabalho análogo à escravidão: atividades exercidas de maneira forçada, jornada exaustiva e regime de servidão (quando o trabalhador é impedido de deixar o trabalho, muitas vezes por ter contraído dívidas que não terá condições de pagar).

Um dos depoimentos colhidos pelo MPT-RS revelou que haveria a venda de maconha aos trabalhadores, inclusive a menores de idade. Se confirmado, é um indício de servidão por dívida, já que a Lei do Trabalho proíbe pagamento com drogas e bebidas alcoólicas. O agenciador de mão de obra que atuava na fronteira Oeste do estado foi preso, mas liberado após pagamento de fiança.

Mesmo após 16 anos de trabalho, o auditor, que frequentemente participa de ações de resgate, se surpreendeu com o que viu na tarde daquela sexta-feira. “Em Uruguaiana, fazemos diversas inspeções rurais, mas a uma situação tão degradante, com esse volume de trabalhadores, eu nunca tinha tido acesso, sobretudo envolvendo menores”, afirmou Ferreira.

A Fazenda Santa Adelaide, por meio de nota, afirmou que os funcionários resgatados não fazem parte do quadro da empresa, já que são de uma empresa terceirizada. “Somos produtores de arroz há trinta anos, e durante todo esse período procuramos estar rigorosamente em dia com toda a legislação trabalhista.” A Basf, em nota, confirmou que tem contrato com as fazendas e lamentou o ocorrido, acrescentando ter procurado as autoridades para contribuir com a resolução do caso. “A Basf segue exigências de contratação de fornecedores e subcontratados que incluem, entre outras medidas, que as empresas contratadas estejam de acordo com a lei trabalhista e sejam rigorosas no respeito aos direitos humanos.”

Também em nota, a Federação das Associações de Arrozeiros do Rio Grande do Sul (Federarroz) afirmou que está acompanhando as apurações e que irá colaborar com esclarecimentos. Mas também diz que é preciso ter “parcimônia”, já que “o possível não cumprimento de regras trabalhistas vigentes não culmina, necessariamente, na possibilidade de enquadramento dos fatos como ‘análogo à escravidão.’”

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O auditor Ferreira disse que há hoje um déficit de auditores do trabalho no Brasil, o que dificulta a prevenção de casos como esses. Em 2011, o país contava com 3,1 mil profissionais. Em 2023, são apenas 1,9 mil – redução de 37%. Essa é a realidade da gerência em Uruguaiana, que tem uma extensão territorial bastante grande. Há dias em que percorrem 600 km, de acordo com Ferreira. Com menos auditores, consequentemente viajam menos e não atuam tanto de modo preventivo. “Se o poder público estivesse mais presente, com maior número de fiscalizações, certamente as denúncias seriam menores porque a maior incidência de fiscalização coibiria uma série de empregadores de praticar essas condutas”, afirmou.

A falta de pessoal é o pior problema enfrentado pelas instituições que trabalham no combate ao trabalho escravo contemporâneo. “Desde 2014, a auditoria fiscal não tem tido concurso para contratação de novos profissionais. Cerca de 50% dos cargos de auditoria do trabalho estão vagos. Alguns fiscais chegaram a ser desaposentados” conta Lys Sobral Cardoso, procuradora do trabalho e atual coordenadora nacional da Conaete (Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo). Segundo ela, o grupo móvel de combate ao trabalho escravo, composto por profissionais de diversas instituições, já chegou a contar com dez equipes. Hoje tem somente quatro.

A partir de 1995, o Brasil foi se tornando referência no combate ao enfrentamento ao trabalho escravo contemporâneo. O caso do trabalhador rural José Pereira, que foi escravizado e quase morreu tentando fugir em 1989 (aos 17 anos), deu origem à Solução Amistosa na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, firmada em 2003. Foi a partir desse caso que o país assumiu o compromisso de combater o trabalho escravo, passou a monitorar dados, criou a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) e aprovou a Emenda Constitucional nº 81 – que destina as terras usadas na exploração de trabalho escravo à reforma agrária e a programas de habitação popular.

Na Bahia, o projeto Vida Pós-Resgate, parceria entre o MPT e a UFBA (Universidade Federal da Bahia), aposta no acolhimento das vítimas de trabalho escravo no Brasil. O programa oferece aos resgatados acesso à terra e aos meios de produção, para que eles possam produzir por conta própria. Segundo o MPT, os trabalhadores resgatados nas vinícolas de Bento Gonçalves serão encaminhados para as terras do projeto, que conta com o apoio da procuradora Lys Sobral. “Se a gente não dá condições para o trabalhador ter uma vida emancipada, como dizer que ele foi resgatado?”

Denúncias de trabalho análogo à escravidão podem ser feitas de forma anônima através deste site.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/trabalhoeprecariado/trabalho-escravo-depois-do-vinho-o-arroz/

 

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