Em livro, pesquisador do povo Desana traduz saberes orais de seu pai e outros ancestrais sobre práticas medicinais com gaapi. E alerta: usos desligados dos rituais, na onda neoxamânica, podem trazer risco de adoecimento – e da surí
Por: Álvaro Faleiros | Ilustração: Jaime DiakaraCréditos. Corte da planta da ayahuasca. Imagem obtida na página de Daiara Tukano
A disseminação do uso da ayahuasca entre os não indígenas é um processo que vem ocorrendo de modo sistemático há pelo menos meio século. No Brasil, as religiões do Santo Daime e da União do Vegetal (UDV) são suas manifestações mais emblemáticas. Mais recentemente, uma nova onda do que se pode chamar de “neoxamanismo” tem proliferado nos centros urbanos com um conjunto de consequências cujo alcance ainda é difícil de dimensionar. Chega, pois, em boa hora a obra, publicada em 2021 pela editora Valer1, intitulada Gaapi – uma viagem por este e outros mundos [um estudo indígena Desana], de Jaime Diakara.
Os indígenas, desde 2017, têm se reunido para refletir conjuntamente sobre o assunto. A 1a Yubaka Hayrá – Conferência Indígena da Ayahuasca2 produziu uma carta de recomendação com uma série de reflexões, dentre as quais:
Pesquisadores que estudam a ayahuasca e demais medicinas tradicionais não são comprometidos com os interesses do movimento indígena. Eles têm legitimidade para falar no âmbito acadêmico, mas sobre espiritualidade são os povos indígenas os verdadeiros conhecedores e estes devem ser os protagonistas. Preocupação com cursos de formação para usar medicinas sagradas, principalmente fora do Brasil. Preocupação com o uso inadequado das medicinas pelos nawás/igrejas e a comercialização, podendo gerar situações graves associadas a este uso. Exemplo: uso da ayahuasca pelos nawás em festas diversas e outros espaços, em forma de comprimido, como uma droga psicodélica. As medicinas tradicionais têm usos específicos. Se forem usadas fora do contexto, mesmo pelos indígenas, perdem o sentido e deixam de ter eficácia. Desrespeito de órgãos fiscalizadores e/ou reguladores em relação à circulação de indígenas com a medicina e outros elementos da cultura.
As considerações acima resumem, a nosso ver, as principais questões que repercutiram nas conferências seguintes e que se vinculam a três grandes temáticas: a produção e o controle sobre os conhecimentos e os territórios dos povos indígenas; os contextos de uso da ayahuasca e os abusos cometidos; a criminalização do uso e da circulação dessas plantas sagradas.
Como se sabe, é difícil desvincular política e religião. Na perspectiva legal dos não indígenas, que controlam a justiça, pode parecer natural tratar do mesmo modo indígenas e não indígenas quando se trata de substâncias psicoativas. O problema é que essas substâncias têm finalidades muito distintas num contexto eurocêntrico e desritualizado comum entre nós ou num contexto em que humanos e não-humanos formam comunidade — como aponta o documento supracitado, “sobre espiritualidade são os povos indígenas os verdadeiros conhecedores e estes devem ser os protagonistas”.
O consumo de comprimidos de ayahuasca em “festas psicodélicas” ilustra à perfeição o uso irresponsável em curso nas cidades, cujas consequências são sofridas também por indígenas, muitas vezes perseguidos e presos pela polícia como se estivessem cometendo algum ilícito quando na verdade são eles os guardiões desses conhecimentos ancestrais.
Há também uma série de outros abusos cometidos por pseudo-xamãs, inclusive abusos sexuais, sistematicamente denunciados, entre outros, pela pesquisadora Bia Labate e o relevante trabalho de seu Instituto Chacruna3.
Chama atenção ainda a questão, acima apontada, da eficácia. O uso fora de contexto pode efetivamente prejudicar a saúde física e mental das pessoas, como pode até, em casos extremos, levar à morte.
É, pois, mais necessário do que nunca encarar o problema com profundidade, e de forma muito atenta ouvir o que os conhecedores nativos do assunto têm a nos dizer, como o faz Jaime Diakara em Gaapi – uma viagem por este e outros mundos.
Fruto de sua dissertação de mestrado em antropologia defendida na Universidade Federal do Amazonas, o livro se destaca por ser uma edição integralmente bilíngue tukano-português e, sobretudo, por problematizar o próprio gênero textual “dissertação de mestrado”, ao descrever de maneira não eurocentrada uma série de ensinamentos a respeito da ayahuasca, seus usos e a forma como o povo Desana produz conhecimento.
Note-se, primeiramente, no título, a palavra gaapi, termo usado pelos Desana para nomear a ayahuasca, mas longe de ser a única forma de designá-la. Como se lê nos documentos das conferências acima mencionadas:
Ao invés de usar o nome genérico Ayahuasca, é preciso usar as nomenclaturas específicas de cada povo, e também das demais medicinas tradicionais. O termo Ayahuasca não substitui as terminologias apresentadas por cada povo participante, tais como Kamarãpi, Uni, Huni, Dispãnī hew,Tsĩbu, Yage, Gaapi, Caapi, Hayakwaska, entre outras. No entanto, desde a primeira Conferência foi acordada a utilização deste termo de forma genérica, compreendendo todas as demais nomenclaturas.
Fontes de vida de Ʉmũkori Mahsu (Gente do dia)
Falar de gaapi significa entrar em contato com um modo de vida e com uma comunidade de humanos e não humanos específica. Esta se vincula a um modo particular de produzir conhecimento. Jaime Diakara explica no início do livro:
Para a elaboração deste livro eu não fiz uma pesquisa na minha comunidade de origem, uma etnografia ou coisa assim. Aquilo que eu apresento aqui é o que aprendi ouvindo meu pai Daikuru Ypi Tuoãrikumu[kumu = conhecedor] e conversando com outros parentes. Meu pai me contou e continua me contando que os conhecimentos que adquirimos com o gaapi, como bahsese[benzimento para a potencialização do gaapi] e aqueles sobre as forças que vêm dele são de suma importância para a vida dos indígenas. Meu pai tem atualmente 84 anos. Quando ele morou comigo em Manaus, aproveitei para conversar com ele sobre o gaapi. Todas as manhãs ele me explicava. Ele contou histórias bonitas, como e quem cuidava do gaapi, as atitudes que o vigilante de gaapi deve ter, os tipos de gaapi, a razão de tomar gaapi, e completava com outras informações que ele considerava importantes. Quando ele contava essas histórias, eu lembrava daquilo que já havia escutado.
O modo de produção de conhecimento não é o da etnografia acadêmica tradicional e sim o da transmissão familiar, de pai para filho. O saber assim compreendido pressupõe o contato, a escuta e a memória. A função da produção do conhecimento é coletiva e o objetivo é uma conexão maior com a ancestralidade e com a natureza, que transcenda a bolha do indivíduo. Isso não impede que, nesse processo, cada um acesse camadas profundas de si, mas esse autoconhecimento em contexto indígena costuma ser bem mais integrador.
Pessoalmente, já participei de rituais de ayahuasca centenas de vezes desde o ano 2000. Nessas mais de duas décadas, tive a oportunidade de frequentar diferentes locais. As experiências iniciaram-se durante os dois anos em que vivi no Amapá. Desde então, bebi ayahuasca no Santo Daime, durante seis anos fui associado da União do Vegetal (UDV), fiz retiros de cura na Amazônia peruana. Tive o privilégio de estar em cerimônias conduzidas por importantes anciãos indígenas como Álvaro Tukano, Sabino Huni-Kuin, Rekan Katukina, Panshin Shipibo. Nessas ocasiões, aprendi valorosas lições e vi o cuidado desses grandes conhecedores com as medicinas da floresta. Pude também observar a preocupação de cada um deles com os abusos e descuidos de certos não indígenas e até mesmo certos indígenas em rituais urbanos, questões também presentes no livro de Jaime Diakara. Como ele bem aponta:
Elaborando este trabalho, eu entendi que gaapi não é qualquer coisa, ele é de uso e do domínio dos kumuã (conhecedores). Não se pode brincar de tomar gaapi. Para tomar com seriedade, é preciso seguir um conjunto de regras, antes, durante e depois de tomar a bebida.
Yukʉdʉka Gaapida (Gaapi da floresta), simbolizando Bʉhpo (Trovão).
Antes de chegar às considerações referentes aos conhecimentos da ayahuasca e a sua transmissão, Diakara observa:
Os não indígenas, pesquisadores, muitas vezes interpretam o fato de tomar gaapi como um meio de comunicar com seres demoníacos, visão completamente distorcida.
A “visão distorcida” dos brancos, por má fé ou ignorância, repercute em grande medida o inconsciente de substrato cristão da sociedade brasileira. Dentro do próprio círculo ayahuasqueiro, as igrejas de orientação cristã, infelizmente, reproduzem esse discurso preconceituoso, demonizando os usos tradicionais e milenares da ayahuasca, compreendida pelos indígenas como medicina. Essa distorção produzida pelo sincretismo cristão, ainda que tenha contribuído de modo importante para a legalização do uso ritual da ayahuasca, tende a desvalorizar os usos milenares dessa planta sagrada e a desconsiderar os protocolos envolvidos nessas práticas nativas; o que faz do livro de Diakara uma obra ainda mais fundamental, por abordar essas questões desde a visão indígena.
Como se pode ler na contracapa do antropólogo Gilton Mendes dos Santos, o livro seria “mais do que uma linguagem”, sendo, em certo sentido, “um idioma”, fruto de uma cosmovisão caracterizada por um modo de comunicar pensamentos e emoções em que a experiência de vida se manifesta por meio de um complexo em que palavras e desenhos se entretecem. Como esclarece o próprio autor em sua introdução, os desenhos “não são meras ilustrações do texto, eles são o próprio texto, neles apresento os elementos e as imagens que considero necessários para explicar o assunto”.
É importante observar como esses desenhos se distribuem ao longo da obra. Dividido em quatro capítulos, o livro apresenta, no primeiro, “meus conhecimentos sobre o gaapi e outros conhecimentos de minha infância”. O segundo intitula-se “origens do gaapi”. O terceiro, por sua vez, se debruça sobre as “cerimônias do gaapi”. O quarto e último refere-se “à prática do ritual de gaapi na cidade”. Se olharmos para a distribuição dos 23 desenhos, nenhum deles se encontra no primeiro capítulo, apenas quatro no segundo e três no quarto e último capítulo, ou seja, 17 desenhos estão num único capítulo, justamente aquele dedicado à cerimônia do gaapi. É no momento em que descreve a “trajetória do gaapi”, os “tipos de gaapi”, “os agenciadores das forças e os efeitos do gaapi”, assim como “os cantos rituais”, que os desenhos ganham centralidade, sobrepondo-se à descrição em palavras. No final deste terceiro capítulo, no tópico intitulado “como os Desana sentem quando fazem o ritual do gaapi”, esse processo culmina com a substituição quase total das palavras por desenhos4, apontando para o indizível dessas experiências cósmicas.
Gaapi Pegʉ (kumu)
Chama a atenção também o modo como Diakara se refere à tradução nesse livro bilingue. Nos agradecimentos, o autor menciona seu “coorientador, Pe. Justino Sarmento Rezende, que teve paciência em me ajudar, facilitando todo o entendimento sobre minha pesquisa no doloroso processo de tradução”; e a seus “amigos companheiros… que ajudaram na tradução de várias partes dessa dissertação”. Já na introdução, comenta que não é o autor da tradução, mas que esta foi feita “por vários colegas antropólogos indígenas, hoje doutorandos do PPGAS, que melhor dominam o discurso e a escrita”. Estamos diante de uma obra em que a tradução ocupa lugar importante no “doloroso processo” de elaboração textual. Na construção desse duplo endereçamento, para indígenas e não indígenas, o coletivo se mobiliza para trazer o texto para o português, mas com interessantes ressalvas…
Nesse processo, algumas passagens se destacam, sobretudo pelo modo de se utilizar o intraduzível como estratégia de tradução. Por exemplo, ao se referir ao “agenciamento do gaapi”, lê-se:
GAAPI DO UMURI. Ele diz que os agenciadores das forças do gaapi fazem assim (sem tradução para o Português): Iguumuri gaapida…
Não há, pois, uma preocupação ou desejo de tornar esse agenciamento inteligível para o leitor brasileiro, reservando-se o acesso ao sentido àqueles capazes de compreender o tukano. O sentido não se desvela, mas a mensagem em português que segue é bastante eloquente:
Antes da cerimônia de gaapi a pessoa precisa ser preparada, pois os efeitos da bebida estarão presentes em suas veias (sangue), por isso, seu corpo também deve estar preparado.
Tratar do “agenciamento” da ayahuasca no corpo exige preparação e os não indígenas não parecem, segundo o ponto de vista de Diakara, em geral, devidamente atentos a esses cuidados.
O capítulo final da dissertação é bastante esclarecedor em relação a isso. Ao se debruçar sobre “a prática do ritual de gaapi na cidade”, o antropólogo desana retoma as conversas que teve com um jovem Tukano chamado Bu’u, que pratica o ritual de gaapi na cidade. Diakara começa reconhecendo a legitimidade de Bu’u por ser neto de yaí (xamã) e por ter sido orientado por outro xamã mais velho a tomar ayahuasca para se conectar com seus ancestrais. A maneira como descreve a descoberta da ayahuasca por Bu’u ilustra de modo interessante como têm se dado as interações entre os próprios indígenas em contexto urbano. Conta o jovem Tukano:
Certo dia, depois de um ano, fui participar no Santo Daime e lá encontrei o yanomami que ia conduzir o círculo de gaapi. Nesse dia não tomei, apenas assisti. Depois fui a um pai-de-santo, lá tomei gaapi e meditei que preciso ser como águia…
Gaapi wahro (Cuia de gaapi) e Gaapi wahro (Cuia de gaapi mahsu).
No trecho acima pode-se observar tanto a presença de um Yanomami na condução de cerimônia no Santo Daime, de matriz cristã, como o acolhimento de um indígena numa cerimônia ayahuasqueira em religião de matriz africana, apontando para a disseminação da bebida nos mais diversos contextos religiosos e no acesso dos próprios indígenas à mesma em contextos não indígenas.
Em seguida, Diakara descreve um segundo diálogo em que o jovem xamã, depois de uma estada na Colômbia, confessa que, chegando lá, “levou a maior bronca”, pois não respeitava os rituais de preparação que devem anteceder a cerimônia, como não manter relações sexuais nos dias que precedem o ritual. Essas práticas urbanas levam Diakara a observar:
Diante disso, concluo que cada pessoa que bebe o gaapi com ele [Bu’u] se concentra para ver o que deseja e assim acessar certos conhecimentos. Ninguém, no entanto, está seguindo as recomendações e exigências, cuidados e preparos que os antigos recomendavam.
Enfim, fica a dica para aqueles que têm se aventurado nesse uso urbano neoxamânico: quem toma ayahuasca sem as devidas precauções corre o risco de ficar doente, ou pior ainda, como advertem os velhos pajés, é preciso ter muito cuidado com seu uso para evitar a loucura – surí.
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