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A luta de Quitéria Binga Pankararu pela educação indígena

Criadora da primeira creche indígena do Brasil, Quitéria participou como liderança da Constituinte de 1988, lutou contra posseiros na TI Pankararu e morreu antes de ver as escolas no território reconhecidas pelo MEC.

Por: Laís Modelli | Créditos da foto: Facebook Povo Pankararu.

A liderança indígena do povo Pankararu Quitéria Maria de Jesus Binga, natural da aldeia Saco de Barros, em Pernambuco, não teve oportunidade de estudar quando era pequena e passou os seus 71 anos de vida sem saber ler e escrever. Apesar disso, foi uma das primeiras ativistas da educação indígena no Brasil e criadora da primeira creche indígena do país.

“Tia Quitéria criou uma creche para crianças Pankararu em um barracão dentro da terra indígena na década de 80. A creche era mantida por ONGs e todos os funcionários eram voluntários da própria aldeia. Cada um fazia uma coisa. As mães das crianças cozinhavam, por exemplo. Eu e muitos outros fomos educadores voluntários”, conta Maria José da Silva Santos, sobrinha de Dona Quitéria, como era conhecida.

Segundo Maria José, o local chegou a atender 120 crianças de 0 a 5 anos por ano e funcionou por quase três décadas sem ajuda de governos.

“Ela [Quitéria] passou anos lutando para que o Ministério da Educação reconhecesse a educação indígena na Terra Indígena Pankararu”, diz a familiar que, em duas ocasiões, viajou com a tia a Brasília para realizar manifestações.

“Uma vez, Quitéria reuniu 20 crianças das aldeias, entre elas os seus netos, e mais alguns educadores para ir até Brasília. Eu e meus dois filhos, na época com 7 e 8 anos, também fomos. Foram quatro dias de viagem em duas caminhonetes D20”, lembra.

Com poucos recursos, Dona Quitéria levou panela, frango, água e mantimentos nas duas caminhonetes para alimentar as 20 crianças durante a viagem de mais de 1,7 mil quilômetros.

“Quando não era uma das D20 que quebrava, era a Dona Quitéria mandando parar na estrada para cozinharmos. Mas valeu a pena: fomos recebidos pelos ministros da Educação e Cultura e pelo próprio Lula [Luiz Inácio Lula da Silva], presidente na época. O Gilberto Gil [ministro da Cultura entre 2003 e 2008] ficou tão impressionado com a história que nos fretou um ônibus para voltarmos para Pernambuco”, conta Maria José.

“Ela plantou, mas não viu seus frutos”

Nos anos 2000, a creche idealizada por Dona Quitéria passou a ser a Escola Indígena Quitéria Maria De Jesus, nome dado em homenagem à sua criadora, e, em 2016, passou a ser uma escola estadual. Atualmente, a unidade tem 61 professores indígenas e 448 alunos, sendo uma das poucas no Brasil a oferecer toda a formação escolar indígena, da educação infantil ao supletivo.

Por força do destino, o filho mais velho de Maria José mora em Brasília, mas, se 20 anos atrás ele foi à capital do país reivindicar o direito de estudar enquanto indígena, hoje ele é aluno do último ano de Medicina da Universidade de Brasília (UnB).

Já Maria José cursou faculdade de Pedagogia por incentivo de Dona Quitéria  assim como outros voluntários da antiga creche , e hoje é coordenadora da Escola Estadual Indígena Pankararus, que atende 231 alunos, outra escola dentro da aldeia Saco de Barros.

“Até entrarem na universidade, meus filhos nunca precisaram sair da aldeia para estudar graças à luta de Quitéria por uma educação indígena autônoma, onde nossos saberes e costumes fossem reconhecidos e valorizados como instrumento de educação e identidade”, diz Maria José.

Dona Quitéria morreu em 2009, em decorrência de uma diabetes, e não conseguiu ver as escolas da TI Pankararu  hoje são 15 escolas indígenas dentro do território  serem reconhecidas pelo Ministério da Educação (MEC). “Ela plantou, mas não viu seus frutos”, diz a sobrinha.

Figura central durante a Constituinte de 1988

Quitéria Binga, como era conhecida, nasceu em 1939, na Aldeia Saco dos Barros, no município de Jatobá, entre o sertão e o agreste de Pernambuco. Além de ativista pela educação indígena, ela também foi uma liderança política de importância nacional, tendo sido figura central dentro do movimento indígena durante a Assembleia Nacional Constituinte (ANC) de 1988.

“Tia Quitéria adorava falar do episódio da Constituinte. Ela contava que os indígenas foram impedidos de entrar no Congresso durante a ANC. Ela questionou o porquê, e o segurança respondeu que eles estavam ‘com sandálias nos pés’. Então ela gritou para o grupo: ‘todos tirem as sandálias e coloquem nas mãos, nós vamos entrar no Congresso’. E eles entraram, de fato. Furaram o bloqueio dos seguranças e entraram”, conta Maria José.

Foi a primeira vez que lideranças de diferentes etnias no Brasil se uniram para lutar em torno de uma pauta comum, a do “direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, que foi garantida no artigo 231 da Constituição Federal de 1988.

Quitéria também participou ativamente do processo de homologação da TI Pankararu (o território foi demarcado em 1940, mas foi homologado somente em 1987) e nas lutas contra centenas de posseiros durante os anos 90.

Jurada de morte, em novembro de 1993 escapou de uma emboscada armada por posseiros e precisou ser abrigada por um período pela Polícia Federal na sede da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) em Recife.

O povo Pankararu conseguiu ganhar na Justiça a ação de reintegração de posse do território contra os posseiros somente em 2018, nove anos após o falecimento de Quitéria. Mais uma vez, a liderança indígena não viu o fruto da sua luta.

Parteira, educadora, curandeira

Dona Quitéria também foi uma importante parteira na TI Pankararu, tendo criado uma casa de parto no território em funcionamento até hoje. A parteira responsável pelo local atualmente é uma das suas netas.

“Quitéria foi mãe de sete filhos, avó de dezenas de netos, parteira, guerreira da terra Pankararu, educadora indígena e curandeira. Não tinha uma pessoa que ela não conhecesse no território [de uma população de quase 8 mil indígenas]. E não tem uma pessoa daqui que não tenha uma história interessante dela para contar”, afirma Maria José.

Dona Quitéria, porém, não era de contar os seus feitos pessoais. “Por causa da sua atuação política, a tia Quitéria viajava muito, inclusive para o exterior, e foi amiga de gente importante, mas nunca ouvimos ela se vangloriar disso”, diz a sobrinha, lembrando que a tia costumava compartilhar com toda a aldeia coisas que trazia das viagens, como brinquedos e comidas.

Amiga de Suassuna

Quando questionada sobre qual a história de Dona Quitéria de que mais gosta, Maria José diz ser uma que a tia nunca revelou: ter sido amiga do poeta Ariano Suassuna.

“Poucos anos depois que a tia Quitéria morreu, Ariano Suassuna deu uma palestra em Jatobá. Eu gosto muito dele e fui até a cidade assisti-lo. Ele abriu o evento dizendo que falaria em homenagem a Dona Quitéria, guerreira do povo Pankararu. Meu coração disparou”, lembra.

Suassuna perguntou se tinha algum parente de Dona Quitéria na plateia, e Maria José, ainda sem saber se estariam falando da mesma ‘Quitéria”, levantou a mão. “O Suassuna pediu que eu me levantasse e fosse me sentar perto dele. Depois da palestra, ele me contou que sempre que a tia Quitéria ia à capital [Recife], ela batia na porta dele com galinha ou castanhas”, relata Maria José.

Na ocasião, o poeta pernambucano teria confessado que tinha planos de escrever um livro sobre a vida da amiga Quitéria. “Mas Suassuna morreu logo depois dessa conversa. Então, alguém ainda precisa escrever esse livro”, diz.

 

Veja em: https://www.dw.com/pt-br/a-luta-de-quit%C3%A9ria-binga-pankararu-pela-educa%C3%A7%C3%A3o-ind%C3%ADgena/a-65368357

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