Divulgação científica e combate ao negacionismo não podem ficar nas mãos da velha mídia. Para que avancem, é preciso reverter o “produtivismo acadêmico” e incluir o diálogo com a sociedade nos critérios de progressão na carreira universitária
Por: Bianca Py | Entrevista com: Atila Iamarino
O biólogo e divulgador de Ciência, Atila Iamarino, se tornou uma das principais referências na disseminação de informações sobre o coronavírus durante a pandemia. Por sua atuação, principalmente por meio de lives em seu canal no Youtube, ele recebeu ameaças de grupos que promoviam o “tratamento precoce”, por exemplo a cloroquina, e eram contra a vacinação em massa da população. Atila é doutor em Microbiologia pela Universidade de São Paulo (USP) e foi pesquisador na USP e na Yale University. Foi cocriador do ScienceBlogs Brasil, braço em português da maior rede de blogs científicos do mundo. Em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil, o pesquisador fala sobre a importância da Ciência brasileira se comunicar com o público em geral por meio das redes sociais e alerta que os grupos negacionistas seguem articulados e atuando no legislativo, universidades e outras instituições públicas. “O que mais me preocupa é o quão organizado e bem estabelecido esse movimento está. Ele está entrincheirado em instituições, órgãos de classe e outros espaços políticos”.
Atila, você virou uma das principais referências na disseminação de informações sobre o coronavírus. E com a visibilidade passou a receber ameaças e ataques, você acredita que haja motivação política por trás do negacionismo?
Eu recebi ataques constantes, felizmente todos virtuais. Foram mensagens por telefone, por outros meios, mas o principal eram os ataques constantes na internet. Sim, tem motivação política por trás disso, totalmente, não tenho como dissociar os ataques durante a pandemia, contra vacinas e a favor de cloroquina e tratamento precoce, de motivações políticas porque os próprios perfis que me atacavam tinham postagens só sobre política, no máximo algo sobre futebol ou alguma coisa para gerar uma identidade, para dizer que é uma pessoa real, que tem algum interesse em comum com outras pessoas para apoiarem aquilo.
E na sua avaliação o movimento anticiência na internet ainda se mantém forte? Quais pautas estão encampando agora pelo que você observa?
É um movimento organizado, com perfis falsos e reais, com deputados, senadores, e com ataques coordenados em grupo. Na época da pandemia era bem fácil de perceber nos meus vídeos no YouTube, por exemplo. Os comentários apareciam em conjunto, vinham grupos de dez, quinze, vinte até trinta comentários de uma vez só, como se fossem vários perfis de uma mesma pessoa. É um movimento que continua muito forte na pauta ambiental, na pauta antivacina e também em outras pautas com interfaces na saúde, como aborto.
Pensando nesse mundo pós-pandemia, quais os principais impactos do negacionismo na Ciência brasileira hoje? Vimos as taxas de vacinação baixar, por exemplo, o que mais te preocupa?
O que mais me preocupa é o quão organizado e bem estabelecido esse movimento está. Ele está entrincheirado em instituições, órgãos de classe e outros espaços políticos. Para dar o exemplo da pandemia, a campanha antivacina foi promovida no Brasil de cima para baixo.
A Rússia, os Estados Unidos e outros países que desenvolveram a vacina rápido, tinham a vacina disponível para a população, mas o índice de vacinação foi mais baixo do que o Brasil porque ali o movimento antivacina era de baixo para cima, era um movimento popular, ou porque as pessoas já tinham o movimento antivacina antigo, bem estabelecido ou não têm confiança no sistema público de saúde, como nos Estados Unidos, ou já tinham uma desconfiança geral contra o governo, contra vacinas em particular. Então, nesses dois lugares a vacinação foi super baixa.
No Brasil a taxa foi alta, as mortes que a gente viu aqui no Brasil da Covid são, principalmente, por conta de outro movimento negacionista, que é o pró cloroquina, pró tratamento precoce, que convenceu as pessoas a se exporem, saírem na rua e pegarem Covid achando que estavam protegidas. E isso foi promovido por órgãos do governo, por políticos, por deputados, por senadores, pelo presidente, por ministros. A gente teve dois ministros da saúde que caíram quando se recusaram a prescrever o tratamento precoce, então assim foi um movimento muito forte.
Na verdade, quando as vacinas estavam disponíveis a população correu para se vacinar, principalmente, na primeira e na segunda dose, e na medida que a proteção veio e a população se sentiu mais segura, o movimento antivacina ganhou mais força, mas no começo as pessoas estavam tomando vacina falsa!
O discurso antivacina ganhou corpo mesmo quando ele se organizou politicamente. Eu acredito que no começo não podiam ser tão antivacina assim porque ainda havia possibilidade de aprovarem as vacinas da Bharat Biotech, e as outras que o governo estava tentando comprar pagando propina. E depois que essa possibilidade acabou, aí sim veio o movimento antivacina contra a Coronavac, contra a Astrazeneca, contra a Pfizer e o movimento pegou e colou mesmo na hora de fazer uma campanha contra a vacinação infantil.
O mais importante não é qual é o alvo atual do negacionismo, o principal é entender que é um movimento organizadíssimo, que foi ouvido no Ministério da Saúde, que teve o gabinete paralelo, que teve deputados, senadores promovendo, que teve gente eleita nesta base, que teve distribuição de tratamento precoce pelo governo como política oficial em Manaus.
Então, mais do que qual é o discurso do momento, porque agora continua sendo discurso pró desmatamento, contra o aquecimento global e outras coisas do tipo, a questão é como ele está organizado. A gente tem experts que estão inseridos politicamente, apoiando a bancada ruralista e outras bancadas com informações técnicas distorcidas, tem os falsos especialistas que tem esse discurso anti-ciência, os vendedores das dúvidas, temos isso na agricultura, no meio ambiente e também na saúde, com o grupo de médicos pela vida, os grupos de tratamentos precoce e outras coisas mais.
É fundamental olhar para essa estrutura e como ela atua, atacando quem fala publicamente contra isso com perfis falsos, com eventos, com congressos, com prefeituras, com hospitais para promover esse discurso.
Como reverter a descrença e a desinformação em relação ao meio científico?
A gente vive num momento em que a estratégia contra a informação mudou. Até a popularização da internet, a estratégia que funcionava era você impedir o acesso à informação, ocultá-la de alguma maneira. Hoje em dia é muito mais difícil fazer isso, então o que se faz é soterrar essa informação com desinformação.
A maneira como as plataformas funcionam – dependentes de reter a atenção das pessoas e dos cliques -, acaba propagando mais conteúdo falso, escandaloso, mentiroso, com desinformação. Então se não tiver filtro, acaba propagando mais desinformação. É só com muito trabalho que é possível reter um pouco dessa desinformação. E eu acho que não é só uma questão do meio científico, mas é uma questão de onde as pessoas se informam, não tem como a desinformação ser barrada se não tiver um trabalho ativo e consciente das plataformas.
E a próxima rede social que entrar para competir com as que já existem, entra sem os filtros, ganha mais atenção com isso e renova esse ciclo de caça pelo clique, pela atenção. A gente tem esse ciclo da rede social se estabelecer deixando pirataria, deixando conteúdo de borderline, meio pornografia, mas não, meio pirataria, mas não, acontecer até ganhar usuários o suficiente para ter força para criar alguma regulação e manter os patrocinadores, só que aí o concorrente seguinte vem e segue o mesmo padrão, então enquanto uma rede está se segurando e diminuindo a desinformação a próxima que está ganhando mais usuários, mais cliques está indo na direção contrária. Acho muito difícil da gente segurar a desinformação enquanto a competição for por atenção e tudo puder.
Você acha que a divulgação científica (pensada para a população em geral) ganhou relevância para a Ciência brasileira?
Eu acho que ela ganhou um pouco, mas nem de longe o que precisa ter. A maneira como a Ciência brasileira opera, baseada principalmente em fomento público e o fomento público é baseado em avaliação de produtividade acadêmica, pura e simples: número de alunos orientados, número de teses defendidas, número de artigos publicados e o fator dessas revistas, absolutamente não favorece divulgação científica.
Divulgação científica em um meio no qual só essas coisas são valorizadas é perda de tempo, as pessoas fazem por favor, em prejuízo da carreira delas. Enquanto a gente tiver esse modelo, que não beneficia a divulgação, que não tem ela como meta, como progressão de carreira, ela não vai acontecer. Eu acho que a Ciência não reverteu isso, a maneira como a gente fomenta a Ciência no Brasil ainda não abarca essa deficiência. Durante a pandemia teve uma grande demanda das pessoas por informação, mas perdemos uma oportunidade única de estabelecer nomes e a importância de instituições porque não tínhamos incentivo para isso. Então as pessoas saem da pandemia conhecendo Oxford, Astrazeneca, Fiocruz, Coronavac, Butantã, mas nenhum nome de universidade está na boca das pessoas nesse meio tempo porque não tinha nenhuma universidade com alguém fazendo o papel que eu tive, promovendo informação dessa forma acessível para a população. Essa oportunidade não volta, espero que não volte que a gente não tenha outra demanda dessa, e as universidades perderam espaço, não se estabeleceram nesse meio e sem uma mudança da política de fomento da Ciência que valorize divulgação isso vai continuar acontecendo.
Sempre existiu negacionismo na história da humanidade, mas com advento das plataformas o fenômeno ganhou outro patamar. Você acha que as plataformas têm um papel importante para barrar o avanço das fake news e da desinformação, principalmente, na área de Saúde? Como avalia a atuação delas durante a pandemia?
A gente tem um movimento de desinformação super organizado, bem financiado, com órgãos como think tanks bancando os cientistas profissionais para gerar desinformação e semear dúvidas, que depois deputados vão levar para debates, vão levar para votações e passar projetos de leis como a aprovação recente das usinas termoelétricas, apesar do Brasil ter condições de estar investindo em energia limpa.
E é um movimento que também financia perfis falsos, palestras, desinformantes profissionais que vão agir em diferentes áreas, tem alguns que falavam contra o aquecimento global, que também foram falar contra a vacina e dizer que a Covid era falsa e por aí vai. É um movimento que tem alcance dentro das universidades para recrutar um ou dois nomes e usar o nome da universidade ou da instituição de pesquisa, como a Embrapa, para desinformar. Eles não publicam artigos científicos nessa linha, não são capazes de gerar pesquisa real nessa linha, mas se beneficiam de dar palestras usando o nome das instituições. Ao mesmo tempo vemos parte da imprensa, de jornalistas associados a isso que vão espalhar essa desinformação por vídeo, comunicando essas coisas para serem editadas e espalhadas em redes sociais e vão recrutar as pessoas para atacar quem tá falando o contrário, esse é o movimento de desinformação.
Enquanto isso o movimento científico está totalmente desorganizado, os pesquisadores e pesquisadoras estão fazendo pesquisa, publicando e gerando pesquisas extremamente relevante. Contudo, esse trabalho não tem a força de comunicação organizada, principalmente para redes sociais, como a desinformação tem. A informação científica, geralmente, fica mais restrita, não tem grande alcance, depende da grande imprensa para circular, e os profissionais que fazem essa pesquisa não vão ter reconhecimento nenhum se trabalharem ativamente para espalhar essa informação por outros meios. Na verdade, isso conta contra a produtividade deles. E mesmo quem faz divulgação, me inclua nisso, não tem a familiaridade com o uso de redes sociais e a difusão de informação que os meios que estão tentando, por exemplo, espalhar cloroquina têm. Então não tem um think tank, um financiador bancando grupos de whatsapp, perfis falsos para espalhar a informação de que as vacinas são seguras, isso na verdade funciona por outro lado só.
Você acha que as plataformas digitais podem ajudar de alguma maneira?
Eu acredito que as plataformas atuaram bem, atuaram positivamente na hora de segurar a desinformação. O Twitter enquanto ainda tinha o conselho com intenção de informar, verificou o perfil de muitos jornalistas e profissionais de Saúde, fizeram um trabalho muito grande de ir atrás, descobrir quais eram as pessoas que estavam comunicando, que são de instituições idôneas, que estavam espalhando informação real sobre o Covid e verificaram vários perfis, deram destaque para isso, fizeram listas. A Organização Mundial de Saúde trabalhou com o Youtube com o Instagram para ter o aviso nos vídeos sobre Covid lá falando, olha para ver uma fonte de informação oficial clique aqui, veja o que a OMS fala sobre isso, tiraram vídeos do ar, o YouTube tirou conteúdo até do presidente desinformando sobre cloroquina e outras coisas, barraram desinformação, suspenderam perfis, trabalharam bastante ativamente contra isso.
No Festival 3i você irá falar para um público formado por jornalistas e comunicadores sobre comunicação estratégica para redes sociais. Por que você acha importante jornalistas utilizarem essas ferramentas para divulgar seus trabalhos? Acha também que pesquisadores e cientistas devem fazer o mesmo? É possível fazê-lo sem perder a profundidade quando se trata de temas mais densos e sérios?
Não, sempre vai ter uma perda de profundidade do que a gente está comunicando e é um pouco como um filme de Hollywood, o que que é um filme blockbuster? Você tem a forma básica que é o mito do herói – a trajetória de derrota, perda, medo, superação e vitória no final – na qual quanto mais você desvia dessa fórmula, seguindo menos clichês, tendo protagonistas que fogem do padrão estabelecido, mais você “sacrifica” um pouco a audiência. Eu acho que divulgação em redes sociais sofre do mesmo mal, quanto mais complexo é o tema, quanto mais delicada é a questão, quanto mais ela envolve outros problemas, quanto mais ela precisa de mais elaboração, explicação, quanto mais longo é o conteúdo, quanto menos imagens você tem, menos vídeo, menos apelativo, menos audiência você terá. Então não, eu acho que não tem como fazer divulgação de grande alcance sem perder profundidade, ou ao contrário tem como fazer sem profundidade ao custo de sacrificar muito da audiência, mas acho que é um balanço super válido, e nem acho que tudo precisa ser comunicado ou se beneficia disso, mas acho que todo mundo tem que ter noção de como as coisas acontecem nesses meios para saber operar. Parte da importância de cientistas estarem nesses lugares, é eles se comunicarem, trocarem ideias, parte é eles gerarem métricas alternativas além de citações e aprenderem a acompanhar essas métricas para julgar o seu trabalho e o trabalho dos outros porque afinal passou do tempo em que tudo que a gente podia acompanhar enquanto os autores citam outros autores para entender o impacto das pesquisas e parte é para entender onde essa informação vai cair, cientistas hoje estão extremamente vulneráveis ao movimento negacionista e vão ser atacados, vão ser jogados na frente do trem na menor necessidade, a gente viu isso com o pessoal do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), da Fiocruz, o diretor do Inpe foi demitido, o pessoal da Fiocruz foi assediado, teve ameaça de morte, teve tudo isso simplesmente porque estavam fazendo o trabalho deles.
Veja em: https://outraspalavras.net/movimentoserebeldias/como-tornar-a-ciencia-popular-no-brasil/
Comente aqui