Filósofo: o mundo vive a metástase do ego que suplanta o pensamento complexo. Guerra sem fim e democracia em crise são sintomas. Mas, aos 101 anos, provoca: só a ação criativa e comunitária afasta espectro da morte e constrói outros futuros
Por: Joseba Elola | Entrevista com: Edgar Morin | Tradução: Maurício Ayer | Imagem: Jaime Villanueva/El Pais
Edgar Morin é um homem com uma missão. Uma missão inacabada, inadiável, inevitável: transmitir suas ideias, compartilhar seus conhecimentos, oferecer o legado mais rico possível. A produção intelectual o mantém lúcido e alerta aos 101 anos de idade. É o que o alimenta – e o preserva: ele se vê “possuído” diante do computador toda vez que enfrenta um livro ou artigo. Em seu livro Lições de um século de vida (Bertrand Brasil), confessa que foi um péssimo filho e um péssimo pai. Não é um mau marido, diz ele. Não é um mau pensador…
Ele é o sobrevivente de uma espécie em extinção: a dos grandes intelectuais do século XX. Já escreveu mais de 20 livros (além de outros pequenos, entrevistas, etc.) e na França acaba de publicar De guerre en guerre: de 1940 à l’Ukraine (De guerra em guerra: de 1940 à Ucrânia, ainda sem tradução no Brasil), um ensaio inconformista, “dissidente”, como ele mesmo diz, alheio à corrente de pensamento que domina na mídia ocidental clássica, no qual faz um apelo claro pela paz na guerra que abala o mundo desde fevereiro de 2022. Em junho, planeja publicar outra obra, Encore un peu [Um pouco mais]. E em setembro, para não baixar a guarda, mais um, co-escrito com a mulher que lhe da sustentação e vida, Sabah Abuessalam, socióloga marroquina com quem vive desde que se conheceram, numa conferência em 2009.
Intelectual de referência para a esquerda francesa, inspirador (juntamente com Stéphane Hessel) daqueles jovens que saíram às ruas do mundo no ano do 15-M [15 de maio de 2019], este descendente de judeus sefarditas espanhóis (nascido como Edgar Nahoum) é um humanista que sempre gostou de intervir na discussão pública. No entanto, no campo do pensamento, é reconhecido pela publicação entre 1977 e 2004 dos seis volumes de O método, onde desenvolve as chaves do pensamento complexo, uma metodologia de reflexão multidisciplinar e panorâmica, fora de gavetas estanques.
Recebeu-nos num dos seus recantos preferidos de Marrakech (mora sempre em trânsito entre Paris, Montpellier – sul de França – e a cidade marroquina), no palácio Es Saadi, um pomar de pássaros e palmeiras transformado em hotel: na sua casa o ar condicionado quebrou e ele não consegue ficar lá, o calor lhe tira as forças. O peso nos ombros de 101 anos vividos desaparece repentinamente assim que o gravador é ligado. Ele começa a falar e brilha. O ímpeto irrompe na voz, um tanto alquebrada, e as mãos começam a acompanhar as inflexões de suas palavras.
Joseba Elola – Você começa seu novo livro evocando os primeiros bombardeios da Luftwaffe que aniquilaram Roterdã em maio de 1940. Você foi designado para o Estado-Maior do Primeiro Exército, comandado por Lattre de Tassigny. Será o fato de ter vivido o horror da guerra que o levou a escrever mais um livro, com mais de 100 anos?
Edgar Morin – As imagens da guerra na Ucrânia, os prédios destruídos, os cadáveres de civis… Tudo isso me lembrou as guerras que vivi e em particular a Segunda Guerra Mundial. Nesses tempos, vi cidades como Hamburgo, como Mannheim, completamente destruídas.
Qualquer guerra em nome do bem na verdade envolve o mal, você diz. Isso acontece na Ucrânia?
Sim, mas em um nível muito menos massivo. Sim, bem A Rússia de Putin é culpada de ter atacado, e até tentou anexar a Ucrânia, há crimes de guerra cometidos por ambos os lados, há propaganda de guerra de ambos os lados. A guerra favorece a mentira, a informação falsa, esconder o que é negativo para o seu lado… Queria que os nossos contemporâneos soubessem disso. Tanto mais que na França, por exemplo, houve uma espécie de beatificação da Ucrânia, ao mesmo tempo em que intenções diabólicas foram atribuídas a Putin.
As intenções de Putin não são diabólicas?
O que há de diabólico em Putin, acima de tudo, é sua repressão interna a seus oponentes e a ditadura que mantém na Rússia. Você está no meio de uma guerra, que evidentemente tem aspectos criminosos. Mas somos informados das ações dos russos pelos ucranianos. Há névoa de informação.
Em seu livro, você faz um apelo claro pela paz. Mas a paz significa fazer concessões a um invasor, a Putin.
Quando as forças dos dois adversários são iguais, podem ser alcançados acordos de compromisso. A Crimeia, em 2014, contava segundo o censo com 1,4 milhão de russos, 500 mil ucranianos e 400 mil tártaros. Considerando a história e a demografia, um acordo poderia ser buscado nessa região. Não está claro por que a Ucrânia está pedindo o monopólio da Crimeia, um compromisso poderia ser buscado. Donbas é uma região extremamente rica em minerais que começou a ser industrializada pela Rússia czarista no final do século XIX. E foi a URSS de Stálin que a hiperindustrializou, grande parte dos engenheiros e operários são de origem russa. Pode-se levantar a questão de que a riqueza de Donbass foi explorada em comum.
Esse tipo de concessão deve ser feito?
Poderia ser uma solução de compromisso para obter a soberania da Ucrânia, a sua adesão à União Europeia e sua neutralidade militar. Não podemos esquecer que os americanos tiveram um papel fundamental em toda a cronologia que conduziu à guerra, com o alargamento da OTAN. Há um novo imperialismo russo de caráter pan-eslavo. Mas há também um imperialismo estadunidense que está presente de forma política, econômica e militar. A Ucrânia, em sua busca por independência e soberania, é palco de um conflito entre dois imperialismos. Com este livro, eu sabia que não estava no mainstream, eu sei muito bem que ele é dissidente nas atuais circunstâncias. E, no entanto, eu corri o risco, o risco de ser atacado. Você sabe, na França, qualquer um que discorde é imediatamente tachado de putiniano…
Isso o preocupa?
Não gosto. Mas meu dever é dizer o que penso ser útil. Estamos em uma época em que o pensamento maniqueísta e as alternativas simplistas se disfarçam de conhecimento ou pensamento. E, nas condições atuais, é cada vez mais difícil defender uma visão complexa das coisas.
Talvez voltemos à guerra, mas, mudando de assunto, você se diz herdeiro de Montaigne e Spinoza.
Sim, porque Montaigne aconselhava a prática da dúvida e do autoconhecimento. Ele tinha um espírito muito humano. Ele disse: “Todo homem é meu compatriota”. Ele é o primeiro anticolonialista. E Spinoza fez a grande revolução do pensamento moderno acabando com a ideia de um Deus superior e externo ao mundo, que é seu criador e dono. Ele deu soberania criativa à natureza.
Permita-me uma pergunta, Sr. Morin: o que o senhor faz para manter tão bem suas faculdades intelectuais aos 101 anos de idade?
Eu persevero em meu ser, como diria Spinoza. A idade me afeta, ando pior do que antes, tenho vários problemas físicos, mas felizmente mentalmente continuo o mesmo. Guardo toda a minha curiosidade, meu interesse pelo futuro da humanidade.
E como você vê esse futuro?
Não acho que estamos caminhando para um amanhã brilhante. O futuro é sombrio. Sei que muitas vezes o inesperado acontece na história, estou atento e vigilante. Mas estou muito preocupado com o futuro da humanidade.
Em seu livro Lições de um século de vida, você diz que é fundamental ter uma vida poética.
Não se pode viver poeticamente o tempo todo. A vida é uma luta entre a prosa e a poesia. A prosa é a coisa chata, a coisa que você tem que aguentar. A poesia é esse estado de encantamento, de comunhão, de gozo, aquele que dá amor ao outro, amizade coletiva, obra de arte… Cada um de nós deve procurar cultivar a parte poética da vida porque isso é viver. A outra é apenas sobrevivência.
O que mais o surpreende no modo de vida contemporâneo?
Nas grandes cidades, acima de tudo, o anonimato. Vivi na minha juventude uma época em que os vizinhos não só conversavam, mas se ajudavam, você conversava com o balconista… Hoje assistimos à destruição da convivência. Algo permanece, com os amigos, com a família. Além do anonimato, há a robotização da vida, as obrigações cronometradas cada vez mais estritas no trabalho… Tudo isso leva a uma degradação da civilização, da civilidade e das relações humanas.
Você costuma dizer que em nossas sociedades está ocorrendo uma metástase do ego.
O individualismo moderno desenvolveu aspectos positivos, como a conquista da autonomia. Mas também negativos, como a predominância de si mesmo sobre os outros. O ser humano é, por um lado, egocêntrico: deve defender-se, alimentar-se e pensar em si; mas também é aberto aos outros, é comunitário, há amor… O egocentrismo deve ser reduzido ao mínimo vital de conservação. A fraternidade é algo capital.
Você disse em entrevista a Nuccio Ordine: “O desenvolvimento econômico capitalista desencadeou os grandes problemas de nosso planeta.” É assim?
A hegemonia do lucro está se manifestando em todo o mundo e está levando à degradação ecológica do planeta. Temos que resistir, tentando viver num oásis de fraternidade e convivência, porque no momento não há força política capaz de criar uma nova política de civilização, um caminho.
Neste ponto da sua vida, como você se define politicamente?
Eu me defino como um homem de esquerda. Mas desde minha ruptura com o comunismo em 1951, sou independente de qualquer partido e quero continuar assim. Estar à esquerda significa beber elementos de três fontes principais, e de uma quarta: do anarquismo, o indivíduo livre; do socialismo, uma sociedade melhor; do comunismo, uma irmandade humana. Essas três noções foram separadas e opostas, e para mim essas três noções devem estar associadas. A quarta é a relação com a natureza que a ecologia nos ensina.
E como a esquerda deve se posicionar diante desse desenvolvimento econômico capitalista?
Devemos reverter a hegemonia do lucro em todas as áreas onde for possível. Na agricultura, deixar progressivamente o industrializado para ir em direção ao ecológico. Devemos recuperar o sentido da solidariedade. O neoliberalismo econômico tende a destruir os serviços públicos, há que infundir-lhes vitalidade. As reformas são necessárias para transformar gradualmente a sociedade porque, na minha opinião, a revolução não é possível; pelo menos, tal como existiu, foi mais destrutiva do que construtiva, estou pensando na União Soviética ou na China. Esta é uma missão coletiva progressista e, no momento, não há força política capaz de promovê-la.
Você não consegue encontrar uma força de esquerda em qualquer país que seja interessante para você?
Houve tentativas, mas não duraram muito e fracassaram, como no Equador do presidente [Rafael] Correa; no Chile houve um impulso, mas não se concluiu; no Brasil, teve elementos positivos, mas não deu certo. O planeta vive um processo de regressão política generalizada: crise da democracia, regimes de fachada democrática e neo-autoritários que se multiplicam… Não é só o caso da Rússia, Turquia ou Hungria. Na Europa existem outros países ameaçados, como a França.
Você vê a França ameaçada?
Regressão econômica, desigualdades crescentes, poder dos super-ricos, uma elite muito pequena enquanto o resto do mundo empobrece… Estamos em uma vertente perigosa.
E como você acha que influenciou tudo isso a oposição a Macron nas ruas e o aumento da idade de aposentadoria na França?
Acho que o movimento que vai se beneficiar com tudo isso será o Reagrupamento Nacional de Marine Le Pen, que se manteve à espera. Com a desintegração da direita clássica, a crise do macronismo, que era uma espécie de centrismo, e a crise da esquerda, corre-se o risco de que nas próximas eleições o Reagrupamento Nacional chegue legalmente ao poder e estabeleça um poder neo-autoritário.
Em entrevista que deu durante a pandemia, você disse: “Na minha idade, a morte está sempre à espreita. Portanto, é melhor pensar na vida e no que está acontecendo. A morte é um tabu em nossa sociedade, mas também é um tabu aos 101?
Acho que esse tabu enfraqueceu um pouco. Quando escrevi O homem e a morte, em 1951, era um assunto que parecia obsceno. Mas é verdade que quando se passa dos 100 anos, chega-se a uma terra pouco conhecida e habitada, não há muitos centenários. É evidente que a proximidade da morte é permanente. É algo que pode me acontecer a qualquer noite, não se sabe. Enquanto sou possuído pelas forças da vida, da participação, da curiosidade e da ação, o espectro da morte se afasta. Mas devo dizer que há momentos de vazio em que, abruptamente, ele me vem. E eu digo a mim mesmo: é isso? É o destino, não só de todos os seres vivos, mas de tudo que há no mundo: até as estrelas morrem. Às vezes, é claro, a ideia de meu eu desaparecendo me dá uma sensação de vazio; eu sinto a presença do nada. Mas não sou obcecada, são momentos. Estou muito mais focado nas forças da vida que continuam me animando.
Veja em: https://outraspalavras.net/movimentoserebeldias/morin-convite-a-indispensavel-viver-poetico/
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