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Jairus Banaji transformou nossa compreensão sobre as origens do capitalismo

O historiador Jairus Banaji desenvolveu uma perspectiva profundamente autêntica sobre a história do capitalismo que enfatiza a importância do capital comercial. Sua obra é leitura obrigatória para quem quer saber como o sistema econômico global se tornou o que é hoje.

Por: Paolo Tedesco | Tradução: Iago Braga | Imagem: Art Media / Colecionador de Impressão / Getty Images. Os Efeitos do Bom Governo no Campo, de Ambrogio Lorenzetti (1338-1340), retrata comerciantes no campo

Olivro de Jairus Banaji, A Brief History of Commercial Capitalism (Uma Breve História do Capitalismo Mercantil), publicado pela primeira vez em 2020, se propõe a descobrir as mais profundas raízes históricas do desenvolvimento capitalista. O livro aborda importantes debates teóricos, especialmente na tradição marxista, sobre as origens do capitalismo.

O trabalho de Banaji questiona as várias narrativas arraigadas sobre a história econômica global, incluindo a visão de uma Idade Média economicamente regressiva e a ideia de uma transição linear para a modernidade. As imagens que Banaji esboça através de um conjunto de tirar o fôlego de casos ilustrativos em todo o mundo, abrangendo quase um milênio, levantam muitas questões fundamentais para quem quer entender como o sistema econômico mundial surgiu e como ele pode continuar a se desenvolver no futuro.

Uma Breve História do Capitalismo Mercantil já teve um grande impacto no mundo acadêmico e atraiu muitas reações dos seus colegas historiadores. Mas, deve ser de grande interesse também para não especialistas. A seguir, darei um sucinto resumo da formação intelectual de Banaji e dos principais argumentos que ele apresenta antes de examinar a discussão que o livro provocou.

Capitalismo mercantil

Jairus Banaji nasceu em Pune em 1947, ano em que a Índia conquistou sua independência, e estudou na Inglaterra antes de retornar ao seu país natal para ser um ativista político. Em seu trabalho acadêmico, Banaji abarca os Antigos e os Medievais Mediterrâneo e Oriente Médio, além de também se interessar na longa história do capitalismo. Seu trabalho aborda uma variedade de tópicos, incluindo o destino do campesinato no contexto de uma economia em rápida globalização e a história da economia mercantil no último milênio.

O principal objetivo de Banaji em Uma Breve História é resgatar o conceito de capitalismo mercantil como uma categoria chave para investigar a formação da economia global moderna. Em sua obra, esse termo é usado para descrever um sistema econômico voltado para o lucro, no qual os mercadores empregam seu capital não apenas para circular mercadorias, mas também para obter controle direto sobre a produção e, assim, subordiná-la aos seus interesses.

A relevância que Banaji atribui ao controle mercantil sobre a produção é um ataque frontal à tradicional dicotomia marxista entre o mundo do comércio (a “esfera da circulação”) e o da produção – uma dicotomia que levou economistas e historiadores marxistas como Maurice Dobb a contestar a própria ideia do capitalismo mercantil como uma contradição em termos.

Como aponta Banaji, foram em grande parte historiadores trabalhando fora da tradição marxista, ou se envolvendo mais livremente com ela, que adotaram a categoria. O caso mais notável é Fernand Braudel, que definiu o capitalismo mercantil como o termo mais útil para descrever a natureza da produção e da troca comercial na Europa e no Mediterrâneo entre os séculos XV e XVIII.

Uma Breve História é o último de uma série de volumes que abordam essas questões, seguindo Agrarian Change in Late Antiquity (2001), Theory as History(2010) e Exploring the Economy of Late Antiquity (2016). E, embora Banaji escreva dentro da tradição acadêmica marxista, seus principais pontos de referência nesse universo diferem-se daqueles da maioria dos historiadores marxistas ocidentais. Em particular, Banaji baseia-se no trabalho de três estudiosos russos do início do século XX: o historiador Mikhail N. Pokrovsky (1868–1932), o economista Yevgeni A. Preobrazhensky (1886–1937) e o economista agrário Alexander V. Chayanov (1888–1939).

Pokrovsky, Preobrazhensky e Chayanov

Mikhail N. Pokrovsky foi um dos intelectuais mais influentes da sociedade soviética na década de 1920. Ele gozou de um prestígio enorme — na verdade, inigualável — entre os historiadores soviéticos de seu tempo.

Em uma oposição radical ao que se consagraria como a narrativa marxista ortodoxa sob Josef Stalin, a interpretação de Pokrovsky da história russa enfatizou a centralidade do capital comercial como agente de mudança socioeconômica entre os séculos XVII e XIX. No entanto, ele afirmou explicitamente que a existência e a operação do capital comercial não significam que uma economia capitalista tenha surgido.

Yevgeni A. Preobrazhensky foi um pioneiro no estudo das consequências da “penetração lateral”do capital industrial no campo. Assim como Pokrovsky que o antecedeu, Preobrazhensky via a produção de mercadorias simples como típica do capitalismo mercantil, ao mesmo tempo em que era uma das principais restrições à sua expansão.

Em consonância com os marxistas agrários como Lev N. Kritsman, Preobrazhensky via o capitalismo como uma força que erradicava o campesinato e, por fim, causava sua extinção.

Ele acredita que isso aconteceu como resultado de dois processos. Por um lado, houve o desenvolvimento interno das relações capitalistas nas fileiras do próprio campesinato, com a formação de uma classe de camponeses ricos que controlavam a lavoura em larga escala. Por outro lado, de forma mais ampla e catastrófica, houve a subordinação externa das áreas rurais à grande indústria, com a criação de uma classe de camponeses sem-terra trabalhando na agricultura comercial.

Alexander V. Chayanov foi um dos principais economistas agrários de sua época. Em sua obra The Theory of Peasant Economy (A Teoria da Economia Agrária), Chayanov enfatizou a resistência das famílias camponesas e sua capacidade de adaptação para que pudessem resistir ao ataque do capitalismo, contestando diretamente as teses dos marxistas agrários e de Preobrazhensky. Ele argumentou que o desenvolvimento das tendências capitalistas e a concentração produtiva na agricultura não resultaram necessariamente na desapropriação dos camponeses e no surgimento de grandes fazendas capitalistas.

Para Chayanov, o capital comercial e financeiro também poderia exercer seu controle de forma mais sutil, estabelecendo uma hegemonia econômica sobre setores consideráveis ​​da agricultura. Enquanto isso, esses setores poderiam permanecer praticamente os mesmos de antes no que diz respeito à produção, ou seja, compostos de pequenos empreendimentos camponeses baseados na mão de obra familiar.

A obra de Banaji mostra que podemos conciliar esses modelos aparentemente incompatíveis. Cada um descreve uma possível trajetória diferente da penetração do capital no campo. Mas, eles também refletem diferentes fases do próprio caminho intelectual de Banaji.

Em seus escritos anteriores, Banaji abraçou a concepção de “penetração lateral do capital” de Preobrazhensky para mostrar o efeito destrutivo da industrialização sobre o campesinato na Rússia do final do século XIX e início do século XX.

Nesse contexto, o modelo de Preobrazhensky foi útil como ponto de comparação para a análise banajiana dos camponeses em todo o mundo. Em estudos subsequentes, entretanto, Banaji passou a ver esse conceito apenas como uma das formas possíveis para o capital industrial penetrar no campo.

Ele foi influenciado por um novo interesse adquirido por meio da obra de Chayanov, particularmente nos escritos que Henry Bernstein mais tarde desenvolveu e expandiu. A conceituação de Chayanov da relação entre o campesinato e o capital, portanto, ocupa o centro do palco como a principal fonte de inspiração para Uma Breve História de Banaji.

Essa reavaliação da obra de Chayanov leva Banaji a incluir em seu modelo as circunstâncias históricas em que as famílias camponesas resistiram à penetração do capitalismo. Temos que entender essa “resiliência” no sentido de que as famílias camponesas não foram desenraizadas, mas “incorporadas” — um ato que, por sua vez, permitiu conflito e resistência de sua parte.

Embora tais famílias continuassem a existir em grande número, seu ciclo de reprodução social era agora de forma ampla e crucial moldado pelo capital.

Mercadores e manufatura

Em Uma Breve História, ao contrário de seus trabalhos anteriores, Banaji não está tão preocupado em traçar uma distinção teórica entre o que Karl Marx chamou de “modo de produção capitalista” e modos não capitalistas.

Em vez disso, ele lida com o capitalismo em termos menos estatutários, argumentando em particular que um tipo de “capitalismo mercantil” existia muito antes da industrialização em certas regiões do mundo em um período que vai do século XII (ou mesmo antes) ao XVIII.

Embora Banaji não ofereça uma definição formal de capitalismo mercantil, podemos captar seu significado combinando a análise do livro com seus escritos teóricos anteriores. Fernand Braudel pensava essa forma de capitalismo como uma rede global de banqueiros e grandes mercadores que presidiam a economia da vida cotidiana a partir de seus centros financeiros urbanos, embora carecessem de qualquer controle direto sobre os produtores primários.

“Banaji, por outro lado, identifica a longa história do capitalismo em termos de suas relações sociais particulares.”

Esse capitalismo seria um sistema no qual os detentores do capital têm controle limitado dos meios de produção e então reduzem o trabalho a um fator dentro do processo de produção – uma simples mercadoria que pode ser comprada e vendida. O confronto entre um capitalista e um camponês ou um artesão — uma pessoa que sobrevive vendendo sua força de trabalho — ocupa o centro da análise de Banaji.

A partir dessa distinção, ele argumenta contra a visão amplamente difundida no marxismo de que a riqueza mercantil não constitui capital no sentido marxiano, haja vista que ela permanece externa ao processo de produção. Uma vez que a riqueza mercantil é, de acordo com Marx, separada do que ele chamou de subordinação (subsumtion) real do trabalho ao capital, as melhores mercadorias dos produtores primários simplesmente foram apropriadas e os mercadores obtiveram lucros as vendendo.

De outro modo, Banaji argumenta que a riqueza mercantil é de fato capital e que, do século XII ao século XVIII, os mercadores utilizaram sistematicamente esse capital para controlar e explorar o trabalho de parte significativa da população em toda o mundo afro-eurasiano. Ele identifica duas esferas de produção onde a penetração do capital comercial foi particularmente significativa.

A primeira foi no setor da agricultura comercial, onde os “capitalistas comerciais” se aproveitaram de vastas quantidades de trabalho familiar não pago por meio de vários recursos, impondo assim relações de dívida aos camponeses.

Os capitalistas comerciais eram proprietários de terras que se tornaram mercadores (até mesmo agiotas); às vezes, eles também se interessavam em controlar propriedades de lavouras comerciais. Eles formaram uma categoria ambígua e historicamente muito difícil de definir precisamente.

Apesar de suas diferenças, a base produtiva para a maior parte da atividade comercial era uma força de trabalho mista. Este é um ponto que Banaji demonstrou em seu exame dos pequenos camponeses do planalto de Decão no final do século XIX, e recebe mais apoio do trabalho de Lorenzo Bondioli sobre o campesinato egípcio do século XI.

O segundo setor é o da produção artesanal, ou “manufatura mercantil”, como o chama Banaji. Nesse setor, os mercadores forçavam os pobres do campo e da cidade a processar seda, lã e algodão para a venda. Isso significava que eles não estavam apenas vendendo seu excedente, mas trabalhando para os mercadores com “um preço por unidade artesanalmente produzida”.

Trajetórias de acumulação

Em Uma Breve História, Banaji examina as “trajetórias de acumulação” que levam do capitalismo mercantil ao industrial. Enquanto os capitalistas mercadores valorizavam a abertura da agricultura — juntamente com a mineração, a exploração dos recursos marinhos, etc. — à exploração capitalista, os capitalistas industriais levam esse processo a um nível completamente diferente.

A simples escala de submissão, a natureza de seu impacto e o grau de subordinação do trabalho distinguem a subjugação do campo à acumulação industrial dos ciclos anteriores do “capitalismo”.

Banaji não vê apenas uma rápida intensificação nos mecanismos de exploração sob o capitalismo industrial. Ele também nota uma mudança radical na divisão das remessas de lucros entre comerciantes e industriais em benefício destes últimos. No final do século XIX, os atores econômicos que controlavam diretamente a produção conseguiram marginalizar os mercadores, concretizando o que Marx descreveu como a subordinação do capital comercial ao capital industrial.

Esta parece ser a chave para uma separação basilar na visão de Banaji entre a era do capitalismo mercantil e a do capitalismo industrial, uma era que merece o rótulo pleno de modo de produção capitalista. No entanto, essas trajetórias do capitalismo mercantil para o industrial foram multilineares no tempo e no espaço. Não seguiam uma sequência rígida de etapas e não eram irreversíveis, como demonstram as tendências contemporâneas.

Os varejistas transnacionais que operam no mercado mundial hoje controlam a manufatura por meio dos fluxos de capital comercial sem possuir os meios de produção. Como observou Nelson Lichtenstein:

A hegemonia do varejo no século XXI ecoa, e até replica, características do regime mercantil outrora presidido pelos grandes mercadores e banqueiros dos séculos XVII e XVIII de Amsterdã, de Hamburgo e de Londres.

Em suma, uma espécie de empresário braudeliano “retornou para sustentar o sistema global contemporâneo”.

A exposição de Banaji sobre o “capitalismo mercantil” pode, portanto, acomodar vários níveis e graus variados de integração entre produção e circulação, apontando para a força motriz do capital como um denominador comum que atravessa diferentes configurações. O modelo resultante do capitalismo mercantil é de desenvolvimento desigual e combinado. Esse modelo rejeita a noção de uma sucessão linear entre diferentes modos de produção — antigo, feudal e capitalista — e resgata as histórias do capitalismo tanto do eurocentrismo quanto do orientalismo.

Perspectivas críticas

Desde sua publicação em 2020, Uma Breve História atraiu a atenção de uma ampla e diversificada comunidade de especialistas no campo da história do capitalismo, levando a várias revisões da obra de Banaji.

Embora cada autor expresse preocupações diferentes sobre vários aspectos de sua visão do capitalismo, podemos identificar três grandes temas: (1) a definição de capitalismo mercantil; (2) a relação entre a ascensão do capitalismo mercantil e o Estado; e (3) o impacto do capitalismo mercantil e do colonialismo na vida social.

A primeira crítica surge da definição vaga de capitalismo mercantil de Banaji. Lorenzo Bondioli observa que todas as infraestruturas do capitalismo mercantil que Banaji identificou como inéditas até o século IX da Era Comum têm raízes mais profundas do que Uma Breve História sugere. Suas fundações foram lançadas em períodos bem mais antigos (ocasionalmente com raízes que alcançam a Antiguidade propriamente dita) e continuaram a operar sem nenhuma descontinuidade dramática na Idade Média.

A partir dessa avaliação, Bondioli isola três possíveis definições de capitalismo e tenta traçar uma relação não teleológica entre elas. Primeiro, há o capitalismo de mercadores capitalistas que empregaram a riqueza monetária como capital, extraindo mais-valia de vários produtores subordinados; segundo, há o capitalismo dos Estados mercantis coloniais que colocam a violência organizada a serviço da acumulação dos mercadores capitalistas; e terceiro, há o capitalismo da sociedade capitalista industrial moderna – em outras palavras, de um modo de produção capitalista plenamente desenvolvido.

A intervenção do Estado na economia mundial é o segundo critério que Banaji emprega em sua análise do capitalismo mercantil. Banaji vê no “conluio entre comércio e Estado” – isto é, na ascensão de Estados mercantilistas no final da Idade Média e início da Europa moderna – uma mudança significativa no processo de acumulação de capital e subordinação do trabalho. No entanto, podemos observar o “conluio” per se e, particularmente, o envolvimento de comerciantes nas finanças do Estado em muitos contextos históricos.

Isso sugere que, como Martha Howell claramente demonstra, não foi a mera presença de um conluio do Estado com os mercadores que determinou uma aceleração na escala de acumulação de capital. Tampouco foi tipo de Estado específico — como os Estados tributários muçulmanos ou as dinastias chinesas examinadas por Andrew Liu — que determinou uma mudança na escala de acumulação de capital e subordinação do trabalho.

Em vez disso, foi apenas o Estado que serviu como exportador de agressão e violência que controlou tal mudança.

“Essa visão também devolve o foco ao elo fundamental entre o capitalismo mercantil e o colonialismo, enfatizando que foi a violência colonial que provocou uma mudança na qualidade e no funcionamento do capital comercial.”

Com este ponto, passamos para o terceiro item de disputa que emerge da posição de Banaji: a relação entre capitalismo mercantil e colonialismo. Como Priya Satya e Sheetal Chhabria observam de forma patente, Banaji não separa raça de classe ou casta de classe. No entanto, essas distinções são importantes, pois nos permitem diagnosticar o ponto em que o capitalismo mercantil se cruzou com o colonialismo e passou a depender da racialização ou da identidade de casta.

Essa lacuna também aponta na direção de uma crítica mais ampla. Em sua análise das relações de produção, Banaji nem sempre deixa claro como o capitalismo mercantil impactou e remodelou violentamente a vida social das pessoas a ele subordinadas. Em outras palavras, ficamos imaginando até que ponto o capitalismo mercantil, como Banaji o descreve, transformou fundamentalmente, ou não transformou, os modos de vida social em diferentes lugares e em diferentes épocas.

Esta questão pode abrir uma série de caminhos de pesquisa promissores que parecem apontar em uma direção. Não podemos escrever a história do capitalismo sem considerar a intersecção de diferentes mecanismos de opressão, como raça, gênero, etnia e origem nacional, além da classe social. Estes oferecem uma imagem mais rica de como “níveis separados de opressão” mudaram a vida das pessoas comuns sob o capitalismo.

 

Veja em: https://jacobin.com.br/2023/08/jairus-banaji-transformou-nossa-compreensao-sobre-as-origens-do-capitalismo/

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