Ao aplicar à natureza a teoria social de Malthus, biólogo deu base “científica” ao conformismo conservador. Mas a transformação social, que ele desdenhou, exige figurar o ainda-não-existente, e mobilizar visões de futuro guiadas pelo desejo
Por: Maurício Abdalla | Crédito Foto: |Imagem: Michael Houtz/NYT
Título original:
A antiutopia de Darwin
A manutenção do sistema econômico e das relações sociais dele decorrentes e a conservação do estado presente do mundo tem a utopia como principal inimiga. Sua eliminação é objetivo estratégico para quem deseja perpetuar o mundo dado ou para aqueles cujo projeto se limita a desenvolver, mesmo que de forma mais humanitária, as potências do dado, sem aceitar sua superação. Por isso, qualquer ideal utópico é rechaçado tanto por conservadores quanto por aqueles progressistas cujas ideias de melhoria estão restritas aos limites daquilo que o sistema que conforma o mundo real permite pensar e fazer.
Todo sistema socioeconômico que se estabelece no mundo precisa perpetuar-se e, para isso, tem por necessidade rechaçar a utopia ou desfigurá-la, limitando as esperanças a um desejo superficial, totalmente presente, para cuja satisfação bastaria a boa vontade e o desenvolvimento adequado do que já se tem disponível em princípio. Por isso, toda expressão teórica que se compromete com o sistema vigente, concebendo-o como imutável ou como dado natural, é contrária à utopia, portanto antiutópica.
Uso o termo antiutópico em seu sentido literal de “contrário à utopia”, e não como “o reverso da utopia”, como geralmente se usa ao colocar antiutopia como sinônimo de distopia. A distopia projeta o pior de nosso mundo para um mais-além, criando cenários tétricos a partir de nossos maiores medos. Ela é o inverso da utopia. Já a antiutopia é contrária à utopia, pois busca sacralizar e eternizar o presente e destruir qualquer projeção de um ainda-não.
Em nome de um suposto realismo, que acaba se convertendo em pessimismo, seus expoentes ridicularizam o desejo utópico como mera fantasia. O mundo que desejam é apenas a reprodução intensificada do que já existe, do que já tem lugar. Sua meta é tornar a realidade totalmente opaca, para que não se permita ver através dela as imagens de um outro mundo possível.
Thomas Malthus, contemporâneo da Revolução Industrial capitalista e do colonialismo britânico, foi um dos principais expoentes do realismo pessimista e antiutópico, que, em nossa época, foi reproduzido pelo pensamento neoliberal. Para ele, ao contrário do que projetavam todas as utopias, “o homem não pode viver em meio à abundância. Todos não podem partilhar da mesma forma das dádivas da natureza” (Malthus, 1996, p. 304). Os projetos de um mundo igualitário eram puras fantasias cuja importância seria apenas a contemplação estética. Malthus ironiza o ideal de igualdade de William Godwin, baseando-se em um imperativo (“esse momento nunca poderá chegar”) deduzido apenas daquilo que o sistema capitalista oferecia em seu presente. Comentando a obra de Godwin, ele diz:
Em suma, é impossível contemplar o conjunto dessa bela estrutura sem os sentimentos do deleite e da admiração, seguido de um ardoroso desejo pela época de sua realização. Entretanto, ah!, esse momento nunca poderá chegar. O todo é pouco mais que um sonho, uma bela fantasia da imaginação. Esses “palácios suntuosos” da prosperidade e da imortalidade, esses “templos solenes” da verdade e da virtude se dissolverão “como o edifício sem base de uma visão”, quando acordamos para a vida real e vemos a situação verdadeira e concreta do homem na Terra (Malthus, 1996, p. 301. Grifos meus).
Absolutamente acorrentado ao dado, posicionado intelectualmente ao lado de quem desejava a perpetuação da configuração de seu presente capitalista, o autor do Ensaio sobre as populações identifica o estado de coisas e relações humanas do seu tempo com “a situação verdadeira e concreta do homem na Terra”. O pensamento antiutópico tem a característica de elevar à condição de necessidade tudo aquilo que é contingente e determinado por uma dada configuração do real no tempo histórico. Se o ser humano se mostra individualista e egoísta em um sistema que o força a assim ser, ele transforma o individualismo e o egoísmo em condições essenciais do humano. Consequentemente, toda postura, prática ou teórica, fundada na solidariedade e no altruísmo passa a ser concebida como desviante e contrária à essência do ser humano.
O pensamento antiutópico, quando bem assentado, converte-se em senso comum e se torna uma postura social. Isso faz com que ele tenha consequências práticas, além das intelectuais. Assim como a utopia pode guiar a ação, o seu contrário também é capaz de determinar ações e propostas políticas. Malthus, por exemplo, propunha o fim das políticas de auxílio aos pobres em nome de seu realismo antiutópico, proposição que ainda alimenta o pensamento liberal contemporâneo:
Eliminar as necessidades das classes mais baixas da sociedade é, na verdade, uma tarefa árdua. A verdade é que a pressão da miséria sobre essa parcela de uma comunidade é um mal tão profundamente arraigado que nenhuma habilidade humana pode atingi-lo. Fosse eu propor um paliativo – e paliativos é tudo o que a natureza do caso admitirá –, seria, em primeiro lugar, a revogação completa de todas as atuais leis paroquiais de auxílio aos pobres (Malthus, 1996, p. 274).
A fim de superar e reprimir as utopias, o pensamento antiutópico precisava ganhar também caráter naturalista e científico em uma era na qual a ciência adquiriu status de único conhecimento verdadeiro. A modernidade abraçou o ideal baconiano de verdade como a revelação pura dos segredos da natureza por meio do método científico. Francis Bacon, em seu Novum Organum, propõe um modelo de conhecimento no qual o sujeito se purga de todas as características de sua própria subjetividade, incluindo o desejo, e, amparado pelo método indutivo, faz a natureza revelar sua verdade.
Tal conhecimento, que foi incorporado ao discurso moderno sobre a ciência, ganhou status de superioridade, maior veracidade e exatidão em relação a todos os demais. Portanto, naturalizar uma ideia e conferir-lhe o carimbo da ciência é o mesmo que eternizá-la e livrá-la de todo o contraditório. Qualquer ideia ou proposição que possa contrariar a suposta naturalidade e cientificidade de uma concepção é tida como quimera ou desejo impossível.
Coube a Charles Darwin a naturalização das ideias de Malthus e sua transformação em “leis naturais” com caráter de cientificidade. Em sua mais famosa obra A origem das espécies, Darwin revela a origem sociológica e malthusiana de suas ideias naturalistas. Segundo ele, logo na introdução de seu principal livro, sua proposição sobre a origem das espécies era “a doutrina de Malthus aplicada ao conjunto dos reinos animal e vegetal” (Darwin, 1860, p. 5). No capítulo 3 da mesma obra, o autor reafirma o que disse na introdução com ênfase ainda maior: “É a doutrina de Malthus aplicada com muito mais força (with manifold force) à totalidade dos reinos animal e vegetal” (Darwin, 1860, p. 63).
Em sua autobiografia, ele também revela ter encontrado sua teoria no Ensaio sobre as populações de Malthus:
Em outubro de 1838 (…), ocorreu de eu ler, para minha distração, o “Ensaio sobre as populações” de Malthus e, estando já bem-preparado para compreender a luta pela existência que acontece em toda a parte por uma observação contínua dos hábitos de animais e plantas, imediatamente me ocorreu que, sob tais circunstâncias, as variações favoráveis tenderiam a ser preservadas, enquanto as desfavoráveis seriam destruídas. O resultado disso seria a formação de novas espécies. Aqui, então, eu tinha finalmente conseguido uma teoria com a qual trabalhar (Here, then, I had at last got a theory by which to work)” (Darwin, 1958, p. 120. Grifos meus).
A despeito dos mitos criados pela literatura de divulgação científica, a teoria darwiniana está longe de ter apenas dimensão naturalista, pois foi, desde o início, aplicada à sociedade por seu próprio autor. Dela também derivavam propostas sociais que poderiam converter-se em prática, na mesma linha das ideias malthusianas que a inspiravam. Em obra posterior (A origem do homem), Darwin reaplica à sociedade as ideias originalmente sociais que ele converteu em ciência natural. Também para ele, a ajuda aos miseráveis, doentes, portadores de deficiência física e mental e a todos que ele incluía na categoria de “membros fracos e inferiores” da sociedade era algo prejudicial ao aperfeiçoamento da raça humana e deveria, portanto, ser evitada.
A eliminação dos fracos (literalmente “the weak in body or mind”) favoreceria a sobrevivência dos “membros superiores” da sociedade e elevaria o nível de evolução da nossa espécie:
Entre os selvagens, os indivíduos fracos de corpo ou mente são logo eliminados; e os que sobrevivem exibem comumente um vigoroso estado de saúde. Nós, homens civilizados, por outro lado, nos esforçamos o máximo para deter o processo de eliminação; construímos asilos para os doentes mentais, os aleijados e os doentes; instituímos leis contra a pobreza; e nossos médicos empenham suas máximas habilidades para salvar a vida de cada um até o último momento. Há razão para acreditar que a vacinação preservou milhares, que, devido à sua fraca constituição, teriam antes sucumbido à varíola. Dessa forma, os membros fracos das sociedades civilizadas propagam sua espécie. Ninguém que haja prestado atenção à criação de animais domésticos duvida que isso deve ser altamente prejudicial para a raça humana. É surpreendente como a carência de cuidado, ou os cuidados mal administrados, logo levam à degeneração de uma raça doméstica; mas, exceto no caso do próprio homem, quase ninguém é tão ignorante a ponto de permitir que seus piores animais procriem (Darwin, 1877, p. 133 e 134. Grifos meus).
Essas afirmações contrastam com o pensamento utópico de Thomas More, que em sua obra Utopia, de 1516, afirma que para os habitantes de sua ilha imaginária:
a virtude mais nobre e mais humana, em qualquer terreno, consiste em suavizar os sofrimentos do próximo, arrancá-lo ao desespero e à tristeza, restituir-lhe as alegrias da vida, ou, em outros termos, fazê-lo ter parte também na volúpia. […]. A natureza, dizem eles, convida todos os homens a se ajudarem mutuamente e a partilharem em comum do alegre festim da vida (More, 1984, p. 254).
Para Darwin, cuja obra aqui comentada é tida como científica, essa ação dos utopianos, louvada por More, é considerada “altamente prejudicial para a raça humana”.
Os nazistas prenderam e mataram judeus, homossexuais, ciganos, comunistas deficientes físicos e mentais (cerca de 200 mil deficientes foram assassinados pelos nazistas entre 1940 e 1945, segundo o site “Enciclopédia do Holocausto” https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/the-murder-of-the-handicapped) etc. por considerarem-nos os “membros inferiores” da sociedade. Sua tentativa de não permitir que “seus piores animais procriassem” e “propagassem sua espécie” não trai o pensamento de Darwin.
Enquanto o pensamento utópico, bem antes dele, projetava o fim da acumulação de riquezas e a divisão dos bens, Darwin se esforçava por justificar “cientificamente” os benefícios “naturalistas” da acumulação de capital para a evolução do ser humano. Thomas More, na obra citada, questiona:
É justo que um nobre, um ourives, um usurário, um homem que não produz senão objetos de luxo, inúteis ao Estado, é justo que tais indivíduos levem uma vida caprichosa e esplêndida por entre a ociosidade e ocupações frívolas, enquanto que um trabalhador, um carreteiro, um artesão, um lavrador vivem uma obscura miséria, mal podendo alimentar-se? E, no entanto, os últimos estão amarrados a um trabalho tão pesado e tão penoso que as bestas de carga mal suportariam; tão necessário que nenhuma sociedade poderia subsistir um ano sem ele (More, 1984, p. 311).
A resposta pretensamente científica que podemos encontrar em Darwin ao questionamento de More é de que isso não é apenas justo, mas tem uma função primordial na evolução! Não é o trabalho que é indispensável à sociedade, mas, sim, a existência de “homens bem instruídos, que não precisam trabalhar para seu sustento diário”. Para Darwin, os ricos ociosos é que são necessários para a sociedade:
[…] A herança de propriedade, por si mesma, está muito longe de ser um mal; pois sem a acumulação do capital as artes não poderiam progredir; e é principalmente por meio de seu poder que as raças civilizadas se expandiram, e estão agora expandindo seu domínio de forma a tomar o lugar das raças inferiores. Tampouco a acumulação de riqueza moderada interfere no processo de seleção […]. A presença de um corpo de homens bem instruídos, que não precisam trabalhar para seu sustento diário, tem uma importância de um grau que não pode ser superestimado;1 pois eles carregam todo trabalho intelectual superior, e deste tipo de trabalho depende o progresso material de todos os tipos, sem mencionar outras e grandes vantagens (Darwin, 1877, p. 134-135. Grifos meus).
Essas “outras e grandes vantagens”, que ele não menciona, permanecem uma incógnita, pois é difícil saber quais são. No tempo em que Darwin redigiu essas páginas, a Inglaterra capitalista vinha dizimando, dominando e colonizando violentamente os povos nativos da Austrália, América do Norte e Índia; essas são as “raças inferiores” às quais ele se refere.
A utopia torna o real transparente, para que se possa vislumbrar um mudo ainda não existente através de seus contornos. A configuração real do tempo presente de Darwin, transposto para o plano da natureza, faz o inverso. Ao naturalizar as relações sociais dadas, ele torna o real ainda mais opaco do que é. No lugar da transparência que a utopia provoca no real, permitindo-nos ver outro plano de realidade através do nosso mundo, a naturalização e cientificação de um dado estado de coisas criam uma barreira intransponível que nos aprisiona à realidade presente. O mundo humano deixa de ser entendido como algo construído pelo ser humano – que pode, portanto, ser reconstruído –, para ser concebido como um dado natural, sobre o qual não temos arbítrio e controle.
A naturalização do pensamento antiutópico não ficou restrita à ciência do século XIX. Dela resultam diversas formas atuais de naturalização da sociedade, como a sociobiologia e o determinismo genético de Richard Dawkins – que alçou o egoísmo à propriedade fundamental dos genes em sua obra O gene egoísta – e de outros representantes da ortodoxia darwinista. A suposta “verdade” do dado, sacralizada como princípio científico, não pode ser substituída ou sequer relativizada por nossos desejos. A biologia toma o lugar do pensamento social para dar o veredito: por mais que queiramos algo, a “verdade da ciência”, que transferiu os valores da sociedade capitalista para a natureza, é implacável na frustração de todo desejo utópico:
Pessoalmente creio que seria muito desagradável viver numa sociedade humana baseada simplesmente na lei do egoísmo, implacável e universal, do gene. Mas, infelizmente, por mais que se lamente algo, esse algo não deixa, por isso, de ser verdadeiro (Dawkins, 1989, p. 30).
Portanto, todos os sonhos de uma sociedade altruísta, solidária, com partilha de bens e cuidado mútuo sucumbem diante das “leis implacáveis da natureza”. É a decretação da morte da utopia, o canto de vitória da finitude do dado sobre a infinitude desejante que caracterizou o ser humano na história. Mais ainda: como a história humana, em todos os seus avanços, foi fruto da infinitude projetante utópica do ser humano, a derrota da utopia é a derrota do ser humano como ser transcendente e da própria história. A antiutopia transforma o não-lugar em um nunca-lugar.
A difusão do pensamento antiutópico e o verniz científico que recebeu, tanto pelos meios acadêmicos como pelas mídias de massa, fez com que ele se tornasse uma postura frequente e entranhada no senso comum. Porém, sem a relação dialética entre a finitude do real e a infinitude do desejo não existe esperança concreta.
Mannheim nos adverte, oportunamente, que:
A desaparição da utopia ocasiona um estado de coisas estático em que o próprio homem se transforma em coisa. Iríamos, então, nos defrontar com o maior paradoxo imaginável, ou seja, o do homem que, tendo alcançado o mais alto grau de domínio racional da existência, se vê deixado sem nenhum ideal, tornando-se um mero produto de impulsos. Assim, ao término de um longo e tortuoso, mas heroico desenvolvimento, justamente no mais elevado estágio de consciência, quando a história vai deixando de ser um destino cego e se tornando cada vez mais uma criação do próprio homem, o homem perderia, com o abandono das utopias, a vontade de plasmar a história e, com ela, a capacidade de compreendê-la (Mannheim, 1968, p. 184).
Veja em: https://outraspalavras.net/movimentoserebeldias/a-miseria-de-darwin-e-a-potencia-do-desejo-coletivo/
Comente aqui