O novelo de feridas e fantasmas de 1973. A conspiração militar, passo a passo – e as digitais dos EUA. Os perigos às democracias que temem confrontar o passado. E a voz de Victor Jara, sob a barbárie: “o silêncio e o grito são as metas deste canto”
Por: Pedro Cardoso (na Revista Buala) | Créditos da foto: Eduardo Di Baia/Associated Press
Tenta-se entender que Chile é este que hoje esperneia – perna esquerda, perna direita, perna esquerda, perna direita – ante meio século de trauma e negação. 50 anos depois do assalto das tropas de Pinochet ao Palácio de la Moneda, em Santiago, a 11 de setembro de 1973, e o corte brutal do sonho socialista de Salvador Allende. Um democrata que concretizou, então, melhor que ninguém, o sonho progressista de uma nação.
Estas são cenas avulso de uma revolução, golpe, morte, de um conflito. Com fantasmas que nunca partiram. E outros monstros que ainda caminham por aí, no tumultuoso país cor de cobre.
I. Espectro
Pode um espectro sobreviver 50 anos? Pode uma consciência adormecer, covarde, tanto tempo? Um disparo no último dia 29 de agosto explodiu um “sim, pode”. Nessa terça-feira, a justiça chilena condenou sete ex-militares de Pinochet por envolvimento no sequestro, tortura e assassinato de duas figuras ícones do regime de Allende: o cantautor Victor Jara e o advogado Littré Quiroga. Isso 50 anos depois. Ambos foram assassinados entre 15 ou 16 de setembro de 1973 (as versões variam) no Estádio Chile, em Santiago.
Nesse tal 29 de agosto de há duas semanas, as autoridades chilenas bateram, então, à porta de Hernán Carlos Chacón Soto, um dos acusados. Com uma pena de 25 anos de prisão sobre os ombros, o antigo brigadeiro do Exército chileno, 86 anos, abriu. Ao perceber o que acontecia, pediu um momento para tomar um medicamento e entrou em casa. Descobriram-no, já morto. Os fantasmas do Estádio Chile romperam em pranto.
II. Viva o Chile!
“Trabalhadores da minha pátria: tenho fé no Chile e no vosso destino. Outros homens superarão este momento cinzento e amargo, onde a traição procura prevalecer. Continuai a saber que, muito mais cedo do que tarde, voltareis a abrir as grandes avenidas por onde passa o homem livre para construir uma sociedade melhor. Viva o Chile! Viva o povo! Viva os trabalhadores!”
Despedida do Presidente Salvador Allende em 11 de setembro de 1973, a partir do Palacio de la Moneda, aos microfones da Radio Magallanes. Poucos minutos depois, ante o avanço das tropas de Pinochet no recinto, suicidou-se.
III. Espectro II, o perplexo
O suicídio de Hernán Carlos Chacón Soto, o ex-militar que a Justiça demorou 50 anos em condenar é, talvez, o melhor exemplo do novelo de feridas e fantasmas em que o país se emaranha cada vez mais. O Chile está fraturado na gestão da memória e do legado de Salvador Allende e Pinochet. A oportunidade para refletir sobre a história de todos esvai-se em negação, revisionismo e ódio reacendido.
Em maio passado, uma sondagem da CERC MORI, “Chile à sombra de Pinochet – A Opinião Pública sobre a ‘Era Pinochet’ 1973 – 2023”, indicava que 36% dos chilenos, mais de 20% do que em 2013, consideram que houve uma razão para um golpe de Estado no Chile. “33 anos após a retomada da democracia e 50 anos após o golpe militar, o Chile vive um ressurgimento de Pinochet no meio da mais importante crise social, política e econômica desde o retorno à democracia”, concluiu a instituição, alertando ainda para o “baixo conhecimento da ditadura”, sobretudo entre “os mais jovens com menos de 35 anos”.
A todos os níveis, o desconcerto é absoluto. Apesar da importância da data, os partidos nunca chegaram a consenso sobre como assinalar ao certo estes 50 anos. No mês passado, o impensável aconteceu em pleno Congresso, com uma declaração parlamentar anacrônica e enviesada da direita e da ultradireita a defender que Salvador Allende violou, sim, a ordem institucional.
O presidente Gabriel Boric, de esquerda, e eleito em 2021 (também a braços com uma Constituição herdada da ditadura cuja revisão está encravada num processo constituinte sem fim à vista), já avisou que não pactuará com “revisionismos”. Prega um pouco no deserto. Nem o Plano de Busca de Desaparecidos da ditadura chilena que apresentou, o primeiro liderado pelo Estado ao fim de tantas décadas, conseguiu reuniu consenso.
“Acho que a sociedade chilena está desorientada, não temos um norte claro. Qual o projeto de país? Quais são as normas básicas que nos congregam? (…). Estamos num remoinho com correntes diversas que deixaram a cidadania perplexa”. Análise à BBC, do chileno Hugo Rojas, doutor em Sociologia pela Universidade de Oxford e professor de Direitos Humanos da Universidade Alberto Hurtado, em Santiago do Chile.
IV. A História, entonces
1970. Pela primeira vez na História, e numa época convulsa de guerras polares, um presidente marxista era eleito popularmente para liderar um país. Salvador Allende chegava à presidência do Chile. O espanto varreu o mundo. A esquerda revitalizou-se. Os Estados Unidos, paranoicos com um “tsunami comunista”, e com o fim do monopólio nas gigantes minas de cobre chilenas, tremeram.
Os anos que se seguiram trouxeram mudanças profundas. Apoiado pela população e odiado pelos oligarcas, Allende implementou uma reforma agrária, nacionalizou o cobre (o tal que estava antes nas mãos dos EUA), melhorou os direitos dos camponeses e trabalhadores. Propôs-se a tirar da miséria milhões de chilenos.
Dois anos durou este caminhar no fio da navalha da ordem mundial. Como admitiria anos mais tarde Henry Kissinger, os Estados Unidos de Nixon tudo fizeram para minar a economia chilena e derrubar o sistema. A estratégia resultou. Em pouco tempo, a superinflação asfixiou o país e o desabastecimento alimentou um crescente mercado negro. A desestabilização estava em marcha e os passos seguintes não tardaram a surtir efeito. O Democracia Cristã, maior partido da oposição desses tempos, cerrou fileiras. Grupos de ultradireita entraram em cena, financiados, treinados e dirigidos pelos artífices da infame Operação Condor com que os EUA sangraram a América Latina progressista nos anos 1970. Atentados terroristas a infraestruturas sucediam-se, imparáveis.
Em meados de 1973, a tensão política e militar estava a ponto de estalar. Ante a instabilidade e os maus resultados da economia, que afetavam diretamente as classes mais pobres que tentava proteger, em 11 de setembro de 1973, Allende preparava-se para apresentar um plebiscito para que os chilenos decidissem se permaneceria ou não no poder. Antes de poder fazê-lo, militares golpistas liderados por Augusto Pinochet (à frente do comando militar apenas há um par de semanas, depois de um golpe palaciano), bombardearam o Palácio de la Moneda, a sede do governo em Santiago do Chile, onde estava o presidente, desatando o caos. Com os soldados no seu encalço, Allende suicidou-se.
O resto já se sabe. O novo regime pôs de imediato em marcha uma brutal máquina de repressão, e um sistema de políticas econômicas neoliberais, tão selvagens como a brutalidade que se estendeu por 17 anos, até 1990, quando a ditadura acabou, finalmente. Os números demonstram a dimensão conhecida da tragédia. Segundo a Comissão da Verdade e Reconciliação do Chile, 28 mil e 429 pessoas foram vítimas de tortura durante a ditadura no país. Mais de 3 mil e 200 foram assassinadas ou desaparecidas.
Pinochet morreu em 2006, no Chile. Tentaram apanhá-lo, são bem conhecidos os esforços de Baltazar Garzón para o julgar por genocídio, crimes de lesa humanidade e terrorismo. Sete vezes lhe retiraram a imunidade judicial. 300 processos pendiam sobre sua cabeça. Apesar de tudo, nunca foi julgado.
V. Desclassificar documentos
“A deputada estadunidense Alexandria Ocasio-Cortez disse, no Chile, que é imperativo que os Estados Unidos desclassifiquem documentos que possam lançar luz sobre seu envolvimento no golpe de Estado de 1973.”
AFP, 17 de agosto de 2023
VI. Manifestações no Chile reivindicam Pinochet
“Várias centenas de pessoas manifestaram-se este sábado em frente ao palácio presidencial de La Moneda, na capital do Chile, para reivindicar a figura do ditador Augusto Pinochet, dois dias antes do 50º aniversário do golpe militar que mudou o destino da nação sul-americana.
Com faixas em espanhol e inglês onde se lia ‘50 anos depois, o Chile contra o comunismo, de novo’, e com bandeiras nacionais e muita iconografia alusiva a Pinochet em forma de pinturas, fotos, bandeiras ou bustos, os manifestantes – entre 200 e 300, segundo estimativas da imprensa – elogiaram a figura do ditador, que continua a dividir o país.
‘Eu amo o meu país, amo o Chile’, dizia uma faixa empunhada por uma mulher, com a figura de Pinochet vestida com traje militar. Uma bandeira mostrava também as caras de vários generais golpistas proeminentes.”
AFP, 9 de Setembro de 2023
VII. El conde: sátira feroz sobre Pinochet de Pablo Larraín para a Netflix e versão vampiresca e latina de Succession
No filme El Conde, “o chileno Pablo Larraín oferece uma sátira feroz sobre a longa sombra de Pinochet, que se estende como um espectro através da realidade chilena atual. O filme estreia-se na plataforma Netflix a 15 de setembro, é candidato ao Leão de Ouro do 80º Festival de Veneza.”
“O Pinochet que constrói Larraín não é um fantasma, mas um vampiro (interpretado por Jaime Vadell) que vegeta num rancho no sul do Chile depois de simular a sua morte. Transformado num velho indolente e desencantado, o ditador vive com a sua esposa, a pérfida Lucía Hiriart (Gloria Münchmeyer), e um empregado (Alfredo Castro) que o conde vampirizou depois de exercer como torturador durante o período da ditadura. Pinochet sente-se traído pelo seu país, que o considera um ladrão corrupto e ganancioso, e depois de viver 250 anos anseia encontrar a morte. No entanto, o seu desejo colide com os interesses dos seus cinco filhos, que tentam saquear a fortuna do pai, e com a misteriosa aparição de uma jovem freira contratada para exorcizar o ditador.”
“Para além do exercício da fabulação histórica, ‘El Conde’ dispara com raiva contra o legado de Pinochet, que sobrevive fortemente num Chile que, após a eclosão social de 2019, parece agora à mercê da ascensão de uma ultradireita liderada por José Antonio Kast, herdeiro do ditador. Larraín sabe bem o que significará para o público chileno contemplar a imagem icónica do vampiro Pinochet cruzando os céus da atual Santiago do Chile e passeando pelo Palácio de la Moneda. E o diretor de ‘Neruda’ também acerta ao afirmar que, além de seus crimes contra a humanidade, a cruzada de Pinochet soube transformar o país num ninho de ‘heróis da ganância’”.
Leia mais em Manu Añez, “Fotograma”
VIII. Victor Jara, sempre
Victor Jara foi fuzilado poucos dias depois do golpe militar (DR)Voltamos a Jara, mais além do seu carrasco suicida.
Victor Jara é “o trovador do governo socialista de Allende”. Campesino de família pobre, depois da morte da sua mãe, viajou para Santiago do Chile, onde ganhou fama como diretor de teatro. A música veio depois. Influenciado pelo folclore chileno, descobriu o seu mundo como compositor e intérprete.
Militante comunista e artista profundamente comprometido com o movimento social e político do Chile daqueles anos, durante o governo de Allende criou autênticos hinos que cantavam essencialmente a vida dos mais pobres. Era extremamente popular.
O golpe de 11 de Setembro de 1973 apanhou-o na Universidade Técnica do Estado (UTE), onde era professor. Ombro a ombro com 600 acadêmicos, estudantes e funcionários, resistiu aos golpistas, até que os militares bombardearam a torre da reitoria. Foram imediatamente presos.
Em 2009, o corpo de Victor Jara foi exumado de onde fora enterrado às pressas depois do fuzilamento, em 1973, e enterrado com todas as honras. O jornal El Pais condensou na reportagem “A morte lenta de Victor Jara” os últimos instantes do cantautor no Estádio Chile, em Santiago, pelos olhos do amigo de cárcere e hoje advogado, Boris Navia.
“Cansados e com as mãos apertadas na nuca, os 600 acadêmicos, estudantes e funcionários da UTE, feitos prisioneiros pelos militares golpistas, entravam no Estádio Chile, um pequeno recinto desportivo perto do palácio de La Moneda. Um oficial de óculos escuros, rosto pintado, metralhadora, granadas penduradas ao peito, pistola e faca no cinto, observava de cima de um muro os prisioneiros, que tinham permanecido na universidade para defender o governo do presidente socialista Salvador Allende. Era 12 de setembro de 1973, um dia após o golpe militar.
De repente, ao ver um prisioneiro de cabelos encaracolados, o oficial gritou, com uma voz histérica:
– Aquele filho da puta, trá-lo aqui!”
– Aquele, aquele! – gritou para um soldado, que empurrou violentamente o prisioneiro assinalado.
– Não o trate como uma mulher, caramba! – berrou, insatisfeito. Ao ouvir a ordem, o soldado deu uma coronhada no prisioneiro, que caiu a seus pés.
–Então tu és o Victor Jara, o cantor marxista, filho da puta de comunista, cantor de merda pura! – gritou o oficial.
“O polícia batia e batia [em Jara]. Uma e outra vez. No corpo, na cabeça, dava pontapés furiosos. Quase lhe explodiu um olho. Nunca vou esquecer o som daquela bota nas costelas. O Victor sorria. Sempre sorria, tinha um rosto sorridente e isso decompunha ainda mais os soldados. De repente, um deles tirou uma pistola. Pensei que o ia matar. Continuou a bater-lhe com o cano da arma. Partiu-lhe a cabeça, o rosto do Victor estava coberto de sangue que descia pela testa.”
“Os presos ficaram atordoados ao olhar para a cena. Quando o oficial, conhecido como ‘El Príncipe’ (…) se cansou de bater, ordenou aos soldados que colocassem Jara num corredor e o matassem se ele se mexesse.”
“[Jara] está caído no chão. Um estudante peruano que é confundido com um cubano tem a orelha cortada com uma faca. A um professor de estudos sociais que trazia testes corrigidos dos seus alunos pedem-lhe as duas melhores notas. Entrega-as e obrigam-no a comer as folhas. Ameaçam cortá-los com ‘serras de Hitler’, metralhadoras de grande calibre cujas balas cortam corpos. Um trabalhador grita: ‘Viva Allende!’ e atira-se das bancadas, sangrando até à morte. O complexo tem capacidade para 2 mil pessoas, mas está superlotado com mais de 5 mil prisioneiros.”
“El Príncipe tem visitas de funcionários e quer expor Jara. Um oficial da Força Aérea tira um cigarro e pergunta a Jara se fuma. Ele nega com a cabeça. ‘Agora vais fumar’, avisa, atirando-lhe o cigarro. ‘Toma!’, grita. Jara estende o braço, a tremer, e pega no cigarro. ‘Vamos ver se vais tocar guitarra agora, seu comunista de merda!’, grita o oficial, pisando as mãos de Jara.
Quando chegaram mais prisioneiros e os soldados foram buscá-los, Victor ficou sem custódia. Entre vários, arrastámo-lo para onde estávamos e começámos a limpar-lhe as feridas. Estava sem comida ou água há quase dois dias. Um detido recebeu de um soldado um ovo cru. Deram-lho. Com um fósforo, ele fura o ovo nas duas extremidades e bebe-o. Disse-nos que foi assim que aprendeu a comer ovos na sua terra”.
“De repente, dois soldados agarram-no e arrastam-no (…) Começa uma surra mais brutal que as anteriores. Outros prisioneiros ainda verão Jara vivo algumas horas depois. Um polícia, José Paredes, confessou, 36 anos depois, que jogaram roleta russa para ver quem lhe disparava.”
“Ao anoitecer de sábado, 15 de setembro, os prisioneiros são transferidos do Estádio do Chile para o maior local desportivo do país, o Estádio Nacional. ‘Quando saímos, vimos um espetáculo dantesco. Havia entre 30 e 40 cadáveres empilhados (…) Todos estavam crivados de balas e tinham uma aparência fantasmagórica, cobertos com pó branco, porque nas proximidades havia sacos de cal para fazer reparações. O pó cobria-lhes os rostos e secava o sangue. Reconheci o Victor, em primeiro lugar, e depois o advogado e diretor dos presídios, Littré Quiroga”.
“Naquela noite, soldados despejam seis desses corpos, Jara entre eles, ao lado do Cemitério Metropolitano, no acesso sul de Santiago. Um vizinho reconhece o cantor e compositor e pede para o irem buscar. Quando o corpo chega à morgue, um funcionário deste serviço, que era comunista, também reconhece Jara e avisa a sua esposa, Joan, para sepultá-lo antes que fosse enterrado numa vala comum.
O corpo do cantor e compositor estava ao lado do de centenas de vítimas na morgue, no final de uma fila de jovens. Apenas três pessoas acompanham Joan no funeral semiclandestino que se realizou no Cemitério Geral de Santiago, onde foi sepultado num nicho humilde, aos 41 anos.”
“A primeira autópsia, em 1973, revelou 44 tiros. A nova, em 2009, confirma que morreu de múltiplos impactos.”
IX. O último poema
Instantes antes de ser arrastado pelos soldados e de ser fuzilado, Jara escreveu os últimos versos num caderno arranjado clandestinamente. Quando foi levado pelos militares, atirou o caderno para Boris Navia, que o conseguiu passar para fora da prisão.
As folhas mergulharam na clandestinidade, saindo à luz um ano depois em duas versões. Ao longo dos anos, foi musicado por múltiplos artistas, como Isabel Parra em “Somos cinco mil”, e inspirou artistas plásticos e de cinema. Tornou-se símbolo de resistência à ditadura, tal qual como todas as canções de Jara. Há dias, uma versão de Inteligência Artificial calculou como Jara a teria composto e cantado, o clip circula pelas redes.
A horas de ser brutalmente assassinado, o poema originalmente conhecido por “Estádio Chile”, o lugar onde o executaram e que leva agora o seu nome, “Estádio Victor Jara”.
Estádio Chile
Somos cinco mil
Somos cinco mil aqui.
Nesta pequena parte da cidade.
Somos cinco mil.
Quantos somos em total
Nas cidades e em todo o país?
Somos aqui dez mil mãos
Que semeiam e fazem andar as fábricas
Quanta humanidade
Com fome, frio, pânico, dor,
Pressão moral, terror e loucura!
Seis dos nossos perderam-se
No espaço das estrelas.
Um morto, outro espancado como jamais pensei
Que se poderia agredir um ser humano.
Os outros quatro quiseram tirar-se todos os temores,
Um saltando ao vazio,
Outro batendo com a cabeça contra o muro,
Mas todos com o olhar fixo da morte.
Que terror causa o rosto do fascismo!
Levam a cabo os seus planos com precisão astuta
Sem importar-lhes nada.
O sangue para eles são medalhas.
A matança é um ato de heroísmo.
É este mundo que criaste, meu Deus?
Para isto os teus sete dias de assombro e trabalho?
Nestas quatro muralhas só existe
Um número que não avança.
Que lentamente quererá a morte.
Mas de repente me bate a consciência
E vejo esta maré sem latido
E vejo o pulso das máquinas
E os militares mostrando o seu rosto de matrona
Cheio de doçura.
E o México, Cuba, e o mundo?
Que gritem esta ignomínia!
Somos dez mil mãos que não produzem
Quantos somos em toda a pátria?
O sangue do Companheiro Presidente
Golpeia mais forte que bombas e metralhas.
Assim golpeará o nosso punho novamente.
Canto, que mal me sais
Quando tenho que cantar terror.
Terror como o que vivo, como o que morro, terror.
De ver-me entre tantos e tantos momentos do infinito
Em que o silêncio e o grito são as metas deste canto.
O que nunca vi, o que senti e o que sinto
Fará brotar o momento…
Da vitória de Salvador Allende ao golpe: uma cronologia
(Publicado em La Diaria | Tradução: Rôney Rodrigues)
1970
4 de setembro – Salvador Allende é eleito presidente
Allende, como candidato da Unidade Popular (UP), obteve 36% dos votos contra uma direita dividida: 35,8% para o Partido Nacional (PN) e 27,9% para a Democracia Cristã (DC). A UP foi formada em outubro de 1969 para as eleições e era composta por partidos e movimentos, desde comunistas até socialistas cristãos.
15 de setembro – Nixon ordena intervenção
O presidente dos EUA, Richard Nixon, ordena à CIA que impeça a posse do novo presidente do Chile.
» Richard Nixon: “Se há uma maneira de destituir Allende, é melhor fazê-lo.”
» Entre 5 e 20 de outubro, a CIA contactou comandantes militares e agentes policiais no Chile em 21 ocasiões.
22 de outubro – Tentativa de golpe fracassada
O comandante-em-chefe do Exército, René Schneider, é assassinado quando dois generais (apoiados pela CIA) tentaram sequestrá-lo com o objetivo de provocar a intervenção das Forças Armadas para impedir a posse de Allende.
» O conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, Henry Kissinger, atribuiu o golpe fracassado à “incompetência dos militares chilenos”.
24 de outubro – Congresso ratifica a eleição
Após negociações entre a UP e a DC sobre as garantias democráticas, a assunção de Allende foi acordada.
4 de novembro – Allende sucede Eduardo Frei (DC) como presidente
A UP define avançar em direção ao socialismo respeitando as instituições vigentes.
» Após a posse de Allende, a Comissão 40 do Senado dos Estados Unidos aprovou um total de mais de sete milhões de dólares em apoio secreto a grupos de oposição no Chile.
» Chile estabelece relações diplomáticas com Cuba.
Dezembro – Primeiras medidas
A reforma agrária de Frei continua. Nacionalização de empresas estrangeiras (com compensação) e controle estatal de grandes setores da economia. Anistia para militantes detidos do Movimento de Esquerda Revolucionária.
1971
Euforia do primeiro ano
» Bloqueio de preços, controle de inflação, crédito a pequenas e médias empresas.
» PIB aumenta (8,3%), o desemprego cai.
» Mobilizações populares em todo o país (movimento de expropriação iniciado por camponeses que antecipam a reforma agrária, ocupação de fábricas têxteis no sul, entre outras ações).
Março – UP tem vitoria retumbante nas eleições municipais
A coligação de Allende obtém quase 50% dos votos nas eleições municipais nacionais.
8 de junho – Assassinato do ex-vice-presidente democrata-cristão
Edmundo Pérez Zujovic é assassinado por um grupo de extrema esquerda, a Vanguarda Organizada do Povo. Os perpetradores foram responsáveis pela morte de 11 moradores durante um despejo realizado pelos Carabineros. A DC exige que o governo desarme grupos extremistas.
11 de junho – Legislação sobre nacionalização das minas de cobre
Os proprietários de minas estadunidenses serão indenizados.
11 de julho – Nacionalização das minas de cobre
Estabelecimento do monopólio estatal sobre a sua comercialização, completando o processo de aquisição iniciado por Frei.
Agosto – Estados Unidos cortam linhas de crédito
O governo reverte a decisão e anuncia que as empresas estadunidenses de exploração de cobre não serão compensadas pelos “lucros excessivos” que até então eram garantidos.
» Os Estados Unidos adotam medidas para sufocar a economia chilena.
Entre 10 de novembro e 4 de dezembro – Visita oficial de Fidel Castro
Fortemente criticado pelos partidos de direita.
1 e 2 de dezembro – Primeiro “panelaço”
Mulheres dos bairros mais privilegiados (incentivadas pelo movimento de extrema direita Patria y Libertad) protestam contra a escassez de alimentos e a presença de Fidel Castro no país. A manifestação é duramente reprimida. Após incidentes violentos entre grupos de direita e de esquerda, é declarado estado de emergência em Santiago.
9 de dezembro
» Suspensão da conversibilidade da moeda.
» A dívida externa ultrapassa os 3 bilhões de dólares.
1972
21 de março – ITT é denunciada
O jornalista estadunidense J. Anderson revela que a multinacional International Telephone & Telegraph (ITT) e a CIA conspiram contra o governo da Unidade Popular.
» Pouco depois do golpe de Estado, a ITT recebeu 125 milhões de dólares de Pinochet como compensação, bem como 30 milhões de dólares da administração Nixon.
4 de abril – Fundação do JAP
Os Conselhos de Abastecimento e Controle de Preços (JAP) eram comitês de controle popular de preços e distribuição de alimentos, implementados para evitar a especulação e o açambarcamento de produtos de setores contrários ao governo.
11 de abril – A direita reúne 200 mil pessoas em Santiago
É uma manifestação organizada pelas milícias Patria y Libertad.
18 de abril – A UP mobiliza 400 mil pessoas
A esquerda está dividida: a linha reformista e legalista é combatida por uma linha rebelde, liderada pelo MIR e por grupos mais à esquerda. No Partido Socialista, a linha de Allende prevaleceu sobre a linha mais radical de Carlos Altamirano, secretário-geral do partido.
Junho – UP e DC não chegam a acordo
A UP inicia negociações com os Democratas-Cristãos sobre o âmbito da economia privada, mista e nacionalizada. No dia 29 o DC rompe as negociações.
10 de outubro – A direita declara o governo “ilegal”
Durante uma manifestação de quase 300 mil pessoas, os líderes da direita apelaram à “luta sem poupar meios” contra o governo.
11 de outubro – Greve dos caminhoneiros
Com o apoio dos democratas-cristãos, a corporação dos caminhoneiros (Confederação Nacional dos Transportes) convocou uma greve ilimitada, com o objetivo de desorganizar a produção e a distribuição. Comerciantes, médicos, arquitetos, advogados, bancários e proprietários de transporte público e outras associações profissionais da classe média seguiram os caminhoneiros.
Por sua vez, comandos do Patria y Libertad patrulhavam as ruas e atacavam comerciantes e motoristas de caminhões ou ônibus que não apoiavam a greve. A ofensiva da direita e dos proprietários provocou reação dos trabalhadores. Os trabalhadores assumiram o controle das fábricas e retomaram a produção. Em muitos bairros populares, os trabalhadores eram diretamente responsáveis pela circulação e distribuição dos alimentos. Para os blocos habitacionais foram eleitos representantes encarregados de organizar a distribuição de alimentos. Surgiram cartões de racionamento e as chamadas “cestas populares de mercadorias”.
2 de novembro – Allende convoca as Forças Armadas
Incapaz de conter a greve, Allende apela às Forças Armadas para que se juntem ao Gabinete de Paz Social. Carlos Prats, militar constitucionalista e legalista, como comandante-em-chefe do Exército, é nomeado Ministro do Interior; o contra-Almirante Ismael Huerta, de Obras Públicas; e o Brigadeiro-General Claudio Sepúlveda, de Minas.
6 de novembro – Fim da greve dos transportes
1973
4 de março – A direita vence
A Confederação da Democracia, coligação de oposição liderada pelo PN e pelo DC, vence as eleições (54,18%), elege 87 dos 150 deputados, mas não consegue obter a maioria de dois terços que lhe permitiria destituir o presidente.
28 de março – Os militares deixam o governo
19 de abril – Greve dos mineiros apoiada pela direita
Começa uma greve por tempo indeterminado na mina de cobre nacionalizada de El Teniente. 1.300 trabalhadores participam da greve, que dura 74 dias, exigindo reajustes salariais. O governo salienta que o interesse nacional está acima dos interesses dos privilegiados mineiros de cobre e ordena a intervenção da Polícia. Sérios confrontos eclodem.
1º de maio – Allende fala de uma “escalada sediciosa”
O presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Luis Figueroa, afirma que os trabalhadores enfrentarão as tentativas da reação de levar o Chile a uma guerra civil. O governo declara estado de emergência na província de Santiago devido ao conflito com os mineiros de El Teniente.
14 de maio – Armas nas instalações de Patria y Libertad
Numa rusga às instalações do Patria y Libertad, foram apreendidas grandes quantidades de armas e vários dos seus membros foram detidos. Dias antes, a partir de Buenos Aires, o seu líder apelou a uma guerra civil para “libertar o Chile de uma ditadura marxista”. No dia 7 de maio sequestraram e torturaram três comunistas.
21 de maio – Allende propõe uma nova Constituição
Perante o plenário do Congresso intitulado “Pela democracia e a revolução, contra a guerra civil”, além de denunciar a sabotagem sistemática da extrema direita, Allende aponta a necessidade de uma nova Constituição Política.
7 de junho – DC pede renúncia do ministro
Os democratas-cristãos acusam o ministro da Economia, Orlando Millas, de ser o responsável pela escassez de alimentos e pedem a sua demissão.
27 de junho – Tentativa de assassinato do General Carlos Prats
Proclamação do estado de emergência devido ao clima e à violência no país.
29 de junho – Tentativa de golpe
Levante do regimento blindado nº 2 em Santiago, denominado “Tanquetazo”. Uma coluna de tanques ataca o palácio presidencial de La Moneda, mas é reprimida pelo General Prats e pelas forças armadas leais. Allende pede aos trabalhadores que se defendam “com o que têm”.
» A CUT pede ocupação de fábricas. As lutas duram três horas. Allende pede poderes extraordinários ao Parlamento, que são negados.
19 de julho – Diálogo frustrado
Num estado de grande tensão e num claro clima de rebelião, escassez e elevado custo de vida, o governo propõe ao DC a retoma do diálogo político para encontrar uma solução dentro dos canais constitucionais. Renán Fuentealba, presidente do DC, estabelece condições com alto custo.
27 de julho – Assassinato do ajudante de ordens de Allende
O capitão Arturo Araya é morto em um ataque de Patria y Libertad. Um dia antes do início de uma nova greve dos caminhoneiros, que duraria duraria até 11 de setembro. Entre 1971 e 1973, a inflação disparou de 22% para 600%.
9 de agosto – Novo Gabinete de Segurança Nacional
Os três comandantes das Forças Armadas e o diretor-geral dos Carabineros passam a integrar o novo gabinete governamental. O general Augusto Pinochet, o vice-almirante José Toribio Merino, o general da Aeronáutica Gustavo Leigh e o general dos Carabineros Jorge Urrutia assumem como substitutos em posições militares. Prats assume o cargo de ministro da Defesa.
13 de agosto – Ataques sediciosos
O grupo paramilitar Patria y Libertad destrói linhas de alta tensão e reservas de água potável. Ao longo do mês eles assassinam quadros da UP e militantes de esquerda e atacam a a sede da UP.
Entre 18 e 27 de agosto
Os generais renunciam ao governo. Multiplicação de ataques de extrema direita, invasões militares a fábricas, sedes de partidos, sindicatos, em busca de armas, em conformidade com uma lei aprovada pelo Parlamento. Marinheiros que alertaram sobre os preparativos para o golpe foram presos e torturados.
22 de agosto – Questões legislativas
O Parlamento vota uma moção de censura contra o governo por sua gestão das greves dos caminhoneiros.
23 de agosto – Prats renuncia e é substituído por Agusto Pinochet
Prats renuncia ao comando em chefe e ao cargo de ministro da Defesa. Destituição do general Prats do cargo de ministro do Interior e comandante-em-chefe das Forças Armadas, que era considerado a principal referência dos “constitucionalistas” no campo militar.
» Prats recomenda que Allende nomeie Pinochet para sucedê-lo no cargo, visto que ele tinha um longo histórico de serviço como soldado profissional e era considerado apolítico.
7 de setembro – Definida a data do golpe
O comandante-em-chefe da Primeira Zona Naval, José Toribio Merino, e o general do Exército Sergio Arellano, que até então liderava a arquitetura do golpe do Exército, resolveram que os fatos aconteceriam no dia 11 de setembro às 6h da manhã em Valparaíso e às 8h em Santiago.
» O presidente Richard Nixon é informado das ações de terça-feira, 11, apoiando explicitamente a ação militar.
8 de setembro – Pinochet decide apoiar
O general Arellano solicitou apoio ao golpe de Estado do general Pinochet, mas ele não deu uma resposta definitiva. No dia seguinte, Salvador Allende informou ao comandante-em-chefe e demais generais do Exército que havia decidido convocar um plebiscito, a fim de dar uma solução à grave crise política. Nesse mesmo dia os golpistas contaram com o apoio de Pinochet.
» No dia 9, no refeitório do comandante-em-chefe do Exército, no quinto andar do Ministério da Defesa, Augusto Pinochet é nomeado chefe dos golpistas do Exército.
10 de setembro – Allende convoca um referendo
11 de setembro – Golpe de Estado militar
Nas primeiras horas do dia, a Marinha assumiu o controle da cidade de Valparaíso, onde foram realizados os preparativos para o golpe no dia anterior.
8h20 Salvador Allende fala ao país com a esperança de que o levante se limite à Marinha e a Valparaíso.
8h40 A primeira proclamação do golpe é transmitida do quinto andar do Ministério da Defesa.
9h30. Os golpistas ofereceram um avião para Salvador Allende e sua família deixarem o país, mas receberam a seguinte resposta: o presidente não desiste! Começa o ataque terrestre ao Palácio La Moneda (sede da Presidência).
10h. Através da rede de rádio, os golpistas lançam o ultimato: “Se não houver rendição, La Moneda será bombardeado às 11 da manhã”.
10h30. Salvador Allende transmite sua última mensagem pela rádio Magalhães.
11h. Tropas militares atacam frontalmente o Palácio La Moneda.
11h52 Começa o bombardeio aéreo da sede do governo, provocando um incêndio e acompanhado de ataques de balas e bombas de gás lacrimogêneo. Em 16 minutos, os aviões lançaram 18 bombas sobre o prédio.
12h10 A infantaria ataca o palácio presidencial com artilharia e armas pesadas.
13h30. O presidente Salvador Allende aceita a rendição. Todos tiveram que sair sem armas, caminhando e com bandeira branca.
13h40 Depois de exclamar “Allende não desiste, merda!”, o presidente suicida-se com a metralhadora presenteada por Fidel Castro.
14h00 As tropas de ocupação entram no palácio.
22:00. A televisão transmite as primeiras imagens da recém-assumida Junta Militar. Diante das câmeras, Augusto Pinochet toma posse como presidente. Lê-se o Decreto-Lei 1, com o qual é implementado o estado de sítio.
23h30. A Universidade Técnica Estadual permanece cercada por soldados desde a tarde. Centenas de estudantes estão com professores e funcionários num único recinto; são suspeitos de resistirem ao novo regime e, sem o saberem, em estado de prisão coletiva.
Quatro dias depois, morrerá o funcionário mais famoso da universidade e uma das primeiras vítimas da repressão militar: Víctor Jara.
12 de setembro – Inauguração do Estádio Nacional de Santiago como centro de detenção em massa
Cerca de 7 mil pessoas estão detidas e muitas serão torturadas e mortas.
13 de setembro – A Constituição é suspensa
Os partidos políticos são declarados ilegais e os seus bens confiscados, os sindicatos suprimidos e os registos eleitorais destruídos.
» Nas semanas após o golpe, foram abertos centros de detenção locais em todo o país (Vila Grimaldi e Colonia Dignidad).
» A repressão foi sistemática contra líderes, membros e apoiadores e partidos e sindicatos de esquerda que participaram ou apoiaram o governo de Unidade Popular.
» A UP não está preparada para enfrentar o golpe, apenas alguns cordões (bairros populares) lutam até o fim.
» A oposição ao novo regime é esmagada.
Outubro
O general Sergio Arrelano percorre os acampamentos militares e impõe uma série de execuções sumárias, no que ficou conhecido como a “caravana da morte”.
Veja em: https://outraspalavras.net/historia-e-memoria/allende-eo-mosaico-chileno-50-anos-depois/
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