Clipping

A ideia do comunismo para Marx

Apesar de sua famosa recusa em escrever “receitas para o cardápio da taberna do futuro”, Karl Marx deixou diversas reflexões sobre o aspecto de uma possível sociedade futura de indivíduos livremente associados – para além da exploração e da alienação capitalistas.

Por: Marcello Musto | Tradução: Fábio Fernandes | Imagem: Gerada utilizando IA generativa Stable Diffusion. Marx divisando um outro futuro

Adaptado a partir da publicação original como capítulo no livro O renascimento de Marx: principais conceitos e novas interpretações (org. por Marcello Musto, Autonomia Literária, 2023).


As teorias dos primeiros socialistas

Na esteira da Revolução Francesa e com a expansão da Revolução Industrial, inúmeras teorias começaram a circular na Europa que buscavam tanto responder às demandas de justiça não atendidas pela primeira quanto corrigir os drásticos desequilíbrios econômicos causados pela disseminação da segunda. As conquistas democráticas após a captura da Bastilha desferiram um golpe decisivo na aristocracia, mas deixaram quase inalterada a desigualdade de riqueza preexistente entre as classes populares e as dominantes. O declínio da monarquia e o estabelecimento da república não foram suficientes para reduzir a pobreza na França.

Este foi o contexto em que as teorias “crítico-utópicas” do socialismo, [1] como Karl Marx e Friedrich Engels (1820-1895) as definiram no Manifesto do Partido Comunista (1848), ganharam destaque. Eles as consideravam “utópicas” por duas razões: primeiramente, porque seus proponentes se opunham, com diferentes nuances, à ordem social existente e forneciam o que acreditavam ser “os elementos de maior valor para o esclarecimento dos trabalhadores” [2]. Em segundo lugar, [3] porque porque seus proponentes assumiram que poderiam criar uma forma alternativa da organização social, recorrendo à mera identificação teórica de novas ideias e princípios, e não à luta concreta da classe trabalhadora. De acordo com Marx e Engels, seus predecessores

substituem a atividade social por sua própria imaginação pessoal; as condições históricas da emancipação por condições fantásticas; a organização gradual e espontânea do proletariado em classe por uma organização da sociedade pré-fabricada por eles. A história futura do mundo se resume, para eles, na propaganda e na execução prática de seus planos de organização social. [4]

No texto político mais lido da história da humanidade, Marx e Engels também discordaram de muitas outras formas de socialismo, tanto do passado quanto do presente, agrupando-as sob os títulos de “feudal”, “pequeno-burguesa”, “burguesa”, ou – depreciando sua “fraseologia filosófica” – o socialismo “alemão”. [5] Grande parte dos autores dessas teorias podiam ser relacionados em torno de duas peculiaridades em comum. A primeira era a aspiração por “restabelecer os antigos meios de produção e de troca e, com eles, as antigas relações de propriedade e toda a antiga sociedade”. A segunda era uma tentativa, implementada por outros, de “fazer entrar à força os meios modernos de produção e de troca dentro da estrutura das antigas relações de propriedade” das quais haviam se “libertado”. Por essas razões, Marx viu nessas concepções uma forma de socialismo que era ao mesmo tempo “reacionário e utópico”. [6]

O rótulo “utópico” atribuído aos primeiros socialistas, em oposição ao socialismo “científico”, tem sido muitas vezes usado de forma enganosa e intencionalmente depreciativa. Na verdade, os “socialistas utópicos” contestaram a organização social da época em que viveram, contribuindo através de seus escritos e ações para a crítica de relações econômicas existentes. [7] Marx tinha um respeito considerável por seus precursores: [8] ele enfatizou a enorme lacuna que separa Saint-Simon (1760-1825) de seu intérpretes mais literais; [9] e, embora considerasse algumas das ideias de Charles Fourier (1771-1858) como “esboços humorísticos” extravagantes, [10] ele via “grande mérito” na percepção de que o objetivo transformador do trabalho era superar não apenas o modo de distribuição existente, mas também o “modo de produção”. [11] Nas teorias de Robert Owen (1771-1858), ele viu muitos elementos que eram dignos de interesse e antecipavam o futuro. Em Salário, Preço e Lucro (1865), Marx notou que, já no início do século XIX, em Observations on the Effect of the Manufacturing System [Observações sobre o Efeito do Sistema de Manufatura] (1815), Owen havia “proclamado uma limitação geral da jornada de trabalho como primeiro passo para a emancipação da classe trabalhadora”. [12] Ele também argumentou, como ninguém mais, a favor da produção cooperativa.

No entanto, embora reconhecendo a influência positiva de Saint-Simon, Fourier e Owen sobre o nascente movimento operário, a avaliação geral de Marx das ideias deles foi negativa. Ele achava que eles esperavam resolver os problemas sociais da época com fantasias irrealizáveis, e os criticou fortemente por gastarem muito do seu tempo com o exercício teórico irrelevante de construção de “castelos no ar”. [13]

Marx  não se opunha apenas a propostas que considerava erradas ou impraticáveis. Acima de tudo, ele se opunha à ideia de que a mudança social poderia acontecer por intermédio de modelos meta-históricos a priori inspirados por preceitos dogmáticos. O moralismo dos primeiros socialistas também foi objeto de crítica. [14] Em seu “Conspecto sobre Estatismo e Anarquia de Bakunin” (1874-1875), Marx criticou o “socialismo utópico” por procurar “impor novas ilusões sobre as pessoas em vez de limitar suas investigações científicas ao movimento social criado pelo próprio povo” [15]. Em sua visão, as condições para a revolução não podiam ser importadas de fora.

Os erros dos precursores

Após 1789, muitos teóricos concorriam entre si para delinear uma nova e mais justa ordem social, não considerando exaustivas as mudanças políticas fundamentais que se seguiram ao final do Antigo Regime. Uma das teses mais comuns partia do pressuposto de que todos os males da sociedade cessariam assim que um sistema de governo baseado na igualdade absoluta entre todos os seus componentes fosse estabelecido.

Essa ideia de um comunismo primordial e, em muitos aspectos, ditatorial, foi o princípio orientador da Conspiração dos Iguais que aconteceu em 1796 para subverter o Diretório Francês no poder. No Manifesto dos Iguais (1795), Sylvain Maréchal (1750-1803) argumentou que “uma vez que todos têm as mesmas faculdades e os mesmos desejos”, deve haver “a mesma educação [e] o mesmo alimento” para todos. “Por que”, ele perguntou, “a porção igual e a mesma qualidade de comida não deveriam ser suficientes para cada um de acordo aos seus desejos?” [16] A figura principal da conspiração de 1796, François-Noël Babeuf (1760-1797), sustentava que a aplicação do “grande princípio da igualdade” ampliaria muito o “círculo da humanidade” de forma que “fronteiras, barreiras alfandegárias e governos malignos desapareceriam gradualmente”. [17]

O tema da construção de uma sociedade baseada na estrita igualdade econômica ressurgiu nos escritos comunistas franceses no período após a revolução de julho de 1830. Em Travels in Icaria [Viagens em Icaria] (1840), manifesto político escrito na forma de romance, Étienne Cabet (1788-1856) descreveu uma comunidade-modelo na qual não mais existiria ‘propriedade, dinheiro ou compra e venda’, e os seres humanos seriam “iguais em tudo”. [18] Nesta “segunda terra prometida”, [19] a lei regularia quase todos os aspectos da vida: “toda casa [teria] quatro andares” [20] e “todo mundo [estaria] vestido da mesma forma”. [21]

Relações de estrita igualdade também são prefiguradas na obra de Théodore Dézamy (1808- 1850). No Community Code [Código Comunitário] (1842), ele falou de um mundo “dividido em comunas, tão iguais, regulares e unidas quanto possível”, nas quais haveria “uma única cozinha” e “um dormitório comum” para todas as crianças. Todos os cidadãos viveriam como “uma família em um único lar”. [22]

Opiniões semelhantes às que circulam na França também se enraizaram na Alemanha. Em Humanity as It Is and as It Should Be [A humanidade como é e como deveria ser] (1838), Wilhelm Weitling (1808–1871) previu que a eliminação da propriedade privada colocaria automaticamente um fim ao egoísmo, que ele considerava de modo simplista como a principal causa de todas os problemas. Aos seus olhos, “a comunidade de bens” seria “o meio para a redenção da humanidade, transformando a terra em paraíso” e imediatamente trazendo uma “’enorme abundância”. [23]

Todos os pensadores que projetaram tais visões caíram no mesmo erro duplo: tomaram como certo que a adoção de um novo modelo social baseado na igualdade estrita poderia ser a solução para todos os problemas da sociedade; e se convenceram, desafiando todas as leis econômicas, que tudo o que era necessário para alcançar isso seria a imposição de certas medidas vindas do alto, cujos efeitos não seriam posteriormente alterados pelo curso da economia.

Juntamente com essa ideologia igualitária ingênua, baseada na garantia de que todas as disparidades sociais entre os seres humanos poderiam ser eliminadas com facilidade, havia outra convicção igualmente difundida entre os primeiros socialistas: muitos acreditavam que bastava desenvolver teoricamente um melhor sistema de organização social para mudar o mundo. Numerosos projetos de reforma foram, portanto, elaborados minuciosamente, definindo as teses de seus autores para a reestruturação da sociedade. A prioridade, aos seus olhos, era encontrar a formulação correta, que, uma vez descoberta, os cidadãos aceitariam de bom grado como uma questão de bom senso e gradualmente implementariam na realidade.

Saint-Simon foi um dos que se apegaram a essa convicção. Em 1819, ele escreveu no periódico L’Organisateur [O Organizador]: “O velho sistema deixará de funcionar quando as ideias sobre como substituir as instituições existentes por outras… forem suficientemente clarificadas, agrupadas e harmonizadas, e quando forem aprovadas pela opinião pública.” [24] No entanto, as visões de Saint-Simon sobre a sociedade do futuro são surpreendentes e desconcertantes em sua imprecisão. No inacabado Le Nouveau Christianisme [O Novo Cristianismo] (1824), ele afirmou que a “doença política da época” – que causou “sofrimento a todos os trabalhadores úteis à sociedade” e permitiu que “os soberanos absorvessem grande parte do salário dos pobres” – dependia do “sentimento de egoísmo”. Como isso havia se tornado “dominante em todas as classes e em todos os indivíduos”, [25] ele aspirava ao nascimento de uma nova organização social baseada em um único princípio: “todos os homens devem comportar-se uns com os outros como irmãos”. [26]

Fourier declarou que a existência humana era baseada em leis universais, que, uma vez acionadas, garantiriam alegria e deleite por toda a terra. Em sua Théorie des quatre mouvements [Teoria dos Quatro Movimentos] (1808), ele estabeleceu o que, sem hesitar, chamou de a “descoberta mais importante [entre] todo o trabalho científico feito desde o início da raça humana”. [27] Fourier se opunha aos defensores do “sistema comercial” e sustentava que a sociedade estaria livre apenas quando todos os seus componentes voltassem a expressar suas paixões. [28] O principal erro do regime político de sua época era a repressão da natureza humana. [29]

Ao lado do igualitarismo radical e da busca do melhor modelo social possível, um elemento final comum a muitos dos primeiros socialistas era sua dedicação para promover o nascimento de pequenas comunidades alternativas. Para aqueles que as organizavam, a libertação dessas comunas das desigualdades econômicas existentes na época forneceria um impulso decisivo para a difusão dos princípios socialistas e tornaria mais fácil argumentar a favor deles.

Em Le nouveau monde industriel et sociétaire [O novo mundo industrial e societário] (1829), Fourier previu uma nova estrutura comunitária na qual as aldeias seriam “substituídas por falanges industriais de aproximadamente 1800 pessoas cada”. [30] Os indivíduos viveriam em falanstérios, ou seja, em grandes edifícios com áreas comuns onde pudessem desfrutar de todos os serviços de que necessitavam. De acordo com o método inventado por Fourier, os seres humanos iriam “passear de prazer em prazer e evitar excessos”; teriam breves períodos de emprego, “duas horas no máximo”, para que cada um pudesse exercer de “sete a oito tipos atraentes de trabalho ao longo do dia”. [31]

A identificação de melhores formas de organizar a sociedade também estimulou Owen, que, ao longo de sua vida, fundou importantes experimentos de cooperação dos trabalhadores. Primeiro em New Lanark, Escócia, de 1800 a 1825, depois em New Harmony nos Estados Unidos de 1826 a 1828, ele tentou demonstrar na prática como realizar uma ordem social mais justa. Em The Book of the New Moral World [O Livro do Novo Mundo Moral] (1836-1844), no entanto, Owen propôs a divisão da sociedade em oito classes, a última das quais “será composta por aqueles de 40 a 60 anos completos”, que teriam a “decisão final”. O que ele vislumbrava, de modo um tanto ingênuo, era que nesse sistema gerontocrático todos os indivíduos iriam compartilhar, “sem contestação, sua parte justa e plena do governo da sociedade”, já que todos, por sua vez e no devido tempo, poderiam tê-lo exercido. [32]

Em 1849, Cabet também fundou uma colônia nos Estados Unidos, em Nauvoo, Illinois, mas seu autoritarismo deu origem a inúmeros conflitos internos. Nas leis da “Constituição Icariana”, ele propôs como condição para o nascimento da comunidade que, “para aumentar todas as perspectivas de sucesso”, ele deveria ser nomeado “Diretor único e absoluto por um período de dez anos, com o poder de dirigi-la com base em sua doutrina e ideias”. [33]

Os experimentos dos primeiros socialistas – sejam os falanstérios amorosamente planejados, as cooperativas esporádicas ou as excêntricas colônias comunistas – provaram ser tão inadequados que sua implementação numa escala mais ampla não poderia ser seriamente contemplada. Eles envolviam um número irrisório de trabalhadores e frequentemente uma participação muito limitada do coletivo nas decisões de determinadas políticas. Além disso, muitos dos revolucionários (em particular os não ingleses) que dedicaram seus esforços para construir essas comunidades não entendiam as mudanças fundamentais na produção que aconteciam em sua época. Muitos dos primeiros socialistas não conseguiam ver a ligação entre o desenvolvimento do capitalismo e o potencial de progresso social para a classe trabalhadora. Tal progresso dependia da capacidade dos trabalhadores de se apropriarem da riqueza que gerassem no novo modo de produção. [34]

Onde e por quê Marx escreveu sobre o comunismo

Marx se propôs uma tarefa completamente diferente daquela dos socialistas anteriores; sua prioridade absoluta era “desvelar a lei econômica do movimento da sociedade moderna”. [35] Seu objetivo era desenvolver uma crítica abrangente do modo de produção capitalista, que serviria ao proletariado, ao principal sujeito revolucionário, na derrubada do sistema socioeconômico existente.

Além disso, evitando a ideia de ser o inspirador de uma nova religião, Marx se absteve de promover uma ideia que ele considerava teoricamente inútil e politicamente contraproducente: um modelo universal de sociedade comunista. Por isso, no “Posfácio à Segunda Edição” (1873) no volume I de O Capital (1867), ele deixou claro que não tinha interesse em “prescrever receitas (comtianas?) para o cardápio da taberna do futuro”. [36] Ele também esboçou o que queria dizer com essa famosa afirmação nas “Glosas Marginais ao Tratado de Economia Política de Adolph Wagner” (1879-1880), onde, em resposta às críticas do economista alemão Adolph Wagner (1835- 1917), afirmava categoricamente que ele “nunca havia estabelecido um “sistema socialista”. [37]

Marx fez declarações semelhantes em seus escritos políticos. Confrontado com o nascimento da Comuna de Paris, ou seja, a primeira tomada do poder pelas classes subalternas, comentou em A Guerra Civil na França (1871), que: “A classe trabalhadora não esperava milagres da Comuna. Eles não têm utopias prontas para introduzir por decreto do povo.” Em vez disso, a emancipação do proletariado tinha “que passar por longas lutas, por uma série de processos históricos, transformando circunstâncias e homens”. O objetivo não era “realizar ideais”, mas “libertar elementos da nova sociedade dos quais a própria sociedade burguesa, velha e entrando em colapso, está grávida”. [38]

Finalmente, Marx disse o mesmo em sua correspondência com líderes do movimento operário europeu. Em 1881, por exemplo, quando Ferdinand Domela Nieuwenhuis (1846-1919), o principal representante da Liga Social-Democrata da Holanda, perguntou-lhe que medidas um governo revolucionário teria que tomar depois de assumir o poder para estabelecer uma sociedade socialista, Marx respondeu que sempre considerou tais questões como “falaciosas”, argumentando que “o que deve ser feito… em qualquer momento específico depende, é claro, total e inteiramente das circunstâncias históricas reais em que a ação deve ser efetuada”. Ele argumentou que era impossível “resolver uma equação que não compreende em seus termos os elementos de sua solução”; “uma doutrinária e por necessidade fantástica antecipação do programa de ação de uma revolução futura serve apenas para distrair da luta atual.” [39]

No entanto, ao contrário do que muitos comentaristas erroneamente afirmam, Marx desenvolveu, tanto em escritos publicados quanto em inéditos, uma série de discussões sobre a sociedade comunista que aparecem em três tipos de texto. Primeiro, aqueles em que Marx criticava ideias que considerava teoricamente equivocadas e passíveis de enganar os socialistas de seu tempo. Algumas partes dos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844 e A Ideologia Alemã; o capítulo sobre “Literatura Socialista e Comunista” no Manifesto do Partido Comunista; as críticas a Pierre-Joseph Proudhon nos Grundrisse, no Urtext e na Contribuição à Crítica da Economia Política; os textos da década de 1870 contra o anarquismo; e as teses críticas de Ferdinand Lassalle (1825-1864) na Crítica do Programa de Gotha (1875) pertencem a esta categoria. A estes devem ser acrescentados os comentários críticos sobre Proudhon, Lassalle e o componente anarquista da Associação Internacional dos Trabalhadores espalhados por toda a vasta correspondência de Marx.

O segundo tipo de texto em que Marx delineou algumas características da sociedade comunista é constituído pelos escritos militantes e a propaganda política escritos para organizações da classe trabalhadora de seu tempo. Neles, Marx tentou fornecer indicações mais concretas sobre a sociedade pela qual estavam lutando e os instrumentos necessários para construí-la. Este grupo compreende o Manifesto Comunista, as resoluções, relatórios e endereços para a Associação Internacional dos Trabalhadores – incluindo Salário, Preço e Lucro e A Guerra Civil na França – e diversos artigos, palestras públicas, discursos, cartas a militantes e outros documentos de tamanho menor como o Programa do Partido dos Trabalhadores Franceses.

O terceiro e último grupo de textos, centrado no capitalismo, contêm as mais longas e detalhadas discussões de Marx sobre as características da sociedade comunista. Importantes capítulos de O Capital e os numerosos manuscritos preparatórios, particularmente o altamente valioso Grundrisse, contêm algumas de suas ideias mais destacadas sobre o socialismo. Foram justamente suas observações críticas sobre aspectos do modo de produção existente que levaram a reflexões sobre a sociedade comunista, e não é por acaso que em alguns casos páginas sucessivas de sua obra alternam entre esses dois temas. [40]

Um estudo atento das discussões de Marx sobre o comunismo nos permite distinguir sua própria concepção daquela dos regimes do século XX, que, alegando agir em seu nome, cometeram uma série de crimes e atrocidades. Dessa forma, é possível realocar o projeto de política marxiana ao horizonte que lhe corresponde: a luta pela emancipação do que Saint-Simon chamou de “as mais pobres e mais numerosas classes”. [41]

As notas de Marx sobre o comunismo não devem ser pensadas como um modelo a ser aderido de maneira dogmática, [42] e menos ainda como soluções a serem indiscriminadamente aplicadas em diversos tempos e lugares. No entanto, esses esboços constituem um tesouro teórico inestimável, ainda hoje útil para repensar uma alternativa ao capitalismo.

Os limites dos escritos de juventude

Ao contrário do que afirma um certo tipo de propaganda marxista-leninista, as teorias de Marx foram o resultado não de alguma sabedoria inata, mas de um longo processo de refinamento conceitual e político. O estudo intenso de economia e muitas outras disciplinas, juntamente com a observação de acontecimentos históricos reais, particularmente a Comuna de Paris, foi extremamente importante para o desenvolvimento de seu pensamento sobre a sociedade comunista.

Alguns dos primeiros escritos de Marx – muitos dos quais ele nunca completou ou publicou – são muitas vezes surpreendentemente considerados como sínteses de suas ideias mais significativas, [43] mas, na verdade, elas exibem todos os limites de sua concepção inicial de sociedade pós-capitalista.

Nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844, Marx escreveu sobre esses assuntos em termos altamente abstratos, uma vez que ele ainda não tinha sido capaz de expandir seus estudos econômicos e tinha pouca experiência política na época. Em alguns pontos, ele descreveu o “comunismo” como a “negação da negação”, como um “momento da dialética hegeliana”: “a expressão positiva da propriedade privada anulada”. [44] Em outros, porém, inspirados por Ludwig Feuerbach (1804-1872), ele escreveu que:

este comunismo é, enquanto naturalismo consumado = humanismo, e enquanto humanismo consumado = naturalismo. Ele é a verdadeira dissolução (Aufsölung) do antagonismo do homem com a natureza e com o homem; a verdadeira resolução (Aufsölung) do conflito entre existência e essência, entre objetivação e autoconfirmação (Selbstbestätigung), entre liberdade e necessidade (Notwendigkeit), entre indivíduo e gênero. [45]

Várias passagens nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844 foram influenciadas pela matriz teológica da filosofia da história de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831): por exemplo, o argumento de que “o movimento total da história [é] o ato efetivo (wirklich) de geração [do comunismo]”; ou que o comunismo era “o enigma resolvido da história”, que “se sabe como esta solução”. [46]

Da mesma forma, A ideologia alemã, que Marx escreveu com Engels e inicialmente incluiria textos de outros autores, [47] contém uma famosa citação que semeou grande confusão entre os exegetas da obra de Marx. Numa página inacabada, lemos que, enquanto na sociedade capitalista, com suas divisões do trabalho, todo ser humano “tem uma esfera particular e exclusiva de atividade”, na sociedade comunista:

a sociedade regula a produção geral e me confere, assim, a possibilidade de hoje fazer isto, amanhã aquilo, de caçar pela manhã, pescar à tarde, à noite dedicar-me à criação de gado, criticar após o jantar, exatamente de acordo com a minha vontade, sem que eu jamais me torne caçador, pescador, pastor ou crítico[48]

Muitos autores, tanto marxistas quanto antimarxistas, acreditaram ingenuamente que essa era a principal característica da sociedade comunista para Marx – uma visão que eles poderiam sustentar por causa de sua relativa falta de familiaridade com O Capital e vários textos políticos importantes. Apesar da infinidade de análises e discussões em relação ao manuscrito de 1845-1846, eles não perceberam que essa passagem era a reformulação de uma antiga – e bastante conhecida – ideia de Charles Fourier, [49] que foi retomada por Engels, mas rejeitada por Marx. [50]

Apesar dessas evidentes limitações, A Ideologia Alemã representou um progresso indubitável sobre os Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844. Considerando que este último foi influenciado pelo idealismo da Esquerda Hegeliana – grupo do qual Marx fez parte até 1842 – e carecia de qualquer discussão política concreta, o primeiro agora sustentava que “só é possível alcançar a libertação real [wirkliche befreiung] no mundo real e pelo emprego de meios reais”. O comunismo, portanto, não deve ser considerado como “um estado de coisas [Zustand] que deve ser instaurado, um Ideal para o qual a realidade deverá se direcionar, [mas como] o movimento real que supera o estado de coisas atual.” [51]

Em A Ideologia Alemã, Marx também traçou um primeiro esboço da economia da sociedade futura. Enquanto as revoluções anteriores produziram apenas “uma nova distribuição do trabalho entre outras pessoas”, [52]

o comunismo distingue-se de todos os movimentos [anteriores] porque revoluciona os fundamentos de todas as relações de produção e de intercâmbio precedentes, e porque pela primeira vez aborda conscientemente todos os pressupostos naturais como criação dos homens que existiram anteriormente, despojando-os de seu caráter natural e submetendo-os ao poder dos indivíduos associados. Sua organização é, por isso, essencialmente econômica, a produção material das condições dessa associação. [53]

Marx também afirmou que “empiricamente”, o comunismo só é possível como o ato dos povos dominantes “de uma só vez” e “simultaneamente”. Na sua visão, isso pressupunha tanto “o desenvolvimento universal das forças produtivas” quanto “o intercâmbio mundial associado a elas”. [54] Além disso, Marx confrontou pela primeira vez um tema político fundamental que retomaria no futuro: o advento do comunismo como o fim da tirania de classe. Pois a revolução “supera [aufhebt] a dominação de todas as classes ao superar as próprias classes, pois essa revolução é realizada pela classe que, na sociedade, não é mais considerada como uma classe, não é reconhecida como tal, sendo já a expressão da dissolução de todas as classes, nacionalidades”. [55]

Marx continuou, junto com Engels, a desenvolver suas reflexões sobre a sociedade pós-capitalista no Manifesto do Partido Comunista. Neste texto, que, em sua profunda análise das mudanças efetuadas pelo capitalismo, se elevava acima da tosca literatura socialista da época, os pontos mais interessantes sobre o comunismo dizem respeito às relações de propriedade. Marx observou que a transformação radical delas “não era de modo algum uma característica distintiva do comunismo”, uma vez que outros novos modos de produção na história também haviam provocado isso. Para Marx, em oposição a todas as alegações de propaganda de que os comunistas impediriam a apropriação pessoal dos frutos do trabalho, a “característica distintiva do comunismo” não era “a abolição da propriedade em geral, mas a abolição da propriedade burguesa”, [56] do “poder de apropriar-se dos produtos da sociedade… de subjugar o trabalho de outros”. [57] Aos seus olhos, a “teoria dos comunistas” poderia ser resumida em uma frase: “a abolição da propriedade privada”. [58]

No Manifesto do Partido Comunista, Marx também propôs uma lista de dez critérios preliminares a serem alcançados nas economias mais avançadas após a conquista do poder. Eles incluíam “expropriação da propriedade fundiária e emprego da renda da terra para despesas do Estado”; [59] “a centralização de crédito nas mãos do Estado, por intermédio de um banco nacional…; a centralização dos meios de comunicação e transporte nas mãos do Estado… educação gratuita para todas as crianças em escolas públicas”, mas também a “abolição de todo direito de herança”, uma medida saint-simoniana que Marx mais tarde rejeitou firmemente. [60]

Como no caso dos manuscritos escritos entre 1844 e 1846, seria um erro considerar as medidas listadas no Manifesto Comunista – elaborado quando Marx tinha apenas trinta anos – como sua visão acabada da sociedade pós-capitalista. [61] O completo amadurecimento de seu pensamento exigiria muitos mais anos de estudo e experiências políticas.

Comunismo como associação livre

No volume I de O Capital, Marx argumentou que o capitalismo era um modo social de produção “historicamente determinado” [62] em que o produto do trabalho era transformado em mercadoria, com o resultado de que os indivíduos tinham valor apenas como produtores, e a existência humana foi subjugada ao ato da “produção de mercadorias”. [63] Portanto, “o processo de produção domina os homens, e não os homens o processo de produção”. [64] O capital “não se importa com a duração de vida da força de trabalho” e não atribuía importância nenhuma às melhorias nas condições de vida do proletariado. O capital “atinge esse objetivo por meio do encurtamento da duração da [vida da] força de trabalho, como agricultor ganancioso que obtém uma maior produtividade da terra roubando dela sua fertilidade”. [65]

Nos Grundrisse, Marx lembrou que no capitalismo, “uma vez que o objetivo do trabalho não é um produto particular [com uma relação] com as necessidades particulares do indivíduo, mas dinheiro… a diligência do indivíduo não tem limites”. [66] Em tal sociedade, “todo o tempo de um indivíduo é postulado como tempo de trabalho e, consequentemente, ele é rebaixado a mero trabalhador, subsumido sob o trabalho”. [67] A ideologia burguesa, no entanto, apresenta isso como se o indivíduo gozasse de maior liberdade e fosse protegido por normas jurídicas imparciais capazes de garantir justiça e equidade. Paradoxalmente, apesar do fato de que a economia se desenvolveu a um nível tal que pode permitir que toda a sociedade viva em melhores condições do que antes, “a maquinaria mais desenvolvida agora obriga o trabalhador a trabalhar por mais tempo do que o selvagem, ou do que o próprio operário fazia quando estava usando o mais simples, mais grosseiro implemento”. [68]

Em contraste, a visão de Marx do comunismo era de “uma associação de indivíduos [livres] [ein Verein freier Menschen], trabalhando com os meios de produção comuns a todos, e gastando suas muitas formas diferentes de força de trabalho em plena consciência como uma única força social de trabalho” [69]. Definições semelhantes estão presentes em muitos dos escritos de Marx. Nos Grundrisse, ele escreveu que a sociedade pós-capitalista seria baseada em “produção coletiva [gemeinschaftliche Produktion]”. [70]

Nos Manuscritos Econômicos de 1863-1867, ele falou da “passagem do modo de produção capitalista ao modo de produção de trabalho associado [Produktionsweise der assoziierten Arbeit]”. [71] E na Crítica do Programa de Gotha, definiu a organização social “baseada na propriedade comum dos meios de produção” como “sociedade cooperativa [genossenschaftliche Gesellschaft]”. [72]

No volume I de O Capital, Marx explicou que o “princípio fundamental” dessa “forma superior de sociedade” seria “o pleno e livre desenvolvimento de cada indivíduo”. [73] Em A Guerra Civil na França, ele expressou sua aprovação das medidas tomadas pelos communards, que “(exprimiam) a tendência de um governo do povo pelo povo”. [74] Para ser mais preciso, em sua avaliação das reformas políticas da Comuna de Paris, afirmou que “o antigo governo centralizado também teria de ceder lugar nas províncias ao autogoverno dos produtores”. [75] A expressão é recorrente no “Conspecto sobre Estatismo e Anarquia de Bakunin” (1874-1875), onde ele sustentava que a mudança social radical “começaria com o autogoverno das comunidades”. [76] A ideia de sociedade de Marx, portanto, é a antítese dos sistemas totalitários que surgiram em seu nome no século XX. Seus escritos são úteis para a compreensão não apenas de como o capitalismo funciona, mas também do fracasso das experiências socialistas até hoje.

Ao referir-se à chamada livre concorrência, ou às posições aparentemente iguais de trabalhadores e capitalistas no mercado na sociedade burguesa, Marx afirmou que a realidade era totalmente diferente da liberdade humana exaltada pelos apologistas do capitalismo. O sistema representava um grande obstáculo para a democracia, e ele mostrou melhor que ninguém que os trabalhadores não recebem um equivalente pelo que produziram. [77] Nos Grundrisse, ele explicou que o que era apresentado como uma “troca de equivalentes” era, na verdade, apropriação do “tempo de trabalho sem troca” dos trabalhadores; a relação de troca “desapareceu completamente” ou tornou-se “mera aparência”. [78] As relações entre as pessoas eram “atuadas apenas por interesse próprio”. Esse “choque de indivíduos” foi falsamente representado como “a forma absoluta de existência da individualidade livre na esfera da produção e troca”. Mas, para Marx, “nada poderia estar mais longe da verdade”, uma vez que “na livre concorrência, é o capital que é libertado, não os indivíduos”. [79] Nos Manuscritos Econômicos de 1863-1867, ele denunciou o fato de que “o trabalho excedente é inicialmente embolsado, em nome da sociedade, pelo capitalista” – o trabalho excedente que é “a base do tempo livre da sociedade” e, em virtude disso, a “base material de todo o seu desenvolvimento e da civilização em geral”. [80] E no volume I de O Capital, ele mostrou que a riqueza da burguesia só era possível “transformando todo o tempo de vida das massas em tempo de trabalho”. [81]

Nos Grundrisse, Marx observou que no capitalismo “os indivíduos são subsumidos sob a produção social”, que “existe fora deles como seu destino”. [82] Isso só acontece por meio da atribuição de valor de troca conferido aos produtos, cuja compra e venda ocorre post festum[83] Além disso, “todos os poderes sociais de produção” – incluindo descobertas científicas, que aparecem como “alienígenas e externas” ao trabalhador [84] – são colocados pelo capital. A própria associação dos trabalhadores, nos lugares e no ato da produção, é “operada pelo capital” e é, portanto, “apenas formal”. O uso dos bens criados pelos trabalhadores “não é mediado pela troca entre trabalhos ou produtos do trabalho [mutualmente independentes]”, mas sim “pelas circunstâncias de produção social dentro da qual o indivíduo realiza sua atividade”. [85] Marx explicou como a atividade produtiva na fábrica “refere-se apenas ao produto do trabalho, não ao próprio trabalho”, [86] visto que é “confinada a um local comum de trabalho sob a direção de superintendentes, arregimentação, maior disciplina, consistência e uma dependência postulada do capital na própria produção”. [87]

Em contraste, na sociedade comunista a produção seria “diretamente social”, “filha da associação distribuindo o trabalho dentro de si”. Seria administrada por indivíduos como sua “riqueza comum” [88]. O “caráter social da produção [gesellschaftliche Charakter der Produktion]” iria, “desde o início, transformar o produto em um produto comunitário e geral”; este caráter associativo seria “pressuposto” e “o trabalho do indivíduo… desde o início [seria pressuposto] como trabalho social”. [89] Como Marx enfatizou na Crítica do Programa de Gotha, na sociedade pós-capitalista, “os trabalhos individuais existem não mais como um desvio [indiretamente], mas imediatamente como parte integrante do trabalho total”. [90] Além disso, os trabalhadores seriam capazes de criar as condições para o eventual desaparecimento da “subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho”. [91]

No volume I de O Capital, Marx enfatizou que, na sociedade burguesa, “o trabalhador existe para o processo de produção, e não o processo de produção para o trabalhador”. [92] Além disso, paralelamente à exploração dos trabalhadores, desenvolveu-se a exploração do meio ambiente. Ao contrário das interpretações que reduzem a concepção de Marx da sociedade comunista ao mero desenvolvimento das forças produtivas, ele demonstrou grande interesse pelo que chamaríamos agora de questão ecológica. [93] Ele denunciou repetidamente o fato de que “todos professam na agricultura capitalista um progresso na arte, não apenas de roubar o trabalhador, mas de roubar o solo”. Isso ameaça ambos “os mananciais de toda riqueza: a terra e o trabalhador”. [94]

No comunismo, seriam criadas as condições para uma forma de “cooperação planejada” através da qual o trabalhador “supera suas limitações individuais e desenvolve sua capacidade genérica”. [95] No volume II de O Capital, Marx apontou que a sociedade estaria então em posição de “contar em adiantar quanto trabalho, meios de produção e meios de subsistência pode gastar, sem deslocamento”, ao contrário do capitalismo “onde qualquer tipo de racionalidade social afirma-se apenas post festum” e “grandes perturbações podem e têm de ocorrer constantemente”. [96] Em algumas passagens do volume III de O Capital, também, Marx esclareceu as diferenças entre um modo socialista de produção e um baseado no mercado, prevendo o nascimento de uma sociedade “organizada como uma associação consciente”. [97] “É somente onde a produção está submetida a um controle preestabelecido da sociedade que esta última pode estabelecer uma relação entre o tempo de trabalho social aplicado na produção de determinados artigos e o volume da necessidade social que esse artigo deve satisfazer.” [98]

Finalmente, em suas glosas marginais ao Tratado de Economia Política de Adolph Wagner, Marx deixou claro que na sociedade comunista “a esfera [volume] de produção” terá que ser “racionalmente regulamentada”. [99] Isso também permitirá eliminar os resíduos devidos ao “sistema anárquico de concorrência”, que, por meio de suas crises estruturais recorrentes, não envolve apenas “o desperdício mais desenfreado dos meios de produção e das forças de trabalho sociais”, [100] mas é incapaz de resolver as contradições que se originam essencialmente da “utilização capitalista da maquinaria”. [101]

Propriedade coletiva e tempo livre

Ao contrário da visão de muitos dos contemporâneos socialistas de Marx, uma redistribuição de bens de consumo não seria suficiente para reverter esse estado de coisas. Uma mudança radical nos ativos produtivos da sociedade era necessária. Assim, nos Grundrisse Marx observou que “deixar o trabalho assalariado e, ao mesmo tempo, abolir o capital [era] uma demanda de autocontradição e autonegação”. [102] O que era necessário era a “dissolução do modo de produção e forma de sociedade baseada no valor de troca”. [103] No discurso publicado sob o título Salário, Preço e Lucro, ele pediu aos trabalhadores que “inscrevam em sua bandeira não o motto conservador: “Um salário diário justo para um trabalho diário justo!” [mas] a palavra de ordem revolucionária: “Abolição do sistema de salários!” [104]

Além disso, na Crítica do Programa de Gotha afirmou que, no modo de produção capitalista, “as condições materiais de produção estão nas mãos de não trabalhadores na forma de capital e propriedade de terra, enquanto as massas são apenas donas da condição pessoal da produção, da força de trabalho”. [105] Portanto, era essencial derrubar as relações de propriedade na base do modo de produção burguês. Nos Grundrisse, Marx lembrou que “as leis da propriedade privada – liberdade, igualdade, propriedade – propriedade em seu próprio trabalho e a capacidade de livremente dispor dele – se invertem na falta de propriedade do trabalhador e na alienação de seu trabalho, sua relação com ele como propriedade alheia e vice-versa”. [106] E, em 1869, em um relatório do Conselho-Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores, ele afirmou que “a propriedade privada nos meios de produção” servia para dar à classe burguesa “o poder de viver, sem trabalhar, do trabalho de outras pessoas”. [107] Ele repetiu essa ponderação em outro breve texto político, o “Preâmbulo do Programa do Partido dos Trabalhadores da França”, acrescentando que “os produtores não podem ser livres a menos que possuam os meios de produção” e que o objetivo da luta proletária deve ser “o retorno de todos os meios de produção à propriedade coletiva”. [108]

No volume III de O Capital, Marx observou que, quando os trabalhadores estabelecessem um modo de produção comunista, “a propriedade privada da terra por indivíduos [pareceria] tão absurdo quanto a propriedade privada de um ser humano por outro”. Ele dirigiu sua crítica mais radical contra a possessão destrutiva inerente ao capitalismo, insistindo que “mesmo uma sociedade inteira, uma nação, ou mesmo todas as sociedades tomadas em conjunto, não são os donos da terra”. Para Marx, os seres humanos eram “apenas seus possuidores, seus usufrutuários, e eles têm que legá-lo [o planeta] em um estado melhorado às gerações sucessivas, como bons chefes de família [boni patres famílias]”. [109]

Um tipo diferente de propriedade dos meios de produção também mudaria radicalmente a vida da sociedade. No volume I de O Capital, Marx desvelou com total clareza as razões pelas quais no capitalismo “na produção capitalista, portanto, a economia do trabalho […] não visa em absoluto a redução da jornada de trabalho. Seu objetivo é apenas a redução do tempo de trabalho necessário para a produção de determinada quantidade de mercadorias”. [110] O tempo que o progresso da ciência e tecnologia disponibiliza para os indivíduos é, na realidade, imediatamente convertido em mais-valia. O único objetivo da classe dominante é “a redução do tempo de trabalho necessário para a produção de determinada quantidade de mercadorias”. Seu único propósito no desenvolvimento das forças produtivas é “encurtar a parte da jornada de trabalho que o trabalhador tem de trabalhar para si mesmo precisamente para alongar a parte da jornada de trabalho durante a qual ele pode trabalhar gratuitamente para o capitalista”. [111] Este sistema difere da escravidão ou das corveias devidas ao senhor feudal, pois “o mais-trabalho e o trabalho necessário confundem-se um com o outro” [112] e tornam a realidade da exploração mais difícil de perceber.

Nos Grundrisse, Marx evidenciou que o “tempo livre para poucos” é possível apenas por causa desse tempo de mais-trabalho de muitos. [113] A burguesia assegura o crescimento de suas capacidades materiais e culturais somente graças à limitação das do proletariado. O mesmo acontece na maioria dos países capitalistas avançados, em detrimento dos da periferia do sistema. Nos Manuscritos de 1861-1863, Marx enfatizou que o “livre desenvolvimento” da classe dominante é “baseado na restrição de desenvolvimento da classe trabalhadora”; “o mais-trabalho dos trabalhadores” é a “base natural do desenvolvimento social da outra seção”. O tempo de trabalho excedente dos trabalhadores não é apenas o pilar de sustentação das “condições materiais de vida” para a burguesia; também cria as condições para o seu “tempo livre, a esfera de [seu] desenvolvimento”. Marx não poderia ter dito melhor: “o tempo livre de uma seção corresponde ao tempo em servidão ao trabalho da outra seção”. [114]

Para Marx, em contraste, a sociedade comunista seria caracterizada por uma redução geral do tempo de trabalho. Nas “Instruções aos Delegados do Conselho Geral Provisório”, compostas em agosto de 1866, Marx escreveu em termos diretos: “Uma condição preliminar, sem a qual todas as tentativas de melhoria e emancipação devem ser abortadas, é a limitação da jornada de trabalho.” Era necessário não apenas “restabelecer a saúde e energias físicas da classe trabalhadora”, mas também “assegurar-lhes a possibilidade de desenvolvimento intelectual, relações sociais, e ação política”. [115] Da mesma forma, no volume I de O Capital, enquanto observava que o “tempo [dos trabalhadores] para a formação humana, para o desenvolvimento intelectual, para o cumprimento de funções sociais, para relações sociais, para o livre jogo das forças vitais físicas e intelectuais” eram vistas como pura “futilidade” aos olhos da classe capitalista, [116] Marx insinuou que estes seriam os elementos fundamentais da nova sociedade. Como ele disse nos Grundrisse, uma redução nas horas dedicadas ao trabalho – e não apenas trabalho para criar mais-valor para a classe capitalista – favoreceria “o desenvolvimento artístico, científico etc. dos indivíduos, possibilitada pelo tempo assim libertado e pelos meios produzidos para todos eles”. [117]

Com base nessas convicções, Marx identificou a “economia de tempo [e] a distribuição planejada do tempo de trabalho pelos vários ramos da produção” como “a primeira lei econômica [da] produção comunal”. [118] Em Teorias da Mais-valia (1862-1863), ele deixou ainda mais claro que “riqueza real” nada mais era do que “tempo disponível”. Na sociedade comunista, a autogestão dos trabalhadores garantiria que “uma maior quantidade de tempo não fosse absorvida em trabalho produtivo direto, mas… disponível para diversão, para o lazer, dando margem portanto à livre atividade e desenvolvimento”. [119] Nesse texto, assim como nos Grundrisse, Marx citou um pequeno panfleto anônimo intitulado A Fonte e Remédio das Dificuldades Nacionais, Deduzida de Princípios de Economia Política, em uma Carta ao Lorde John Russell (1821), cuja definição de bem-estar ele compartilhou plenamente: isto é, “Uma nação é verdadeiramente rica se a jornada de trabalho for de seis horas em vez de doze. A riqueza não é o comando sobre o tempo de trabalho excedente [riqueza real], mas o tempo disponível, além do empregado na produção imediata, para cada indivíduo e para toda a sociedade.” [120] Em outras partes dos Grundrisse, ele pergunta retoricamente: “O que é a riqueza senão a universalidade das necessidades, capacidades, prazeres, forças produtivas do indivíduo?… O que é se não o desdobramento absoluto das habilidades criativas do homem?” [121] É evidente, então, que o modelo socialista na mente de Marx não envolvia um estado de pobreza generalizada, mas sim a obtenção de uma maior riqueza coletiva.

Papel do Estado, direitos individuais e liberdades

Na sociedade comunista, juntamente com as mudanças transformadoras na economia, o papel do Estado e a função da política também teriam que ser redefinidos. Em A Guerra Civil na França, Marx se esforçou para explicar que, após a conquista do poder, a classe trabalhadora teria que lutar para “arrancar os fundamentos econômicos sobre os quais repousa a existência de classes e, portanto, da dominação de classe”. Uma vez que o “trabalho [fosse] emancipado, todo homem se converte em trabalhador e o trabalho produtivo deixa de ser um atributo de classe”. [122] A famosa declaração de que “a classe não pode simplesmente se apoderar da máquina estatal pronta e manejar para seus próprios propósitos” pretendia significar, como Marx e Engels esclareceram no livreto Fictitious Splits in the International [Cisões Fictícias na Internacional], que “as funções de governo [deveriam] tornar- -se simples funções administrativas” [123] e, em uma formulação concisa em seu “Conspecto sobre Estatismo e Anarquia de Bakunin”, Marx insistiu que “a distribuição das funções gerais [deveria] tornar-se um assunto rotineiro que não implica em dominação”. [124] Isso evitaria, tanto quanto possível, o perigo de que o exercício dos deveres políticos gerasse novas dinâmicas de dominação e subjugação.

Marx acreditava que, com o desenvolvimento da sociedade moderna, “o poder do Estado foi assumindo cada vez mais o caráter do poder nacional do capital sobre o trabalho, de uma força política organizada para a escravização social, de uma simples máquina do despotismo de classe”. [125] No comunismo, em contraste, os trabalhadores teriam que evitar que o Estado se tornasse um obstáculo para emancipação plena. Seria necessário que “os órgãos meramente repressivos do velho poder estatal [fossem] amputados, suas legítimas funções seriam arrancadas a uma autoridade que usurpava à sociedade uma posição preeminente e restituídas aos agentes responsáveis dessa sociedade”. [126] Na Crítica do Programa de Gotha, Marx observou que “a liberdade consiste em converter o Estado, de órgão que subordina a sociedade em órgão totalmente subordinado a ela”, e acrescentou com perspicácia que “as formas de Estado são mais ou menos livres, de acordo com o grau em que limitam a ‘liberdade do estado’. [127]

No mesmo texto, Marx sublinhou a exigência de que, na sociedade comunista, as políticas públicas devem priorizar a “satisfação das necessidades coletivas”. O gasto com escolas, saúde e outros bens comuns “crescerá significativamente […] em comparação com a sociedade atual e aumentará na mesma medida em que a nova sociedade se desenvolver”. [128] A educação assumia importância de primeira linha e – como ele havia apontado em A Guerra Civil na França, referindo-se ao modelo adotado pelos communards parisienses em 1871 – “todas as instituições educacionais [seriam] abertas ao povo gratuitamente e… livres de toda interferência da Igreja e do Estado”. Somente dessa forma a cultura “se tornaria […] acessível a todos” e a ciência “seria liberada dos grilhões da pressão governamental e do preconceito de classe”. [129]

Ao contrário da sociedade liberal, onde o “direito igual” deixa intactas as desigualdades existentes, na sociedade comunista “o direito teria que ser desigual em vez de igual”. Uma mudança nessa direção reconheceria e protegeria os indivíduos com base em suas necessidades específicas e na maior ou menor dificuldade de suas condições, pois “não seriam indivíduos diferentes se não fossem desiguais”. Além disso, seria possível determinar o quinhão de serviços e a riqueza disponível de cada pessoa. A sociedade que pretendesse seguir o princípio “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades” [130] tinha diante de si este caminho intrincado e cheio de dificuldades. Contudo, o resultado final não foi garantido por algum “destino magnífico e progressivo” (nas palavras de Giacomo Leopardi [1798-1837]), nem era irreversível.

Marx atribuía um valor fundamental à liberdade individual, e seu comunismo era radicalmente diferente do nivelamento de classes previsto por seus vários predecessores ou perseguido por muitos de seus epígonos. No Urtext, entretanto, ele apontou para a “loucura daqueles socialistas (especialmente os socialistas franceses)” que, considerando o “socialismo como a realização de ideias [burguesas]… pretende[ia] demonstrar que a troca e valor de troca etc., eram originalmente… um sistema de liberdade e igualdade de todos, mas [mais tarde] pervertido pelo dinheiro [e] capital”. [131] Nos Grundrisse, ele classificou como um “absurdo” considerar a “livre concorrência como o desenvolvimento final da liberdade humana”; era equivalente a uma crença de que “o domínio da burguesia é o ponto final da história mundial”, que ele zombeteiramente descreveu como “um pensamento agradável para os arrivistas de anteontem”. [132]

Da mesma forma, Marx contestava a ideologia liberal segundo a qual “a negação da livre concorrência [foi] equivalente à negação da liberdade individual e de produção social baseada em liberdade”. Na sociedade burguesa, o único “desenvolvimento livre” possível era “na base limitada da dominação do capital”. Mas esse “tipo de liberdade individual” era, ao mesmo tempo, “a abolição mais de toda liberdade individual e a completa submissão da individualidade a condições sociais que assumem a forma de poderes objetivos, na verdade de objetos dominantes… independente dos indivíduos relacionados a um outro”. [133]

A alternativa à alienação capitalista só seria alcançável se as classes subalternas tomassem consciência de sua condição de novos escravos e embarcassem em uma luta para transformar radicalmente o mundo em que eram explorados. A sua mobilização e participação ativa neste processo não poderia parar, porém, no dia seguinte à conquista do poder. Teria de continuar, a fim de evitar qualquer desvio para o tipo de socialismo de Estado ao qual Marx sempre se opôs com a maior tenacidade e convicção.

Em 1868, em significativa carta ao presidente da Associação dos Trabalhadores Alemães, Marx explicou que, na Alemanha, “onde o trabalhador é regulado burocraticamente desde a infância, onde ele acredita na autoridade, naqueles que estão sobre ele, o principal é ensiná-lo a andar sozinho”. [134] Ele nunca mudou essa convicção ao longo da sua vida e não é por acaso que o primeiro ponto do seu projeto dos Estatutos da Associação Internacional dos Trabalhadores afirma: “A emancipação das classes trabalhadoras deve ser conquistada pelas próprias classes trabalhadoras.” E eles acrescentam imediatamente depois que a luta pela emancipação da classe trabalhadora “não significa uma luta pelos privilégios de classe e monopólios, mas por direitos e deveres iguais”. [135]

Muitos dos partidos políticos e regimes que se desenvolveram em nome de Marx usaram o conceito de “ditadura do proletariado” [136] de forma instrumental, distorcendo seu pensamento e afastando-se da direção que ele havia indicado. Mas isso não significa que estejamos condenados a repetir o erro.

 

Veja em: https://jacobin.com.br/2023/10/a-ideia-do-comunismo-para-marx/

Comente aqui