FMI dá apoio instantâneo a programa econômico do ultradireitista argentino – que devasta serviços públicos e penaliza os mais pobres. Atitude sinaliza opção política do 0,1% e serve de aviso aos que, no governo Lula, cortejam a Faria Lima
Por: Glauco Faria
Depois de mais de duas horas de atraso no anúncio oficial programado para as 17h desta terça-feira (12), o ministro da Economia do governo de Javier Milei, Luis Caputo, anunciou à noite, via transmissão por streaming, as primeiras medidas econômicas da atual gestão na Argentina. Embora tenha sido o chamado “pacote”, tão comum em países da região nos anos 1980/1990, as linhas gerais podem ser resumidas em duas: maxidesvalorização do peso e cortes em investimentos/despesas do poder público.
Diversas razões para o atraso do anúncio (gravado) de Caputo foram aventadas e uma delas dizia respeito ao ajuste do discurso para justificar politicamente as medidas tomadas. Afinal, como disse o próprio ministro, a situação geral vai piorar nos próximos meses e o próprio Milei já havia falado em um período de estagflação (combinação de quadro recessivo com inflação). Assim, era necessário dizer que a herança do governo anterior era pesada demais e que o momento exigia medidas drásticas para evitar o pior em termos inflacionários.
Não faltou desenhar um futuro sombrio em que haveria uma “inflação plantada de 15.000%”, algo que Milei já havia mencionado no seu discurso de posse. A inflação anual argentina está em torno de 150% e, apesar do cenário grave, nada indica um quadro hiperinflacionário como o vivido em parte dos anos 1980, por exemplo. A argumentação é essencialmente política e nada técnica.
“O problema é que as medidas tomadas não apontam para baixar a inflação, mas sim subir. Então, ele (Milei) não quer que se compare com os 150% de inflação, mas com 15.000% que ele diz que há, ou que poderá haver, ou que poderia ter havido”, aponta o economista Alejandro Bercovich. “Dizem que um litro de leite que vale US$ 1.000 pode chegar a US$ 60.000, então quando chegar a US$ 10.000 você se sente com sorte. Eles estão tomando você por um tolo”, resumiu uma postagem que viralizou nas redes sociais.
Para Caputo, toda culpa da crise argentina é do déficit fiscal, o que obrigaria, segundo ele, a cortes, incluindo a modificação do mecanismo de reajustes de aposentados e pensionistas e eliminação de subsídios em transportes e serviços de energia, o que vai provocar aumento de tarifas. Não faltou também na fala do ministro a surrada e pra lá de equivocada comparação entre o orçamento do Estado e o orçamento doméstico, ignorando-se que o corte de despesas de uma família não induz queda da própria receita, por exemplo.
O homem forte de Milei na economia também falou a respeito do problema do país seguir se endividando, ignorando que ele, no mesmo cargo na gestão Macri, foi o responsável por contrair um empréstimo US$ 57 bilhões, em valores de 2018, junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI), aporte necessário após o fracasso das políticas de austeridade fiscal tomadas pelo governo. Acreditava-se (como sempre reza a cartilha neoliberal), que um ajuste nas contas públicas atrairia investimentos internacionais para o país, o que não aconteceu. A pobreza aumentou e um fardo enorme foi deixado para o governo seguinte, de Alberto Fernández, que tampouco soube lidar com a situação.
“Conclusão da mensagem de Caputo: Se você é de classe média, você vai ser pobre e se você é pobre, você vai ficar desamparado. Se você for rico, será muito mais rico”, resumiu o jornalista e economista Ezequiel Orlando em sua conta no Twitter.
Aplausos do FMI
A diretora do FMI, Kristalina Georgieva, felicitou o governo argentino pelas medidas tomadas que, de acordo com ela, são “um passo importante para restaurar a estabilidade e reconstruir o potencial econômico do país”. Caputo e o entorno de sua equipe, na verdade, são parceiros de longa data da instituição e já receberam elogios antes.
Em março de 2018, por exemplo, a então diretora-gerente do FMI, Christine Lagarde, teceu loas à política econômica de Caputo/Macri. “Os dois primeiros anos do governo Macri foram impressionantes e coincidem com a determinação da Argentina de restaurar sua situação e conseguir que o país volte ao círculo internacional dos países e têm feito isso com sucesso”, disse ela ao jornal La Nación.
A fala de Lagarde foi feita apenas dois meses antes de a Argentina voltar a negociar com a instituição, fechando aquele que seria o maior empréstimo da história do Fundo. E também pouco mais de um ano após o então ministro da Fazenda macrista, Nicolás Dujovne, ter prometido que o país não voltaria a recorrer aos empréstimos do FMI.
O Fundo não costuma acertar nem nos diagnósticos, nem nos prognósticos. “Financiadores domésticos e estrangeiros tiveram tempo para tirar seu dinheiro do país, deixando os contribuintes argentinos segurando o saco. Mais uma vez, o país estava fortemente endividado sem nada para mostrar. E, mais uma vez, o ‘programa’ do FMI falhou, mergulhando a economia em uma profunda recessão, e um novo governo foi eleito”, explicou o prêmio Nobel de Economia Joseph E. Stiglitz.
Choques
No seu livro A Doutrina do Choque, Naomi Klein fala sobre os “choque econômicos” promovidos e/ou financiados/apoiados por instituições como o Banco Mundial e o FMI para implementar medidas neoliberais radicais. É preciso superdimensionar ou gerar uma crise para vender soluções típicas do livre mercado como única alternativa possível.
Ela destaca que um economista sênior do Fundo que redigiu programas da instituição de ajuste estrutural para a América Latina e África, Davison Budhoo, admitiu que “tudo que fizemos a partir de 1983 foi baseado em nossa missão de levar a ‘privatização’ ao Sul ou morrer; ao final, e de modo vergonhoso, entre 1983 e 1988, tínhamos provocado confusão econômica na América Latina e na África”.
À época, e seria assim também em parte da década de 1990, as instituições financeiras ofereciam pacotes de ajuda emergencial para países em crise, tendo como contrapartida a adoção de medidas de livre comércio e o receituário de privatizações. Como destaca Klein, um cenário de extorsão: quer salvar seu país? Venda-o. O governo de Carlos Menem seguiu à risca a lição, com o ministro da Economia Domingo Cavallo formando uma equipe com os chamados Chicago Boys.
O governo criou a Lei da Convertibilidade e implantou uma nova moeda, o peso, com seu valor atrelado ao dólar. Em um primeiro momento, conseguiu derrubar a hiperinflação, como muitos outros países da região também o fariam nesse período. Mas a dependência de uma moeda estrangeira, aliada ao elevado endividamento externo, acabariam gerando outra crise mais adiante, no fim dos anos 1990.
O importante para muitos setores econômico-financeiros nacionais e internacionais no governo Menen foi o fato de a equipe de Cavallo ter conseguido colocar em prática um radical plano de privatizações. O próprio ministro admitiria que só obteve êxito por aproveitar um cenário de crise. “(…) o único modo de implementar todas essas mudanças, na época, foi tirando vantagem da situação criada pela hiperinflação, uma vez que a população se encontrava pronta para aceitar as medidas drásticas que estavam sendo tomadas para eliminar o perigo e voltar à normalidade.”
Ao empurrar a conta dos ajustes para os mais pobres e a classe média, pregando a redução do Estado, Milei repete a receita, e a retórica servirá para dar dimensões ainda maiores para uma crise que é grave, mas que não justificaria medidas que não só prejudicam ainda mais uma parte da população já castigada, como também não possuem efeito prático, a não ser o favorecimento de alguns que até pouco tempo o atual presidente definia como “casta”.
É muito provável que setores da população argentina não aceitem, como na época de Menem, arcar com uma estagflação provocada sem sair às ruas e Milei já prometeu repressão. A Argentina vai viver um contexto no qual o ideário salvacionista é o mesmo do auge do neoliberalismo, mas com cores ainda mais fortes, embalado no diversionismo da chamada pós-verdade difundida nas redes sociais.
Veja em: https://outraspalavras.net/direita-assanhada/os-banqueiros-preferem-a-motosserra/
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