Por: Shin Suzuki | Créditos da foto: Coleção Itaú Cultural. Aplicação do Castigo do Açoite, de Jean Debret, que provocou revolta ao ser pregado em uma seção do Arquivo Público de SP em 2018
Em um setor do Arquivo Público do Estado de São Paulo, no ano de 2018, foi afixada a cópia de uma pintura de dois séculos atrás.
A imagem apareceu pregada numa porta, sem contexto ou explicação. E desencadeou uma pequena crise no órgão do estadual paulista.
Funcionários afirmaram que a imagem colocada na porta era um gesto de racismo. Reclamações formais chegaram à direção.
O quadro em questão, Aplicação do Castigo do Açoite, mostra um homem negro chicoteado em praça pública enquanto é observado por guardas, populares e por outros que possivelmente ainda serão castigados.
Mais tarde, o órgão pediu desculpas e afirmou que se tratava de uma falha, e não de um ato racista.
A direção, porém, segundo o jornal Folha de S. Paulo daquele ano, não esclareceu por que a imagem foi parar lá. A atual gestão do governo paulista disse apenas à BBC News Brasil que o Arquivo Público realizou na época uma apuração interna e ações pedagógicas.
O autor da obra que causou a minicrise era Jean Debret (1768–1848), um francês que chegou ao Brasil em 1816 como parte de um grupo para documentar — e construir a imagem — da primeira corte europeia a reinar a partir dos trópicos. A família real portuguesa havia abandonado o continente em 1808 após as invasões napoleônicas.
Mas, como foi o caso de Castigo do Açoite, Debret se dedicou a uma série de pinturas que vão bem além de cenas de luxo da vida aristocrática.
São desenhos e aquarelas que, mais tarde, formariam um registro fundamental do cotidiano de violência na sociedade brasileira colonial e imperial — a qual quase sempre recaía sobre negros escravizados e indígenas arrancados de suas terras.
O filósofo franco-suíço Jacques Leenhardt explora no seu recente livro Rever Debret (2023, editora 34) o impacto do pintor até a atualidade — revisitado (e subvertido) por artistas brasileiros da nova geração.
O livro aborda também o papel de Debret em capturar um país em formação após a concretização da independência.
Leenhardt defende que Debret se esforçou em representar “os verdadeiros atores da história emergente do Brasil, a saber, os trabalhadores que produzem as riquezas do país”.
Essa avaliação se contrapõe à imagem de que o retratista teria servido apenas aos detentores do poder na época.
Em entrevista à BBC News Brasil, o autor diz que Debret foi influenciado pelo iluminismo e pela Revolução Francesa, “convencido da igualdade dos seres humanos”.
Segundo Leenhardt, o pintor condenava o tráfico de pessoas e compartilhava a ideia de que a abolição deveria ser preparada para garantir a integração dos ex-escravos à sociedade.
“Podemos ver traços de um certo paternalismo [de Debret] ligado aos preconceitos raciais da época. Por outro lado, Debret critica sem reservas a violência perpetrada contra as populações indígenas e que marcaram as relações raciais no Brasil colonial escravocrata.”
As relações socieconômicas entre as várias populações daqueles tempos também entraram na mira de Debret. É o caso de Loja de Barbeiro (veja abaixo), em que o artista contrasta — e explicita isso no comentário que acompanha o desenho — a atitude de portugueses e negros em relação ao trabalho.
“A loja vizinha [à residência do branco dorminhoco] é ocupada por dois negros livres. Antigos escravos de ofício, de boa conduta e econômicos, conseguiram comprar sua alforria (…). Quem com efeito ousaria dizer-se mais digno de consideração pública que este ofício de barbeiro brasileiro”, diz o comentário.
Lenhardt escreve que Debret “estigmatiza com método a preguiça dos colonos portugueses” — muitos dos quais viviam apenas à custa do dia de trabalho dos seus escravos pelas ruas do Rio.
Um grande fracasso
Ao longos dos 15 anos de residência no Rio de Janeiro como capital imperial, Debret fez mais de 800 trabalhos — entre os quais foram selecionados 152 para as pranchas litografadas do seu Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, livro publicado em Paris entre 1834 e 1839.
Apesar do interesse europeu pelo “exotismo do Novo Mundo” apresentado por um grande número de viajantes e aventureiros da época, a coleção de Debret naufragou entre o público.
O livro do pintor alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858), publicado pela mesma editora de Paris, teve, por sua vez, muito mais repercussão e sucesso — embora sua precisão como tradução da realidade do continente americano fosse contestada por botânicos e outros especialistas.
Leenhardt credita parte do fiasco de popularidade de Debret à opção de mostrar cenas barra-pesada do Brasil em vez de apresentar índios com artefatos vistosos com o objetivo de saciar a demanda do leitor europeu por “exotismo”.
Em vez disso, trabalhos como Selvagens Civilizados, Soldados Índios de Curitiba Conduzindo Prisioneiros (ver abaixo) mostram mães indígenas sendo trazidas com seus filhos para trabalhar como escravizadas nas cidades após os maridos terem sido assassinados nas aldeias de origem — devassadas.
Essas situações são explicadas em comentários de canto de página de Debret, os quais formam o pouco que se pode depreender das impressões do pintor (em palavras) sobre o Brasil — não ficaram um diário ou qualquer troca de correspondências.
Em algumas oportunidades, essa brutalidade dos quadros de Debret representou um constrangimento para autoridades brasileiras.
Em 1840, a Comissão do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro vetou o tema da coleção sobre escravidão sob a justificativa de apresentar corpos esqueléticos e torturadores sádicos: “Pode ser que o sr. Debret tenha assistido a um tal castigo, com efeito existem por toda parte feitores bárbaros: porém isso não é senão um abuso”.
Assim, Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil desapareceu da vista do público até, na década de 1920, o antropólogo Sérgio Milliet traduzir o trabalho para o português.
Com uma mudança de mentalidade, o pintor francês passa nas décadas seguintes a ser reconhecido como uma das fontes documentais essenciais sobre o primeiro império brasileiro.
Mas ao longo do tempo, houve também interpretações de que o retratista ou a arte em si de alguma forma apoiassem os atos representados na tela.
“Gê Viana, uma das artistas cujas revisões críticas das imagens de Debret estou estudando, fala sobre como ficou chocada com o fato de que os livros didáticos de história nos quais ela descobriu as imagens de Debret não ofereciam nenhuma explicação ou contextualização dessas imagens violentas”, afirma Leenhardt.
Ele fala na necessidade de contextualizar histórica e socialmente a obra de Debret.
“É fácil entender por que isso a perturbou, e é vital que as novas gerações de artistas confrontem essas imagens e ofereçam estratégias para lê-las hoje. Não é menos importante que todo esse trabalho de retomada seja acompanhado de uma reflexão sobre a evolução das sensibilidades e concepções políticas e filosóficas.”
Além de Gê Viana, Leenhardt analisa no livro releituras feitas por Denilson Baniwa, Isabel Löfgren, Patricia Gouvêa, Heberth Sobral, entre outros “artistas brasileiros contemporâneos que se referenciam e subvertem as imagens de Debret”.
“É um movimento de reapropriação absolutamente essencial, uma contribuição importante para uma questão incômoda ao longo da história intelectual e política brasileira: quem somos nós como nação? Acho que é muito útil e benéfico para uma nova geração de artistas se posicionar sobre as imagens que lhes foram legadas”, afirma o franco-suíço.
Refletir sobre a obra de Debret à luz do entendimento atual da história brasileira pode ser um bom exercício, diz Leenhardt.
“Assim, veremos não apenas sua ambivalência e contradições, mas também a extensão da poderosa ironia que ele usou como uma arma impiedosa contra os poderosos da época.”
“Suas descrições das cenas que adornam suas placas litografadas são muitas vezes verdadeiros contos, em apenas algumas páginas, uma espécie de ‘fisionomia’ no estilo de Balzac que ridiculariza os costumes de sua época”, completa.
Veja em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4nyjggvgy4o
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