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Judith Butler: Quem tem medo do gênero?

O fantasma, agitado pelo fascismo, virou álibi para restaurar a hierarquia patriarcal e destruir quem busca viver em liberdade. A tarefa é enfrentar o sadismo moral disfarçado de moralidade, por meio de uma visão ética e política transformadora

Por: Judith Butlher | Imagem: Aliza Nisenbaum

O gênero faz parte do feminismo há muitas décadas. Quando nós, feministas, levantamos a questão “O que é uma mulher?”, estamos reconhecendo desde o início que o significado dessa categoria permanece incerto e até enigmático. O gênero é, em uma definição mínima, a rubrica sob a qual consideramos as mudanças na forma como homens, mulheres e outras categorias afins têm sido compreendidas. Por isso, quando levantamos questões sobre homens, mulheres ou categorias de gênero que se afastam do binário, ou quando perguntamos sobre o que acontece no espaço entre essas categorias, estamos nos envolvendo em uma investigação sobre gênero. A pergunta “O que é uma mulher?” ou a questão psicanalítica “O que quer uma mulher?” foram levantadas e comentadas de tantas maneiras que, em algum momento, simplesmente aceitamos que essa categoria é aberta, sujeita a interpretação e discussão perpétuas, tanto na academia quanto no discurso público.

Quando os direitos ligados ao aborto são restringidos pelos governos porque as mulheres, dizem, não deveriam poder exercer esse tipo de liberdade, as mulheres estão sendo definidas e privadas de uma liberdade fundamental. Não se trata apenas de definir que as mulheres não devem ter essa liberdade, e sim que o Estado decida os limites da liberdade delas. Sujeitas a tais restrições, as mulheres são definidas como aquelas cuja liberdade deve ser limitada pelo Estado. As pessoas que afirmam saber o lugar que as mulheres devem ocupar na vida social e política aderem a uma teoria de gênero muito específica. Elas não se opõem ao gênero – elas têm em mente uma ordem de gênero rigorosa e desejam impô-la ao mundo. Buscam restaurar e consolidar um sonho patriarcal de binarismos de gênero estabelecidos e hierárquicos, uma ordem que só pode ser alcançada destruindo – ou tentando destruir – a vida de outras pessoas. A destruição se torna, assim, paradoxalmente, condição de possibilidade de uma ordem patriarcal sexual e de gênero que tenta repelir a perspectiva do poder “destrutivo” do gênero. Em vez de evitar a destruição, o movimento contra a ideologia de gênero se dedica a criar um mundo cada vez mais destrutivo.

É tentador procurar expor e puncionar essa caricatura inflamada do gênero por meio de um exercício intelectual. Como profissional da educação, minha tendência é dizer: “Vamos ler juntos alguns textos-chave dos estudos de gênero e ver o que gênero significa e o que não significa, e se a caricatura se sustenta”. Com isso, esperaríamos esvaziar o fantasma exagerado pondo-o à prova com os próprios textos em que o gênero é discutido e as políticas públicas correntes em que o termo é usado. Infelizmente, essa estratégia raramente funciona. Defensores da posição antigênero (aquelas pessoas que interpretam o gênero como uma “ideologia”) consideram que devem acabar com o gênero – o campo, o conceito, a realidade social – precisamente porque não se dispõem a ler os estudos sobre gênero a que se opõem, recusando-se, às vezes por uma questão de princípios, a se empenhar em formas fundamentadas de crítica. Seu anti-intelectualismo, sua desconfiança em relação à academia, é ao mesmo tempo uma recusa a participar do debate público. O que repudiam como procedimento “acadêmico” é, na realidade, algo necessário para as deliberações públicas informadas nas democracias. O debate público informado torna-se impossível quando algumas das partes se recusam a ler o material em disputa. A leitura não é apenas um passatempo ou um luxo, mas uma precondição da vida democrática, uma das práticas que mantêm o debate e a discordância embasados, focados e produtivos.

Além disso, defensores da posição antigênero estão amplamente empenhados em não ler criticamente porque imaginam que a leitura os exporia – ou submeteria – a uma doutrina contra a qual, desde o início, apresentaram objeções. Eles imaginam que foram acadêmicos especialistas em estudos de gênero, e não eles mesmos, que proclamaram lealdade a uma ideologia ou um dogma e, com isso, participam de uma forma acrítica de pensamento e ação que os une como grupo e os coloca contra seus oponentes. Tal maneira de imaginar a leitura crítica, ou o pensamento crítico, apoia-se em uma inversão de posições e na exteriorização do papel que o crítico de gênero realmente ocupa – é uma importante forma de deslocamento fantasmático.

Para os críticos religiosos que alegam basear sua oposição ao gênero em fundamentos bíblicos, o único livro que vale a pena ler sobre o assunto é a própria Bíblia. Ler de maneira acadêmica, quanto mais criticamente, é admitir que pode haver outros pontos de vista além daqueles encontrados nas escrituras ou propostos por líderes religiosos. Certa vez, uma mulher na Suíça aproximou-se de mim depois que dei uma palestra e disse: “Eu rezo por você”. Perguntei por quê. Ela explicou que a escritura diz que Deus criou o homem e a mulher, e que eu, por meio de meus livros, negava a escritura. Ela acrescentou que macho e fêmea são naturais e que a natureza era uma criação de Deus. Comentei que a natureza admite complexidade e que a própria Bíblia está aberta a algumas interpretações diferentes, e ela caçoou. Então, perguntei se ela havia lido alguma obra minha, e ela respondeu: “Não! Eu nunca leria um livro desses!”. Foi aí que percebi que, para ela, ler um livro sobre gênero seria tratar com o diabo. A visão dela repercute a exigência de tirar os livros sobre gênero da sala de aula e o medo de que quem ler esses livros se contamine por eles ou passe por uma doutrinação ideológica, ainda que as pessoas que buscam restringir esses livros em geral nunca os tenham lido.

Opositores do gênero retratam defensores do gênero como dogmáticos, ou alegam que temos uma postura crítica em relação à autoridade deles, mas nunca às nossas próprias crenças. No entanto, os estudos de gênero são um campo diversificado, marcado por debate interno e várias metodologias, sem um quadro referencial único. A lógica implícita aqui parece ser: se meus oponentes lerem da forma como eu leio, e se a leitura é a submissão à autoridade de um texto (ou conjunto de textos) considerado autorizado e unificado em sua mensagem, então os críticos do gênero são como os críticos cristãos conservadores, mas cada um se submete a um dogma diferente. Disso resulta que os críticos do gênero imaginam que seus oponentes leem a teoria de gênero como eles próprios leem a Bíblia, ou que aceitam cegamente os pronunciamentos de suas autoridades preferidas. Em sua imaginação exaltada, a teoria de gênero se baseia em textos equivocados escritos por falsas autoridades, muitas vezes intangíveis, que exercem um poder rival e paralelo à autoridade bíblica e impõem um tipo semelhante de submissão a suas alegações.

Aparentemente, então, o gênero é interpretado como uma “ideologia” porque as pessoas que leem livros sobre gênero são ostensivamente submetidas a seus dogmas e não pensam de forma independente ou crítica. A oposição à inclusão de livros sobre gênero nas escolas e universidades, os novos esforços para expurgar tais temas dos currículos, assentam-se em certa desconfiança em relação à leitura e à capacidade dela de abrir a mente para novas possibilidades1.

Por um lado, a mente não deve estar aberta a repensar como a sexualidade ou o gênero são organizados socialmente, ou como nos referimos às pessoas em um sentido mais amplo. Ao que parece, a mente deve permanecer fechada a esse respeito. Por outro lado, a mente deve ser mantida livre de ideólogos que, aparentemente, se empenhariam em esforços de recrutamento, em formas nefastas de sedução ou até mesmo em lavagem cerebral. Não importa que as salas de aula nas quais o gênero é ensinado estejam tomadas por debates apaixonados; que diferentes escolas, métodos e teorias entrem em conflito; e que um grande número de especialistas em gênero recorra ecleticamente a diferentes legados intelectuais formulados em diferentes idiomas. O gênero é tachado de “ideologia”, uma forma de saber falsa e unívoca que capturou a mente de quem atua dentro de seus parâmetros – ou mesmo de pessoas que foram apenas momentaneamente expostas a seu funcionamento. No entanto, a alegação de que o gênero é uma ideologia reflete o próprio fenômeno que ela condena, pois o “gênero” se torna não apenas um monólito, mas um monólito de enorme poder – uma jogada ideológica por excelência. Subentende-se que esse monólito itinerante captura a mente de várias maneiras, exerce uma força sedutora, doutrina ou converte quem está sob seu poder, invade fronteiras, arruína a própria condição humana. Será que essa é mesmo uma descrição dos estudos de gênero ou apenas a imagem espelhada de uma forma de ortodoxia religiosa que projetou seu próprio mecanismo sobre o gênero, apresentando-o como uma ortodoxia rival?

É quase impossível superar esse fosso epistêmico com bons argumentos, dado o medo de que a leitura introduza confusão na mente de quem lê ou a coloque em contato direto com o diabo. De fato, algumas das pessoas que se opõem ao “gênero” não leem livros sobre gênero, estudos feministas, queer ou trans, crítica queer racializada, feminismo negro ou qualquer versão da teoria de raça. Eles são céticos em relação à academia por temerem que os debates intelectuais os confundam quanto aos valores que defendem. No entanto, sua recusa a se importarem com a consistência, a basearem suas críticas na leitura do texto, sua maneira de arrebatar frases para transformá-las em para-raios, tudo isso acaba sendo uma recusa a pensar criticamente – ou seja, a, no mínimo, exercer a liberdade de pensamento para revolver uma questão e examinar seus pressupostos, limites e potencialidades. Quando essa liberdade é negada, também é negada a contribuição fundamental que a universidade e o pensamento crítico dão ao debate público, no qual considerar as diferentes dimensões de uma questão complexa é crucial para adquirir conhecimento2. Declarar-se “crítica ao gênero” é, portanto, usar um termo equivocado, como o fazem algumas feministas que estabelecem alianças implícitas ou explícitas com a oposição de direita ao gênero. Seus pontos de vista são enfaticamente reprováveis não apenas porque reduzem o “gênero” a uma única versão caricatural de uma realidade complexa, mas porque não compreendem o que uma posição “crítica” implica. A crítica ocupa-se de problemas e textos que são importantes para entendermos como e por que funcionam, para deixá-los viver em pensamento e prática em novas constelações, para questionar o que tomamos corriqueiramente como um pressuposto fixo da realidade, a fim de afirmar um sentido dinâmico e vivo do nosso mundo. Infelizmente, os esforços para eliminar os estudos de gênero dos currículos educacionais apresentam o “gênero” não como uma “categoria útil de análise”, no sentido da formulação de Joan W. Scott3, mas como um fantasma de poder destrutivo que precisa ser eliminado.

Os debates sobre como pensar sobre gênero definem mais prontamente o discurso atual sobre gênero em uma ampla gama de campos acadêmicos e de formulação de políticas do que em qualquer teoria. Esses debates impulsionam a pesquisa e o discurso público a se tornarem mais responsivos a realidades sociais cada vez mais complexas. Recusar o gênero é, infelizmente, recusar o encontro com essa complexidade; em outras palavras, é recusar-se a deixar que seu pensamento seja transformado pela complexidade encontrada na vida contemporânea em todo o mundo.

E, no entanto, o monólito do gênero, aparentemente enorme em tamanho e poder, persiste entre aqueles que utilizam sua temeridade fantasmática no sentido de mobilizar as massas para que estas apoiem poderes estatais mais fortes. Ao que parece, pouco importa que o movimento contra a ideologia de gênero tenha como alvo uma versão do gênero que não é endossada por ninguém que se dedique à teoria de gênero4. Essa recusa dos críticos do gênero em ler os textos aos quais se opõem – ou em aprender a melhor forma de lê-los – só faz sentido se a leitura for considerada um exercício acrítico. E se o que essas pessoas defendem é uma leitura ou recepção acrítica dos textos que consideram autorizados, são elas mesmas que ilustram de forma mais pura o que é apropriadamente chamado de posição ideológica ou dogmática, ou seja, aquela que rechaça perguntas, contestações e um espírito investigativo aberto. Essa atitude faz parte da tendência mais ampla do anti-intelectualismo, marcada pela hostilidade a todas as formas de pensamento crítico.

A mesma atitude circula amplamente na oposição pública à “teoria crítica da raça”. Em uma palestra no Claremont Institute, na Califórnia, um think tank conservador, Christopher Rufo protestou contra a teoria crítica da raça, mas, quando instado a explicar o que é teoria crítica da raça, ele hesitou e se recusou, dizendo: “Não dou a mínima para essas coisas”. Rufo, ex-professor visitante da Heritage Foundation5, se recusa a ler ou estudar o campo acadêmico contra o qual travou uma guerra cultural que incluiu um ataque à “teoria queer”, a qual, segundo ele, consiste em “aulas sobre ‘liberação sexual’, ‘exploração de gênero’, ‘BDSM’, ‘como ser profissional do sexo’ […] e ‘atividade sexual acompanhada do uso de drogas lícitas e ilícitas’”6 . Será que ele frequentou essas aulas? Estudou tais currículos? Se ele fosse aluno de alguma dessas turmas, seus professores sem dúvida lhe pediriam que sustentasse seu argumento com evidências ou uma boa leitura, pois são esses os protocolos que, de fato, ensinamos. Como a mulher suíça que se dirigiu rapidamente para a porta depois de confessar que nunca tocaria em um livro sobre gênero, Rufo declara descaradamente sua ignorância sobre um campo que, mesmo assim, está disposto a condenar.

Podemos ficar tentados a concluir que a tarefa é tornar nossos inimigos mais inteligentes, pedir-lhes que leiam e discutam, mas isso não vem ao caso. Como oponentes do gênero e da teoria crítica da raça, esses grupos também se opõem às universidades não porque elas ensinam um dogma ostensivo, mas porque se arriscam a produzir uma mente aberta. Como um projeto que bloqueia o tipo de pensamento crítico que contesta o status quo heteronormativo, o movimento antigênero é uma forma politicamente importante do anti-intelectualismo, que combate o pensamento como um perigo para a sociedade – solo fértil para a horrenda colaboração entre paixões fascistas e regimes autoritários.

Minha tarefa aqui não é nem propor uma nova teoria de gênero nem defender ou reconsiderar a teoria performativa que apresentei há quase 35 anos e que agora parece, em vários aspectos, claramente questionável, em especial à luz das críticas trans e materialistas7. Espero apenas refutar algumas falsidades no processo e entender como e por que essas falsidades em torno do “gênero” estão circulando com tal força fantasmática. A que poderes essas falsidades servem e como podem ser combatidas? Aliás, se eu pudesse dar uma explicação única e persuasiva do gênero para demonstrar a falsidade daquilo que a crítica de direita, e parte de suas aliadas feministas e positivistas, têm a dizer sobre o tema, teria uma tarefa mais fácil do que a que tenho em mãos. A verdade, como sempre, é mais complexa, o que exige uma leitura crítica e o compromisso de combater os fantasmas psicossociais que têm o poder de amedrontar as pessoas e mobilizá-las a favor não apenas de causas ultraconservadoras, mas de figuras autoritárias que surfam na onda das tendências neofascistas na sociedade e na política contemporâneas. Minha esperança é mostrar que abrir a discussão sobre gênero para um debate ponderado demonstrará seu valor como categoria e nos ajudará a explicar como, quando considerado um problema de corporificação na vida social, o gênero pode ser espaço de ansiedade, prazer, fantasia e até terror.

Sejamos claros: segundo os oponentes de direita, os fatos tal como eles os apresentam respaldam o caráter exclusivamente heterossexual do casamento; a negação generalizada da realidade das pessoas trans, intersexo e não binárias, bem como a recusa de seus direitos básicos; a negação da história racial e colonial do dimorfismo de gênero; e a afirmação do Estado como executor legítimo da restrição às liberdades reprodutivas de todas as pessoas que podem engravidar. Será que os fatos sustentam as posições políticas? Ou a posição política está mobilizando alguns fatos em detrimento de outros – um positivismo seletivo, cujo princípio de seleção dos fatos em questão permanece oculto? Dizer que um princípio de seleção está em funcionamento não é o mesmo que dizer que todos os fatos são inventados. No entanto, sugere que os fatos podem ser enquadrados com um propósito, e o propósito é alcançado com mais eficácia se a moldura estiver oculta

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Como contestar uma fantasia psicossocial que reúne tantas ansiedades, move-se em tantas direções e aparentemente exerce poderes tão extraordinários de destruição? E como combatê-la, quando ela está se movendo tão depressa em suas formas cambiantes e contraditórias?

Ao perguntar quem tem medo de gênero, também pergunto quem tem medo de quê e como compreender melhor o temor resultante e seus efeitos políticos. Quem ou o que está realmente exercendo poderes destrutivos? Afinal, vivemos em uma época na qual uma miríade de atos de anulação, patologização, criminalização e deslegitimação buscam destruir liberdades e poderes que os movimentos sociais de esquerda lutam há décadas para consolidar. Vidas e meios de subsistência estão sendo atacados; a identidade trans está sendo anulada; mulheres e outras pessoas grávidas estão regressando aos becos para conseguir procedimentos cirúrgicos; os direitos ao casamento e à parentalidade para gays e lésbicas estão sendo questionados ou, às vezes, claramente recusados; jovens trans não conseguem encontrar assistência médica ou uma comunidade em lugares onde a transfobia se tornou política pública ou lei; aulas de educação sexual são canceladas e difamadas para uma juventude que tem o direito a compreender, de forma bem-informada, o gênero e a sexualidade, a aprender sobre consentimento e ética sexual em um sentido mais amplo.

Como outros movimentos de direita de nossa época, o movimento antigênero tomou emprestada a linguagem da esquerda, incluindo “ideologia”, um termo que pertence a Marx e ao marxismo. Esses movimentos não consideram qual teoria da ideologia estão usando. Mas somos livres para reconsiderar essa história com o objetivo de fazer algumas distinções mais firmes que podem ajudar a compreender o movimento antigênero como parte do fascismo. Consideremos a obra de Karl Mannheim, cujo Ideologia e utopia8 teve sua primeira publicação em inglês em 1936, mas foi lançado em alemão em 1929, antes do advento do regime hitlerista. O livro analisou se o fascismo poderia ser entendido como uma ideologia que emergia do capitalismo, procurando examinar as origens inconscientes de ficções mentais que negam a natureza real da sociedade. Dado que, segundo Mannheim, as ideologias trabalham para, diante de instabilidades, preservar as ordens sociais existentes – ou preservar a ideia de uma ordem social anterior –, elas podem ser combatidas por utopias, que ativam certos potenciais dentro da sociedade para promover um imaginário coletivo de transformação. O fascismo era uma ideologia porque procurava restabelecer o nacionalismo e as hierarquias racistas, baseando-se em ordens sociais mais antigas a fim de deter, subjugar à força, atacar, matar e expulsar comunistas, judeus, ciganos, pessoas com deficiência, gays, lésbicas e doentes. Mannheim argumentou que o ataque fascista às chamadas “ideias perigosas” associou esse perigo às perspectivas de transformação social. Em nome da manutenção do status quo ou do retorno a um passado idealizado, os fascistas impugnam os movimentos sociais e políticos que tentam expandir nossos compromissos fundamentais com a liberdade e a igualdade. O passado idealizado aparece na convocação do movimento contra a ideologia de gênero pela restauração de uma ordem patriarcal em nome da família, do casamento e do parentesco, incluindo proscrições às liberdades reprodutivas, à autodeterminação de gênero e à assistência médica para pessoas LGBTQIA+. Em cada um desses casos, eles priorizam um passado imaginado em detrimento de um futuro potencial de maior igualdade e liberdade. Dessa forma, a ideologia tem como alvo a imaginação radical, identificando-a com perigos sociais difusos e corrosivos. O ataque às “ideias perigosas” é, portanto, não apenas uma resistência aos potenciais da democracia radical que emergem até nos piores momentos, mas um esforço para desfazer a realidade presente em prol da reconstrução e restauração de um passado imaginário no qual reina a hierarquia de gênero. Sem dúvida seria mais fácil lutar se o oponente estivesse interessado apenas em manter o status quo, mas os projetos de restauração são mais ambiciosos e destrutivos.

A teoria de Mannheim certamente está datada. Seus pontos de vista foram criticados por sua forma particular de idealismo e também por sua sugestão de que a superação da ideologia exigia abrir mão de todos os absolutos. Mesmo assim, parece significativo, hoje, que ele pudesse imaginar uma utopia com o poder de fazer frente à força da ideologia fascista emergente na década de 1930. Para Mannheim, conceber um futuro que desmantelasse a ideologia presumiria que certo tipo de imaginação era possível, ainda que seus potenciais não pudessem ser totalmente determinados de antemão. Poderíamos ter a esperança de que ideais “irrealistas”, distintos de uma versão lacaniana do imaginário, continuassem a ser regenerados por movimentos sociais que lutam contra a violência, a desigualdade social e econômica e a injustiça. Essa forma de “irrealismo” se mostra necessária para os movimentos sociais que recusam o caminho da realpolitik e são fortes o suficiente para resistir à acusação de idealismo inócuo. De fato, ainda fazemos a pergunta de Mannheim: como um contraimaginário poderia dissipar o domínio da ideologia exemplificado por quem acusa o gênero de ser, ele mesmo, uma ideologia? Tal caminho consciente e coletivo é necessariamente um conceito idealista. Mas será que poderia vir a ser um ideal incorporado por movimentos sociais embrenhados na luta contra o fascismo emergente em nosso tempo?

Marx e Engels advertiram que “não se parte daquilo que as pessoas dizem, imaginam ou representam, tampouco das pessoas pensadas, imaginadas e representadas para, a partir daí, chegar às pessoas de carne e osso; parte-se das pessoas realmente ativas e, a partir de seu processo de vida real, expõe-se também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida”9. Eles escrevem ainda: “Também as formações nebulosas na cabeça das pessoas são sublimações necessárias de seu processo de vida material”. Em outras palavras, a alegação de que o gênero é ideológico é sua própria formação ideológica, composta por um conjunto próprio de crenças, incluindo um “ataque” a uma formulação nebulosa que essas pessoas tomam como real, muito embora ela tendo emergido, digamos, de seus próprios cérebros. As formulações nebulosas de Marx se aliam, portanto, à minha noção de “fantasma” influenciada por Laplanche. Pode-se dizer que o ataque à família que a direita imagina estar em curso justifica seu próprio ataque aos estudos de gênero, aos direitos reprodutivos, ao casamento homoafetivo, aos direitos trans e a políticas e leis que combatem a violência de gênero. Se o ataque avança sobre eles, então eles estão defendendo a si mesmos, a seus valores ou a sua noção do que deveriam ser a família, a nação, o homem, a mulher e a civilização. Mas talvez esse ataque que eles veem avançar em sua direção ou se infiltrar em seus mundos culturais já seja uma projeção, carregando e lançando de volta sobre eles o traço agravado de sua própria agressão. Embora o gênero seja muitas vezes injustamente caricaturado como algo inventado, um artifício, uma notícia falsa, uma mentira, algo forjado na linguagem e que só existe nela, quem parece temer profundamente o poder da linguagem são os próprios críticos de direita. A palavra “gênero”, ao que tudo indica, enfeitiça, exerce um encantamento, e, por isso, tudo que se associa a ela deve ser desencantado, dissipado.

Este livro apresenta alguns argumentos que se contrapõem ao movimento contra a ideologia de gênero, mas este não pode ser seu objetivo principal. Não é possível reconstruir por inteiro os argumentos usados pelo movimento contra a ideologia de gênero porque eles não se atêm a padrões de consistência ou coerência. O que eles fazem é agregar e disparar afirmações incendiárias a fim de derrotar o que enxergam como “ideologia de gênero” ou “estudos de gênero” por qualquer meio retórico que julgarem necessário. A tarefa não é simplesmente expor seu ardil usando habilidades analíticas mais apuradas, rastrear suas estratégias e provar que estão erradas. A tarefa é ajudar a produzir um mundo no qual possamos nos movimentar, respirar e amar sem medo da violência, com a esperança radical e irrealista de um mundo que não seja mais regido pelo sadismo moral disfarçado de moralidade. Em outras palavras, a resposta deve produzir uma visão ética e política convincente, que exponha e se oponha à crueldade e à destruição em circulação. O fantasma do gênero como uma força destrutiva torna-se o álibi quase moral para desencadear a destruição de todas as pessoas que buscam viver e respirar em liberdade. Assumir uma posição em prol de respirar e viver livres do medo da violência é o princípio da visão ética de que necessitamos agora.

Para se opor ao movimento contra a ideologia de gênero, necessitamos de coalizões transnacionais que reúnam e mobilizem todas aquelas pessoas que ele definiu como alvo. As lutas mutuamente mortíferas no interior do campo devem se tornar diálogos e confrontos dinâmicos e produtivos, por mais difíceis que sejam, dentro de um movimento expansivo dedicado à igualdade e à justiça, à preservação e afirmação de liberdades e poderes sem os quais a vida é invivível e a política, injusta. Coalizões nunca são fáceis. Envolvem encontros antagônicos e podem ser destruídas por crueldades mutuamente mortíferas10. E, nos pontos em que os conflitos não puderem ser resolvidos, os movimentos ainda podem avançar juntos tendo o olhar voltado para as fontes comuns de opressão. As coalizões não exigem amor mútuo; elas exigem uma visão compartilhada de que as forças opressivas podem ser derrotadas por meio da ação conjunta e do avanço em meio às diferenças difíceis, sem insistir em dar a estas últimas uma solução definitiva.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/feminismos/judith-butler-quem-tem-medo-do-genero/

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