Queda da popularidade de Lula é sintomática. Acuado pelo centrão, ele insiste na despolarização, sem oferecer novos horizontes. Mas a reconstrução do país não virá sem enfrentar a velha política. Estimular a cidadania ativa e mídias democráticas são essenciais
Por: Cândido Grzybowski | Crédito Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado
Volto a uma questão central em minhas análises e reflexões sobre a democracia de baixa intensidade que temos. A conjuntura política atual me impõe tal questão. No início do governo Lula 3 levantei a hipótese do desencurralamento da democracia brasileira como um necessidade e uma possibilidade, desde que… houvesse tal objetivo estratégico e vontade política. Mas parece que estamos mais patinando do que avançando com determinação no enfrentamento de uma questão central para sonharmos com uma democracia ecossocial transformadora, em busca de direitos de igualdade na diversidade, como forma de cuidar de gente e da natureza.[i]
Já se foram um ano e alguns meses do Lula 3 e até agora não vejo sinais de desencurralamento a partir do Poder Executivo, que recebeu nosso voto vitorioso na última eleição. As maiores novidades ainda continuam sendo produzidas pelo Poder Judiciário, num lento mas virtuoso processo institucional, que cabe a ele mesmo, de desmonte e condenação dos responsáveis pela trama criminosa de golpe que vinha sendo armado desde o Palácio do Planalto, pelo governo da extrema direita. Seu papel é este mesmo, dentro da institucionalidade democrática. Mas isto tudo é pouco diante dos desafios que temos para voltar a acreditar e sonhar que “outro Brasil é possível”. Retomada de políticas sociais, praticadas no período dos governos petistas de 2003-2016, vem se mostrando importante, mas por si só é pobre para a reconstrução democrática necessária. Precisamos, sobretudo, voltar a pensar e construir estrategicamente um projeto de país de democracia viva, que supõe disputar e conquistar hegemonia democrática desde o chão da sociedade. Lamentavelmente, tal tarefa é adiada, em nome da governabilidade. É isto que queremos? Ficar patinando e se contentando com pequenos avanços aqui e ali? Deixar a extrema direta definir a agenda e o quanto dá ou não dá para avançar? Isto não é ter um projeto democrático!
Será que o governo Lula tem alguma estratégia para romper com o que nunca foi rompido politicamente e que impede a democracia brasileira de avançar? Afinal, se houve o golpe de 2016 e depois a derrota eleitoral, em 2018, e um governo de extrema direita com uma agenda autoritária e fascista entre 2019-2022 é porque nossa democracia ainda não conseguiu extirpar o câncer destrutivo que vem lá da ditadura. Os grandes avanços na Constituição de 1988 não foram capazes de impedir a “conciliação de interesses e forças” como regra institucional de governabilidade. Ela se manifesta no imaginário politicamente fraco, que não nos permite avançar em “memória, verdade e reparação”, no controle democrático das Forças Armadas, portanto na segurança cidadã, nem num elemento fundamental que é ter um Congresso Nacional com um genuína representação da diversidade do que somos como povo e nação.
Propor o “avançar com calma” é não romper o encurralamento da democracia. Pior do que isto, é não ter perspectiva de real mudança. Evitar o enfrentamento político somente com composições caso a caso, cedendo sempre aqui e lá, em votações no Congresso é se entregando ao poder do Centrão conciliador, “das bancadas do agronegócio, da mineração, da bíblia e da bala”, não é uma estratégia de desmonte do mal antidemocrático. Pequenos avanços combinados com concessões só são vantajosos para a estratégia da extrema direita e suas bases, contando com o Centrão fisiológico em seu apoio. Isto é um sinal desmobilizador, que não nos incentiva a participar para romper correlações de forças na intensidade e determinação necessárias, sabendo que temos as estratégicas eleições municipais deste ano, nos territórios locais em que vivemos todas e todos.
Sem dúvida, como cidadanias ativas não estamos fazendo a nossa parte, pois também estamos encurralados e nem sabemos onde e como incidir a partir do chão da sociedade. Queremos desencurralar o governo e livrá-lo das artimanhas que diariamente lhe são impostas para governar, mas precisamos de sinalizações de rumos possíveis. Nossas lideranças de movimentos sociais e de partidos de esquerda parecem estar esperando por algo, quando deveriam assumir seu papel com mais vontade e garra. A disputa de ideias está como que adiada, apesar do pipocar de iniciativas as mais diversas entre nós mesmos, porém sem maior impacto no seio da sociedade civil. O imaginário caldo de visões, análises e ideias, criado pela difusão sistemática de fake news, articulada pela extrema direita através de redes sociais, penetra no cotidiano de grandes contingentes da população. Estamos diante de um desafio estratégico, que não é fazer o mesmo de nosso lado, mas fazer com responsabilidade, criatividade e determinação a disputa de ideias e propostas.
O fato objetivo é que não vemos sinais e nem sentimos vontade por parte de nossos representantes lá na esfera do poder estatal em relação a tal questão estratégica. Creio que os setores mais organizados das redes de cidadanias ativas concordam comigo de que não foram abertos verdadeiros canais de comunicação, participação social e diálogo virtuoso para nos mobilizar nas ruas em torno a propostas que valham a pena. Não existem dúvidas, na minha análise, sobre o quão fundamental que foi a vitória eleitoral de 2022. Mas o 8 de janeiro de 2023 mostrou a cruel realidade política polarizada que temos. E o que nos é passado pela estratégia governamental é para ter paciência… que os bons resultados virão… algum dia. Virão mesmo?
Celebrar algo aqui e lá é não ter estratégia de enfrentamento da disputa de propostas e de políticas para a nossa democracia encurralada há muito tempo. O trabalho político fundamental está longe de se limitar às necessárias negociações democráticas no Congresso, que é parte da institucionalidade, mas não é espaço de monopólio da política capaz de fazer avançar as coisas. A disputa democrática para valer se faz no chão da sociedade e não lá no Planalto!
O que está sendo produzido e comunicado pelo governo Lula não está sendo no tamanho e na direção necessária. Os índices de aprovação do governo, em baixa, demonstram muito bem que algo fundamental não está funcionando. Fazer bom discurso lá fora ajuda e aumenta nossa autoestima, mas… não desencurrala a democracia aqui dentro. Também pouco ou nada ajuda a mera retomada de boas políticas, sem um verdadeiro desmonte das ruins e, sobretudo, sem inovações e novos horizontes. Pior de tudo, ficamos de fora e não temos nenhum sinal virtuoso no desmonte do cruel arcabouço fiscal feito sob medida para a “convivência” com o parasitário financismo dos 1% de especuladores, a maior demonstração que continuamos com uma agenda neoliberal antidemocrática, limitante fundamental para avanços em mudanças econômicas democraticamente necessárias.
A sensação que está no ar é que a estratégia do governo Lula 3 é mais de composição com o Congresso e menos de composição com a cidadania que o elegeu e que precisa ser alargada, para realmente evitar que a extrema direita volte. Temos um inimigo claro a enfrentar para poder avançar com uma democracia ecossocial capaz de realizar transformações: o bloco da direita autoritária, sua estratégia e seus apoios fortes entre empresários e até no meio popular, sobretudo pela estratégia das igrejas de teologia do empreendedorismo e sucesso individual. Apostar numa estratégia de “desmonte da polarização” escancarada na sociedade e no ambiente político é deixar uma avenida aberta para a direita antidemocrática e suas agressivas estratégias de comunicação, com muitas inverdades, mas eficazes na construção do ambiente político, como nos lembra o Altman. [ii]
Uma questão intrigante é já ter passado quase um terço do mandato de Lula 3 e ainda não termos retomado e renovado um pacto amplo entre as forças políticas democráticas com mandatos, as lideranças partidárias, especialmente da esquerda, mas também muitas do centro democrático. Temos necessidade de um potente projeto inspirador para o Brasil. Mas projeto que precisa reconhecer o fundamental papel das cidadania ativas, suas redes e fóruns, verdadeiros celeiros de iniciativas e ideias, com elaboração e disputa de propostas. São as cidadanias ativas organizadas que se articulam virtuosamente com expressões territoriais e locais, nas cidades, periferias, campos, rios e matas. Um potente projeto de democracia só poderá ser inspirador e mobilizador se valorizar a vibrante diversidade e potencialidade das milhares de iniciativas territoriais locais, no enfrentamento das questões cotidianas, onde a vida real se faz. Afinal, penso que concordamos que a democracia que queremos precisa cuidar de gente e da natureza, como sua razão de ser.
Mas voltando ao mal-estar com a perigosa continuidade do encurralamento da democracia, como defino, não podemos esperar para ver no que vai dar. Ou assumimos de forma mais incisiva a tarefa da reconstrução com Lula e seu governo ou o deixaremos amarrado aos impasses do Centrão e das investidas da direita autoritária. Pior, vamos continuar tendo um governo que se vê obrigado a contemporizar com as Forças Armadas e nos pede para esquecer o que foi a ditadura. Mas, também, não podemos simplesmente nos render ao agronegócio, mineração e petróleo, porque daí nunca virá outra economia voltada ao cuidado de gente e da natureza.
Extraio uma indicação imediata de algo a ser feito de conversas de conjuntura, de que participo, junto com um pequeno grupo de parceiros de várias décadas, verdadeiros cúmplices da empreitada por um outro Brasil. No grupo temos lembrado a necessidade de fortalecer nossos meios alternativos de comunicação, que funcionam como referência para cidadanias ativas. Mas são frágeis. Como combatemos os “donos de gado e gente” não podemos esperar daí financiamento necessário e que amplie o impacto de nossos meios na tarefa de disputa de ideias e propostas. Estamos dependentes dos fracos apoios solidários, fundamentais para a autonomia política, mas por si só são insuficientes. Para ampliar impacto dependemos da atenção e comprometimento estratégico de forças políticas democráticas, especialmente as que tem acesso ao Estado, pois do outro lado nada virá. São destinados importantes recursos públicos aos grandes meios de comunicação, especialmente TVs, em geral mais inclinados à direita e centro-direita, pouco ou nada sensíveis às iniciativas, agendas e propostas de cidadanias ativas. O pior é que os meios mais importantes para o ativismo democrático são ignoradas pelas políticas públicas. Mas estes meio voltando atenção às cidadanias ativas organizadas, com potentes narrativas e avaliações de quem está com a gente, são estratégicos para a questão que levanto nesta postagem.
Termino, lembrando que não se trata de submeter as iniciativas a uma determinação e orientação política governamental. Pelo contrário, trata-se de reconhecer a potência democrática que brota da sociedade civil em termos de produção de análise de propostas de qualidade, muitas vezes até com críticas construtivas aos responsáveis políticos do nosso campo. Não conseguiremos desencurralar a democracia se tais iniciativas foram deixadas na sombra, entregues à própria sorte. São estas iniciativas que privilegiam a investigação dos sinais virtuosos que brotam do chão da sociedade. Desconhecer isto é um grande risco para a tarefa do necessário desencurralamento e, sobretudo, de disputa de hegemonia democrática ecossocial de direitos iguais para todas e todos. Está dado o recado, para quem está disposto a ouvir!
Veja em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/a-democracia-brasileira-ainda-encurralada/
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