A direita defende que “não devemos politizar” a tragédia no Rio Grande do Sul porque sabe que vai perder o debate e só lhe resta tentar apresentar o crítico como oportunista. Mas, na verdade, a atual crise é fruto de negacionismo climático e um programa de austeridade neoliberal que foi aprofundado – e denunciado pela esquerda – nos últimos anos.
Por: Marcos Martim |Tradução: Sofia Schurig | Crédito Foto: Amanda Perobelli / Reuters
Tendo dedicado mais da metade do meu tempo de vida ao estudo da linguagem, não consigo evitar que meu raciocínio parta sempre daquilo que é dito em momentos-chave do nosso tempo histórico. No dia em que escrevo, nove de maio, o balanço da Defesa Civil do Rio Grande do Sul aponta 431 municípios (dos 497) afetados pelas enchentes. E minha primeira observação vem sobre a palavra afetados, derivada de afeto, porque essa expressão não descreve o desaparecimento de uma cidade inteira, submersa no decorrer de alguns poucos dias.
Diante de um cenário como esse, o único ente social existente que é capaz de mobilizar de forma coordenada os recursos materiais e humanos necessários para reduzir danos, ou seja, o aparato Estatal do Estado do Rio Grande do Sul, representado pela figura do chefe do poder executivo estadual, Eduardo Leite (PSDB-RS), se dirige para a população da seguinte maneira:
“Um alerta muito importante para a população do Vale do Taquari. Nesta madrugada de quarta (01/05) para quinta-feira (02/05), deve haver uma elevação no nível do Rio Taquari que vai atingir os patamares que nós observamos em setembro do ano passado. Possivelmente, mais do que em setembro do ano passado. […] A gente pede às pessoas que, nesta noite, saiam de suas casas e busquem local seguro”.
O governador Eduardo Leite, chefe do poder executivo estadual, que tem nas mãos o aparato Estatal — o único ente social existente capaz de mobilizar recursos para atender uma demanda que tem o tamanho de uma calamidade (palavra que se aproxima da dimensão da experiência traumática de ver territórios históricos cobertos pelas águas das chuvas e dos rios) —, não mobiliza nada em pronunciamento de 1º de maio. Não oferece nem indica local seguro, embora o Estado tenha como mobilizar os meios para resgatar, transportar e alojar pessoas. O governador falha (seria essa a palavra?) diante dos dispositivos jurídicos constitucionais federais e estaduais, segundo os quais é seu dever garantir as condições para a qualidade de vida da população e a proteção ambiental — palavras gravadas na Constituição Federal e na do Estado.
“A destruição que as forças da natureza causaram é, sem tirar nem por, o resultado mais bem acabado do modo de produção capitalista combinado com aquilo que se convencionou a chamar de ‘Estado mínimo’.”
A disponibilização de locais seguros, por exemplo, seria e é obrigação inequívoca do Estado; primeiro porque, materialmente, é o ente que tem prédios públicos, orçamento para mobilizar as empresas de transporte e de veículos aquáticos, os trabalhadores e a estrutura da Defesa Civil, do Corpo de Bombeiros, da segurança pública, de empresas públicas (que não foram privatizadas) de tratamento fluvial, de abastecimento de água e energia e de todas as outras categorias profissionais que agem em contextos de tamanha adversidade. Em segundo lugar, porque, juridicamente — se nosso ordenamento jurídico tiver validade —, o Estado está constituído como um poder cujo objetivo é, entre outros, garantir a segurança, a integridade e a incolumidade das pessoas. Ou será que não?
“Não é hora de politizar o debate”
Após os primeiros e aterradores impactos, seguidos de algumas justas cobranças direcionadas ao governador, exigindo o cumprimento dos deveres do Estado, Eduardo Leite, em entrevista no Palácio Piratini, afirmou: “Não é hora de qualquer disputa política, de levantar dedo para um ou para outro” — uma variação da insistência por “não politizar o debate”, seja sobre o cataclismo que o Rio Grande do Sul enfrenta, seja sobre demais questões sociais urgentes. E, nesse contexto, as grandes empresas de mídia e comunicação reproduzem de modo acrítico declarações semelhantes, reforçando para o público o discurso de que não seria o momento de apontar culpados nem de politizar a discussão.
Retornamos à observação mais atenta das palavras para relembrar o já batido significado de política (velho conhecido de qualquer aluno de 7º ano que prestou atenção às aulas de História e Filosofia): ela deriva do grego politikos, “relativo ao cidadão ou ao Estado”, e vem de polites, “cidadão”, oriundo de polis, “cidade”. Para que não reste dúvidas: qualquer discussão que se relacione de alguma forma à vida das pessoas e ao território habitado por essas pessoas é uma discussão política. Há uma dissimulação na ideia de “não politizar o debate”: isso seria, na prática, despolitizar o debate (seria como discutir quem tem ou não direito de usar qual banheiro nas escolas quando, na verdade, algumas instituições de ensino sequer têm água encanada). Começa aqui o aprofundamento da politização do debate e nossa crítica ao Estado, tomando como exemplo o Rio Grande do Sul.
“Estudos indicam que, enquanto a temperatura média global subiu cerca 5°C em 10 mil anos, nos próximos 100 anos, mantendo-se as tendências atuais, poderá haver um aumento de 1,8°C a 4,0°C.”
A destruição que as forças da natureza causaram é, sem tirar nem por, o resultado mais bem acabado do modo de produção capitalista combinado com aquilo que se convencionou a chamar de “Estado mínimo”. Primeiramente, dados paleoclimáticos de 1500 em diante demonstram que a temperatura da Terra começou a subir entre 1830 e 1850. Outros estudos indicam que, enquanto a temperatura média global subiu cerca 5°C em 10 mil anos, nos próximos 100 anos, mantendo-se as tendências atuais, poderá haver um aumento de 1,8°C a 4,0°C. Desde há muito, a honestidade intelectual diante do consenso produzido pelas pesquisas já não consegue questionar a revolução industrial e a internacionalização do modo de produção capitalista como diretamente responsáveis pelas alterações ecossistêmicas na Terra.
Nesse sentido, todo o conjunto de eventos climáticos e meteorológicos que culminou no volume de chuvas concentrado sobre o Rio Grande do Sul é um efeito do modelo dominante de desenvolvimento socioeconômico ao, por exemplo, degradar áreas nativas que, se preservadas, são barreiras naturais de proteção uma vez que, entre outras coisas, absorvem grandes quantidades de umidade. Se vê um avanço cada vez mais destrutivo sobre esses territórios em nome da ampliação de uma crescente produção agropecuária e de minérios que se transforma em vultosas fortunas para grupos estrangeiros e uns poucos proprietários de vastas extensões de terra cujas famílias remontam aos beneficiários de políticas (eis nossa palavra aqui novamente!) como a das capitanias hereditárias e a das sesmarias.
Enquanto, por exemplo, a agricultura familiar — esse modelo completamente oposto aos desertos verdes das monoculturas, que tem menor ou nenhum impacto, cuja produção abastece o mercado interno e que responde por 67% das ocupações no meio rural no país — representa apenas 23% da área total dos estabelecimentos agropecuários brasileiros, na maior parte extensão territorial agride-se a terra, que é nossa residência e o único meio de produção da nossa subsistência, para produzir minérios e grãos que circularão no mercado externo e não serão revertidos de nenhuma forma para os trabalhadores e as trabalhadoras brasileiras.
As consequências do neoliberalismo
No que se refere especificamente ao Estado do Rio Grande do Sul, o pampa foi o bioma brasileiro com maior área nativa suprimida proporcionalmente no período de 2018 a 2022, substituído por áreas agrícolas, sobretudo de cultivos de grãos. Essa devastação é praticada tendo em vista projetos socioeconômicos a serem desenvolvidos nessas áreas segundo as demandas e os interesses dos empresários agroindustriais que, por sua vez, são autorizados a desmatar pelo Estado (isto é, quando agem dentro da legalidade) a partir de leis propostas e sancionadas por legisladores cujas campanhas eleitorais foram financiadas por empresas da agroindústria ou que até mesmo são acionistas ou proprietários dessas mesmas empresas.
Nesse ciclo, as agências de regulação, os órgãos de fiscalização, os trabalhadores e as trabalhadoras responsáveis por supervisionar as ações de proteção ambiental e de redução de danos contam com cada vez menos investimentos e com cada vez menos recursos; consequentemente, a capacidade de regulação e fiscalização diminui e aumenta a deterioração dos ecossistemas e dos biomas. Portanto, foram decisões de uma política capitalista e neoliberal que nos trouxeram até aqui.
Também somam-se à equação as décadas de gestões municipais orientadas pela lógica do neoliberalismo, que pode ser resumida em políticas fiscais de redução dos gastos públicos, eliminação dos instrumentos de intervenção estatal e privatização de empresas e serviços públicos. Assim, as falhas nos mecanismos de contenção e barragens existentes em municípios gaúchos são resultado da ausência de manutenção, da falta de reestruturação e da insuficiência de fiscalização. Na capital do Estado, Porto Alegre, cinco anos antes da maior enchente da história, o então prefeito Nelson Marchezan Júnior (PSDB-RS) perdeu R$ 121,9 milhões do Governo Federal que seriam destinados a obras de prevenção a cheias do Guaíba e de outros cursos de água que desaguam no lago. Sebastião Melo (MDB-RS), atual prefeito, não investiu um real sequer em prevenção a enchentes em 2023, mesmo com o departamento que cuida da área tendo R$ 428,9 milhões em caixa.
“A falta de investimento nas estruturas de interesse público contrasta com as políticas voltadas aos projetos de interesse privado.”
Isso significa que escolhas políticas de políticos geraram impactos nas vidas de milhares de trabalhadores. Entretanto, a falta de investimento nas estruturas de interesse público contrasta com as políticas voltadas aos projetos de interesse privado. Da mesma forma como, na República Velha, o Estado atendia os interesses das principais burguesias nacionais naquilo que entrou para a história como a política do café com leite, constatamos, por exemplo, na cidade de Porto Alegre, um extensivo descaso e uma profunda precarização dos espaços e dos serviços públicos, enquanto grandes empresários locais do setor imobiliário avançam sobre os territórios da capital com a anuência do prefeito, apelidado inclusive de Melonick em alguns círculos de espírito mais elevado (em alusão a uma das construtoras com mais metros quadrados construídos na cidade).
As evidências de que as políticas colocadas em prática nos municípios do Rio Grande do Sul são destinadas a atender os interesses de uma camada socioeconômica muito específica e muito restrita numericamente da população ficam ainda mais patentes quando Sebastião Melo, reconhecendo o risco de colapso total dos sistemas de abastecimento de água e energia na capital, aconselha que a população migre para suas casas no litoral. Ora, salvo as exceções, que parte da população detém os recursos para manter uma residência na cidade e outra no litoral? Eis a luta de classes — embora o pequeno-burguês ainda não tenha aprendido a olhar para cima, em vez de para baixo, ao procurar seus adversários.
A solução seria então extinguir o Estado e todas as estruturas públicas de serviços à população, acreditando na alegada maior eficiência do setor privado? Um sonoro não para essa pergunta, embora seja urgente discutir a desconstrução desse modelo de Estado e a reconstrução de um novo. É neste momento que politizar a discussão sobre as causas, as consequências e as responsabilidades relacionadas ao sofrimento experimentado por trabalhadores rio-grandenses das mais distintas categorias é a única forma de tratar com respeito a desolação que acometeu a classe trabalhadora do sul e de todas as demais regiões solidárias do Brasil.
Em um desses aforismos escritos em rede social, alguém sugeriu nos últimos dias que é necessário encontrar um nome para a força que está movendo as pessoas no e pelo Rio Grande do Sul — essa coisa capaz de transformar a realidade social — para nunca mais esquecê-la. Eu concordo. Reiterando o que já foi dito, agora de outra forma, qualquer ação que gere impacto e se relacione de alguma forma com a vida das pessoas e com o território habitado por essas pessoas é uma ação política. O nome dessa força é, também, política. Solidariedade de classe ou ação política — o nome importa menos do que a prática —, é essa a politização que realmente nos interessa e que devemos impor no debate público sobre o que aconteceu, está acontecendo e deve acontecer no Rio Grande do Sul e nas demais regiões do país.
“Mais uma vez na história, fica evidente que a sociedade mobilizada e organizada coletivamente é plenamente capaz de identificar e atender suas próprias demandas, ou seja, de fazer política.”
Se as decisões políticas e a ausência delas invariavelmente provocarão resultados nas vidas da classe trabalhadora, apenas a ação política dessa classe, em unidade solidária idêntica à da onda atual, garantirá o provimento de condições materiais que previnam perdas incalculáveis como as sofridas pelas famílias trabalhadoras rio-grandenses.
Mais uma vez na história, fica evidente que a sociedade mobilizada e organizada coletivamente é plenamente capaz de identificar e atender suas próprias demandas, ou seja, de fazer política. Não são os ocupantes de cargos eletivos temporários que devem ter o poder decisório e de gestão do orçamento público; são os trabalhadores e as trabalhadoras da sociedade civil, organizados por meio de comitês de prevenção e planejamento estratégico e de conselhos por área de interesse e região, juntamente com os trabalhadores em carreiras do Estado, cuja qualificação para atuar na posição que ocupam foi garantida por meio de concurso público e transparente.
O tal “enxugamento do Estado” deve atingir justamente os cargos do primeiro escalão dos poderes executivo, legislativo e judiciário de forma a construir um comando popular e horizontalizado na aplicação dos recursos públicos a fim de que sejam atendidas as reais necessidades da classe trabalhadora e para que o desamparo dos últimos dias nunca mais se repita. É, sim, o momento de apontar os culpados. É essa a politização que os adversários da classe trabalhadora não desejam ver em nossos debates e é essa a politização que nós devemos a cada trabalhador que sofre hoje no Rio Grande Sul e todos os outros dias em todos os lugares.
Veja em: https://jacobin.com.br/2024/05/mais-do-que-nunca-e-hora-de-politizar-o-debate-e-apontar-os-culpados/
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