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Educação: a greve enfrenta a navalha fiscal

Não são somente demandas da categoria: greve é uma resistência ao desmonte das universidades e institutos, mantido pelo arcabouço. E revela os limites da “frente democrática” que elegeu Lula. Sem enfrentar estas estruturas, vitórias serão meros paliativos

Por: Anderson Alves Esteves | Crédito Foto: Donavan Sampaio/JAV-DF

1.

Alhures, indicamos que a articulação entre neoliberalismo e autoritarismo do governo de Jair Bolsonaro foi um importante fator conjuntural para a composição da chapa Lula-Alckmin como antípoda à barbárie. Se, de um lado, a candidatura de oposição teceu um programa mínimo (democracia, republicanismo, respeito às minorias…) que permitiu aglutinar forças que transcendiam a centro-esquerda e a esquerda para, assim, facilitar a vitória eleitoral, de outro amalgamou consigo setores que estavam mais interessados no fetiche da austeridade fiscal e na superação da disfuncionalidade da gestão da sociedade do capital, dificultando, e mesmo embargando, ações de transformação social. (ESTEVES; MUSSE, 2023).

Vitorioso, Lula referiu-se aos setores unidos contra Jair Bolsonaro como uma “frente democrática” (LULA DA SILVA, 2023) e sabia que, com a esquerda minoritária na Câmara e no Senado e ainda se recuperando do Golpe de 2016, não conseguiria colocar a burguesia sob o comando do proletariado para implementar reformas classistas de grande monta. O que se vislumbrava como tarefas mais imediatas era evitar a fascistização das instituições – o 8 de janeiro de 2023 mostrou a assertividade daquela prioridade – e de não circunscrever o governo, apenas, aos fiscalismo e austeridade radicais das agendas Michel Temer e Jair Bolsonaro. De algum modo, a retomada da construção do estado de bem-estar social deveria continuar.

Há quase um ano e meio da posse de Lula, o que se alcançou até o momento? As tensões óbvias e peculiares à composição policlassista têm sido contornadas para se viabilizar o projeto da “reconstrução” (LULA, 2023)? Este, por sua vez, é exequível com o Arcabouço Fiscal e o orçamento aprovado pelo Congresso Nacional, em 22 de dezembro do ano passado, que, malgrado o aumento na arrecadação, impuseram o déficit zero nos “gastos públicos”? O Executivo Federal consegue, de fato, exercer um bom contrapeso ao aumento de poder do Legislativo que, com o Golpe de 2016 e a rotina do orçamento secreto sob o governo Bolsonaro, mostra-se mais forte nas negociações conciliatórias do lulismo? A hipótese da “inflexão da luta de classes” (ESTEVES; MUSSE, 2023, p. 120) para o interior do próprio governo teria se confirmado a ponto dos atritos entre ministérios e secretarias escalarem a ambiguidade da “frente amplíssima” (ESTEVES; MUSSE, p. 115) para tensões insolúveis?

O presente artigo mobiliza a greve em vigência nos Institutos e nas Universidades Federais para, em lugar de responder peremptoriamente as questões acima, buscar pistas para abordá-las da melhor maneira possível.

2.

Técnicos-administrativos educacionais (TAEs) e docentes deflagraram a greve por tempo indeterminado, nos Institutos Federais, a partir do dia três de abril, e nas Universidades, a partir de quinze. Dentre as pautas de reivindicação, estão a reestruturação das duas carreiras supracitadas; recomposição salarial; revogação das normas perniciosas à educação implementadas sob Michel Temer e Jair Bolsonaro; recomposição do orçamento das instituições de ensino, pesquisa e extensão; recomposição dos auxílios e bolsas dos estudantes (SINASEFE, 2024). Desde então, a comunidade acadêmica encontra-se com os braços cruzados, mas sem deixar de alimentar a esfera pública com atividades político-pedagógicas nos campi e de promover o necessário debate acerca de tudo o que envolve o movimento paredista, qualificando, sobremaneira, tanto a própria greve como a esfera pública.

Na discussão, foram colocados à mesa argumentos que deixam em relevo aspectos da greve que seriam negativos, a saber: o momento inoportuno dela em virtude de poder fortalecer a oposição bolsonarista a um governo que precisa, ainda, reconstruir a democracia; este seria o “contexto maior” (MOREIRA, 2024) a justificar o quietismo e a resignação a que deveriam se colocar as categorias grevistas, apregoados pretensamente como necessários para não manchar a imagem do “governo frágil e fortalecer a direita organizada e fascista” (LONDERO, 2024), às vésperas das eleições municipais de 2024 – qualquer pauta a ultrapassar esse limite conjuntural é (des)qualificada pelo tribunal epocal, vincado pelo “escrutínio da realidade orçamentária e pela geometria do apoio legislativo” (ARRAIS, 2024b) desfavorável ao governo.

Outrossim, argumentou-se que a defasagem salarial de TAEs e docentes não decorreu dos “dois últimos anos” (ARRAIS, 2024a) e o movimento paredista teria de, assim, limitar a questão à correção pelo IPCA neste período (ARRAIS, 2024b) em lugar de tratar das perdas ocorridas nos últimos sete anos. Além de tais argumentos que parecem usar, como subjacência, a ideia maquiaveliana de que a política precisa ser avaliada pelo resultado das ações e não pelo programa (as justas pautas reivindicativas das duas categorias) que as motivou, também houve a condenação da paralisação por tempo indeterminado em virtude da comparação que os profissionais da educação teriam feito em relação a outras carreiras do serviço público, tais como a da polícia federal e da defensoria pública, que conseguiram reajustes sob o governo Lula: a greve somente teria sido deflagrada porque TAEs e docentes haviam considerado a “grama mais verde do vizinho” (FERNANDES, M. C, 2024) que as suas.

Por sua vez, os defensores da greve respondem que, do ponto de vista conjuntural, ela poderia mudar os rumos do governo à medida que fortaleceria o grupo que deseja dispor o orçamento público para a promoção do bem-estar social, inferiorizado em virtude da hegemonia do grande capital sobre os recursos orçamentários que são endereçados ao pagamento do sistema da dívida pública (mais de 40% do orçamento), sangrando a arrecadação dos contribuintes diretamente para instituições financeiras, fundos de investimento e investidores externos.

Para todos os outros custos necessários à promoção do bem-estar social, a panaceia diagnosticada pelas classes e frações de classes dominantes é a da austeridade; dessa maneira, teria se formado uma encruzilhada: “Ou o governo acaba com os pisos constitucionais, ou acaba com o Arcabouço Fiscal” (RESCK, 2024a). Este é visto como fio-condutor entre o Teto dos Gastos, de Temer, a granada que Paulo Guedes e Bolsonaro colocaram no bolso dos servidores e o fetiche de Fernando Haddad com o déficit zero; ademais, para além da questão salarial, o mesmo Arcabouço Fiscal já impôs uma LOA, em 2024, a reduzir o orçamento dos Institutos Federais em R$ 30 milhões e o das universidades em R$ 310 milhões (MELO, 2024a).

O movimento grevista seria, assim, além de luta por demandas corporativas, espaço de “resistência às forças neoliberais do mercado”, pendor para a construção de um “Estado voltado para o bem-estar social”, contribuindo para o sucesso eleitoral nos próximos pleitos (FERNANDES, R. S, 2024a) e sendo uma maneira de não “entregar o governo à direita, sem disputa, e conduzi-lo à derrota” (MIGUEL, 2024). Mais que isso: o movimento grevista se configuraria como a “mobilização independente dos trabalhadores” (DAMASCENO, 2024) que inviabilizaria o retorno da extrema direita, que cobraria do Executivo o que ele mesmo contemplou no seu Programa de Governo (DRUCK; FILGUEIRAS, 2024b) e que enfraqueceria as forças sociais que vêm colocando o governo Lula-Alckmin sob tutela.

Em conjunto, os argumentos mobilizam o materialismo histórico e saberes sociológicos que atribuem ao real o esteio na relação e nos processos, tal como pensaram Georg Simmel e Norbert Elias: a correlação de forças não é tomada como fixa, mas de maneira histórica e plástica, podendo ser alterada em virtude das ações de indivíduos, categorias, classes, frações de classe etc. em disputa.

3.

Com efeito, parece que a pista deixada por este debate franco e aberto indica que, no âmago do fenômeno em curso, está a questão do Arcabouço Fiscal: ele seria o problema a ser resolvido para, de maneira exitosa, grevistas e governo alcançarem um denominador comum que atenda minimamente as reivindicações.

Por lei complementar, o Arcabouço Fiscal substituiu o Teto dos Gastos e reproduziu seu “sentido geral” (BASTOS, 2024): manteve a vinculação do crescimento das despesas primárias (com exceção os juros da dívida pública) ao aumento das receitas para, assim, esperar geração de superávits primários a fim de estabilizar a relação entre a dívida pública e o PIB – trata-se, portanto, de uma trava (1) ao desenvolvimento, à medida que dificulta a estratégia keynesiana de estímulo à demanda, a (2) tudo o que importa ao bem-estar social e, assim, ao (3) próprio governo, uma vez que este depende do desenvolvimento social para “combater o fascismo bolsonarista” (HANDFAS, 2024).

Sob a atual regra do Arcabouço Fiscal, mesmo a elevação da carga tributária enseja empenho do superávit primário na estabilização da relação dívida pública e PIB, não em atendimento aos direitos sociais previstos na Constituição de 1988 – eis mais um expediente de constitucionalização da austeridade (BASTOS, 2024) a se somar a outros já bem conhecidos do público e empreendidos em legislaturas anteriores, a exemplo da Lei de Responsabilidade Fiscal e da independência do Banco Central. Juntos, estes mecanismos diminuem a latitude da prerrogativa dos governos e exercem freios em suas pretensões reformistas, se as tiverem. Tanto que, além da educação, o mesmo problema se repete em outros âmbitos, a exemplo do que ocorre na saúde com o “subfinanciamento crônico” (NARVAI, 2023) do SUS, malgrado os aportes que o atual governo conseguiu efetivar em 2023 e 2024.

A partir destes elementos e retornando às questões propostas no início, a “reconstrução” pretendida por Lula esbarra no Arcabouço Fiscal: as negociações entre governo e profissionais da educação ilustram o problema e ocorrem sob um orçamento já sequestrado para o pagamento da dívida pública. Esta é a derrota que os sindicatos das categorias já têm: toda a discussão encontra-se agrilhoada pelas premissas e pelo modus operandi do Arcabouço Fiscal.

A vitória que podem alcançar é encontrar aqui ou ali alguma verba de descontingenciamento a ser empenhada como paliativo a uma ou outra demanda, a majoração de alguns penduricalhos que sequer são incorporados aos salários e que serão subtraídos dos servidores quando se aposentarem, mas, de modo algum, conseguiriam reaver as perdas acumuladas de sete anos sem reajustes.

A frente amplíssima constitui-se de um Ministério da Fazenda que ergueu um muro para o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) resolver as tratativas com os servidores: com o Arcabouço Fiscal, o primeiro exerce um poder de veto nas possíveis soluções encontradiças nas mesas de negociação. Se, de fato, as reivindicações continuarem insolúveis, TAEs, por exemplo, continuarão com os pedidos de exoneração, que cresceram em 85,4% nos últimos anos (BRASIL DE FATO, 2024), e o serviço público continuará sangrando até Institutos e Universidades Federais não conseguirem mais atender a população. Impossível reconstruir as instituições com o estrangulamento orçamentário em vigência e sem servidores públicos.

Explicita-se, outrossim, a “inflexão da luta de classes” (ESTEVES; MUSSE, 2023, p. 120) no interior do próprio governo: do ponto de vista particular, O MGI ouve as reivindicações dos servidores públicos, mas as tratativas não avançam em virtude de o Ministério da Fazenda exercer coerção a tudo que escape dos mecanismos do Arcabouço Fiscal; do ponto de vista geral, o trabalho está coagido pelo capital.

Está (muito) difícil para o governo Lula ser aquilo que foi outrora à medida que o Arcabouço Fiscal é mais um degrau (quantitativo e qualitativo) a dificultar a implementação de um programa reformista e desenvolvimentista: expressões como aquela de Armando Boito Jr., para designar os governos petistas anteriores como edificadores de um neodesenvolvimentismo “possível dentro do modelo capitalista neoliberal” (BOITO Jr., 2018, p. 57), e as de André Singer, para descrever como um “reformismo fraco” (SINGER, 2012, p. 169) os governos Lula, e um “reformismo forte” (SINGER, 2018, p. 26) os anos Dilma Rousseff, tornaram-se até saudosas, a despeito de, à época dos quatro primeiros governos petistas, serem melancólicas por indicarem os limites com os quais lidavam o Executivo Federal. Desta vez, o “possível” e a o peso fraco ou forte do “reformismo” parecem estar coloridos com matizes ainda mais pálidos.

O caso em pauta ilustra como a frente amplíssima emascula a si mesma, notadamente, no que concerne aos interesses do trabalho: na sua autofagia, o governo tem um Ministério da Fazenda a devorar o MGI; o Arcabouço Fiscal, os TAEs e docentes; o capital, o trabalho. A greve dos profissionais da educação, consciente ou inconscientemente, ao se deparar diante do Arcabouço Fiscal, colocou-se contra não apenas uma política econômica hodierna/datada, mas contra o parasitismo burguês que se apossou do orçamento público e o pilhou.

Dessa forma, os grevistas perceberam que, para superar sua degradação, precisam resolver questões que são maiores que as contendas ministeriais e administrativas. Impossível não se lembrar do que Marx escreveu em Glosas críticas ao artigo “’O rei da Prússia e a reforma social’. De um prussiano”, quando argumentou que os operários silesianos revoltados, ao atacarem a política de1844 a fim de tentarem resolver o pauperismo a que estavam submetidos, consciente ou inconscientemente, abriram guerra às burguesias industrial e bancária e à propriedade privada.

Desnudadas estas contradições da frente amplíssima, o calibre e a necessidade desta e das próximas lutas ficam melhor ajustadas.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/mercadovsdemocracia/educacao-a-greve-enfrenta-a-navalha-fiscal/


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