Por que preservação de margens de rios gera debate no STF
5/junho/20240
Pouco antes das enchentes, governo do Rio Grande do Sul flexibilizou uso de Áreas de Proteção Permanente, as APP. Medida é criticada por especialistas, que apontam retrocesso ambiental.
Por: Ligia Guimarães | Crédito Foto: Lisandro Trarbach/Panthermedia/Imago Images. APPs protegem nascentes e margens de rios
Na “hierarquia” das áreas de vegetação nativa a serem protegidas pelo Código Florestal, as Áreas de Proteção Permanente (APP) podem ser consideradas especialmente valiosas para o bom funcionamento da natureza. São áreas naturais intocáveis, onde não é permitida a exploração econômica direta, próximas a algum curso d’água: rio, córrego, banhado, arroios, charcos, pântanos ou estuários, cobertas ou não por vegetação nativa, localizadas na zona rural ou urbana.
Quando preservadas, as APPs funcionam como um “oásis” especialmente protegido dentro de propriedades rurais ou urbanas. Nessa área de proteção permanente é proibido construir, plantar ou explorar atividade econômica. O objetivo é proteger o “núcleo gerador” de vida daquela região: a nascente do rio, as matas ciliares. Em casos de plantio, por exemplo, a área de lavoura deve ir até onde começa a vegetação nativa das margens dos rios, sem ultrapassá-las ou suprimi-las.
Para o produtor rural, pode parecer um contrassenso ter água dentro da sua propriedade e não poder usar para irrigar a lavoura. Não drenar as nascentes dos rios, no entanto, é fundamental para que eles não sequem e desapareçam.
“Os rios são os berços geradores da vida. Então, em uma área em que você vai plantar, o que você faz então? Protege os rios. Tira o mato das outras áreas, mas depois se você quiser recuperar aquela área, restaurar a vegetação um dia, com a mata perto do rio você consegue expandir. A partir do núcleo que contém os elementos importantes você pode recuperar a natureza que estava ali”, diz o pesquisador Rualdo Menegat, geólogo, doutor em Ciências na área de Ecologia de Paisagem e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
No Rio Grande do Sul, é fácil observar na paisagem quando os limites de proteção às APPs estão sendo infringidos, conta Ana Paula Moreira Rovedder, engenheira florestal e docente do Departamento de ciências Florestais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Recuperação de Áreas Degradadas (Neprade/UFSM).
“No caso da soja é muito comum nós vermos a substituição das margens de rios para o monocultivo agrícola. Então vemos crimes ambientais, porque a margem de rio é uma área de proteção permanente”, ressata.
Preservar as APPs é fundamental para preservar o meio ambiente e torná-lo mais resistente a mudanças climáticas: elas mantêm o solo “vivo”, com microrganismos que absorvem e filtram a água da chuva, e a vegetação protege as margens dos rios, evitando inundações e a erosão. Além disso, quando livres da intervenção humana, as APPs armazenam a água da chuva no subterrâneo e a “devolvem” para os rios quando a chuva para, evitando que os rios sequem.
“As APPs têm o grande papel de manter o sistema hídrico funcionando. Quando elas estão destruídas, duas coisas acontecem: as águas das chuvas escorrem com mais rapidez, os rios sobem e avolumam as inundações, e, como as chuvas não carregam os aquíferos [armazéns subterrâneos naturais da água], os rios secam logo depois da chuva”, diz Menegat.
APPs na Justiça
Pesquisadores e acadêmicos consultados pela reportagem veem retrocesso ambiental recente nas leis estaduais referentes às APPs, protegidas pelo Código Florestal de 2012. Tais áreas são cobiçadas pelo setor agrícola e têm sido alvo de obras e interferências irregulares de produtores atraídos por drenar suas terras férteis e armazenar água para abastecer plantações.
Tal debate será analisado na Justiça. A pedido do Partido Verde, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin deu na semana passada um prazo de dez dias para que a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul e o governo de Eduardo Leite (PSDB) encaminhem informações sobre a lei que flexibilizou regras sobre a construção de barragens em APPs: a Lei Estadual nº 16.111, sancionada pelo governador no início de abril.
O projeto, segundo a Assembleia Legislativa, contou com o apoio da Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (FIERGS), que em fevereiro apresentou estudos sobre modelos de incentivo de ICMS a produtores que investem em irrigação em suas propriedades.
Na visão do Partido Verde, as alterações à lei do Rio Grande do Sul caracterizam retrocesso na proteção ambiental estadual, em violação à Constituição Federal.
Já o autor do projeto de lei aprovado em março pela Assembleia Legislativa do estado, o deputado estadual Delegado Zucco, do Republicanos, argumenta que a legislação permitirá o enfrentamento das estiagens, evento climático que atingiu o Rio Grande do Sul por três anos seguidos até 2023. As obras nas APPS garantiriam irrigação para a produção agrícola, alegou.
O Código Florestal de 2012 prevê que somente órgãos ambientais podem abrir exceção à restrição e autorizar o uso e até o desmatamento de área de preservação permanente rural ou urbana; mas, para fazê-lo, devem comprovar as hipóteses de utilidade pública, interesse social do empreendimento ou baixo impacto ambiental da atividade.
É justamente nessa exceção onde mora o argumento de quem defendeu mudar a lei estadual: abastecer os produtores durante a estiagem seria de interesse público. Argumento “falacioso”, na visão de Menegat. “O que eles queriam é a proliferação de barragens, que na verdade favorecem inundações. Essas barragens têm sido instaladas nas nascentes, nas zonas altas dos rios, e levam à interrupção do ciclo hídrico. Podemos fazer barragens nos rios, mas nunca nas nascentes”.
Um estudo de 2023 do Instituto Escolhas, dedicado a análises sobre desenvolvimento sustentável, aponta que o Rio Grande do Sul tem 1,16 milhão de hectares em áreas de preservação permanente e reserva legal que precisam ser recuperadas urgentemente para aumentar a capacidade de infiltração da água no solo. “Os planos de reconstrução do Rio Grande do Sul precisam incorporar a recuperação da vegetação nativa, que é uma infraestrutura natural para prevenir a repetição de tragédias”, afirma Sergio Leitão, diretor-executivo do Escolhas.
Água para a lavoura
Segundo a Agência Nacional de Águas (ANA), o maior uso de água no Brasil e no mundo é voltando para a agricultura irrigada, correspondendo à metade de toda a água retirada dos mananciais no país, seguida do abastecimento humano urbano, que corresponde a cerca de 24% da retirada total. Imprescindível para qualquer propriedade rural, a água é utilizada para matar a sede dos seres humanos e animais, criar peixes, fazer irrigação, lavar alimentos antes de serem comercializados, entre outras atividades.
O Rio Grande do Sul, que responde por 70% da produção brasileira de arroz, é o estado que mais retira água anualmente, segundo a ANA, sendo o arroz irrigado responsável pela maior parcela da retirada de água para irrigação no Brasil, uma média anual de 350 m³/s, o que equivale, por exemplo, a 70% da demanda de todas as cidades brasileiras, segundo boletim do Sistema Nacional de Informações sobre Recursos Hídricos.
O anseio do setor agrícola em armazenar água tem degradado as APPs e causado a seca dos rios, diz Menegat. A drenagem das áreas de APPs e a construção de valos, diques e represas para garantir água para a lavoura e para a pecuária, tem tornado as paisagens típicas dos banhados cada vez mais raras.
“Os impactos ambientais mais relevantes no estado, relacionados ao cultivo de arroz irrigado, estão associados às transformações das várzeas inundadas para o uso de sistemas de irrigação por inundação; e a drenagem de banhados”, aponta análise da Universidade Federal do Rio Grande do Sul sobre questões ambientais das áreas úmidas. “Na Bacia do rio Gravataí, no nordeste do estado, ações relacionadas à orizicultura causaram, ao longo dos anos, uma série de modificações na dinâmica hidrológica do rio e nas áreas úmidas, implicando em relevantes impactos ambientais. Além disso, a retirada de água para a irrigação do cultivo nos meses de verão, tem gerado conflitos entre as demandas para o setor agrícola e o abastecimento público”.
As APPs, quando bem aproveitados, favorecem também a produção agrícola, como explica documento da Embrapa sobre os serviços ecossistêmicos. “As paisagens multifuncionais beneficiam os sistemas produtivos na medida em que mantêm o fluxo de serviços ecossistêmicos entre áreas naturais, como as Áreas de Preservação Permanente e Reserva Legal, e áreas cultivadas, mantendo a sustentabilidade destes”.
Na agropecuária, segundo a Embrapa, a ciência também tem se dedicado a conciliar os benefícios de se preservar mata nativa nas propriedades a favor da produção. Tais técnicas envolvem que os produtores planejem paisagens agrícolas “manejadas”, alternando lavouras a trechos preservado da vegetação natural e habitat para a fauna local.
Rovedder diz que, em tempos de eventos climáticos extremos, proteger as APPs é apenas um dos esforços necessários para evitar novos desastres. “Porque mesmo onde temos as áreas de preservação permanente, de encosta e de rio, neste momento extremo a paisagem não conseguiu resistir”, diz.
Para além dos riscos de novos desastres, permitir que o setor agrícola acesse a água das APPs em momentos de escassez de água aumenta a competição por água, tornando-a mais escassa para a população que divide as mesmas bacias hidrográficas. “Permitir essas intervenções nas APPs é um grande erro”, avalia o ecólogo Marcelo Dutra da Silva, doutor em ciências e professor de Ecologia na Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
“Eu aumento a competição da água da APP, que já é pouca para a bacia. E, além disso, eu interfiro ainda mais na natureza”, ressalta Silva recomendando estratégias diferentes. “Eu estimularia que tivéssemos mais sistemas de reservação de água, na forma de açudes, para os períodos de chuva. É mais caro, mas temos que preservar as APPs. Tem que haver um esforço na direção contrária do que temos tentado fazer até hoje”.
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