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Kafka nos 100 anos da sua morte

Em Carta ao Pai, uma síntese de sua relação com o mundo: a figura do pai se confunde com a da burocracia tirânica – e ambos o oprimem. Em tempos de autoritarismo, a atualidade de sua literatura sobressai. E abre uma janela de civilização em meio à barbárie

Por: Urariano Mota| Arte: Robert Crumb

Uma das obras-primas de Kafka é Carta ao Pai. O texto é uma carta póstuma que Kafka escreveu para o seu pai, mas nunca chegou a ser enviada. Recordo que li o texto pela primeira vez nos anos da ditadura. Se o espírito não me engana, devo ter lido a Carta ao Pai numa edição do Jornalivro, uma ótima resistência editorial daquele tempo. No ônibus, em silêncio e amargurado para mais um dia de jornada de burocrata na Celpe, eu me encantava pela vez primeira com esse, digamos, novo Kafka. O “novo” se devia à descoberta de que um autor, com fama de narrar uma realidade fantasiosa, absurda a ponto de gerar uma nova palavra, kafkiano, escrevesse de modo tão realista, tão perto de mim, da minha própria experiência, e tão perto do universal de todos os leitores. Olhem em que consistia a fantasia, irrealidade, na Carta ao Pai:

“Você me perguntou recentemente por que eu afirmo ter medo de você. Como de costume, não soube responder, em parte justamente por causa do medo que tenho de você, em parte porque na motivação desse medo intervêm tantos pormenores, que mal poderia reuni-los numa fala. E se aqui tento responder por escrito, será sem dúvida de um modo muito incompleto, porque, também ao escrever, o medo e suas consequências me inibem diante de você e porque a magnitude do assunto ultrapassa de longe minha memória e meu entendimento”.

Que começo! Nesse documento estético, se anulam as fronteiras entre o autobiográfico e a literatura, que tantas vezes é delimitada de forma atrasada, por desejo até de retirar a literatura do campo da realidade vivida por todos nós. Todos, do “nós” pronome pessoal, ao substantivo plural de nó. Kafka libertava as amarras da ilusão para todos os leitores:

“Eu magro, fraco, franzino, você forte, grande, largo. Já na cabine me sentia miserável e na realidade não só diante de você, mas do mundo inteiro, pois para mim você era a medida de todas as coisas (…)

Com isso o mundo se dividia para mim em três partes, uma onde eu, o escravo, vivia sob leis que tinham sido inventadas só para mim e às quais, além disso, não sabia por que, nunca podia corresponder plenamente; depois, um segundo mundo, infinitamente distante do meu, no qual você vivia, ocupado em governar, dar ordens e irritar-se com o seu não-cumprimento; e finalmente um terceiro mundo, onde as outras pessoas viviam felizes e livres de ordens e de obediência. Eu vivia imerso na vergonha: ou seguia as suas leis, e isso era vergonha porque elas só valiam para mim; ou ficava teimoso, e isso também era vergonha, pois como me permitia ser teimoso diante de você?, ou então não podia obedecer porque, por exemplo, não tinha a sua força, o seu apetite, a sua destreza, embora você exigisse isso de mim como algo natural: esta era com certeza a vergonha maior. Desse modo se moviam não as reflexões, mas os sentimentos do menino”

E tão real ele era na Carta, que Otto Maria Carpeaux escreveu que lembrava de uma vez em que conhecera Kafka em Viena, ocasião em que o escritor mal falou. No texto, Carpaux atribuiu o fenômeno a um mal desgraçado na laringe de Kafka:

“E numa dessas tardes cheguei a conhecer pessoalmente Franz Kafka.

Conhecia poucos entre os presentes. Fui sumariamente apresentado. Sentindo-me um pouco perdido no meio dessa gente toda, não tendo a coragem de aproximar-me do centro da reunião, da grande e belíssima atriz D. F. — que tinha fama de Messalina — retirei-me para um canto já ocupado por um rapaz franzino, magro, pálido, taciturno. Eu não podia saber que a tuberculose da laringe, que o mataria três anos mais tarde, já lhe tinha embargado a voz. E então se desenrolou ‘aquele’ diálogo:

‘Kauka.’

‘Como é o nome?’

‘KAUKA!’

‘Muito prazer.’

Foi este o começo e o fim do meu primeiro encontro com Franz Kafka”.

Mas não, o mal da fala de Kafka vinha de antes, mas agravado pela doença. Ele vinha mutilado desde a juventude, como se revela na Carta:

“A impossibilidade do intercâmbio tranquilo teve uma outra consequência na verdade muito natural: desaprendi a falar. Certamente eu não teria sido, em outro contexto, um grande orador, mas sem dúvida teria dominado a linguagem humana corrente e comum. No entanto, logo cedo você me interditou a palavra, sua ameaça: ‘Nenhuma palavra de contestação!’ e a mão erguida no ato me acompanharam desde sempre”.

Esse foi um dano que ele buscou superar pela mais eloquente liberdade, a fala da literatura. Mas não encontrou abrigo no reconhecimento paterno, ainda assim, como está na Carta:

“Com a sua antipatia você atingiu, de modo mais certeiro, a minha atividade de escritor e as coisas relacionadas com ela, que lhe eram desconhecidas. Aqui de fato eu me havia distanciado com certa autonomia, embora lembrasse um pouco a minhoca que, esmagada por um pé na parte de trás, se liberta com a parte dianteira e se arrasta para o lado. De certa maneira eu estava em segurança, havia um sopro de alívio, a aversão que naturalmente você logo teve pelo que eu escrevia foi neste ponto excepcionalmente bem-vinda. É fato que minha vaidade e minha ambição sofriam com a acolhida que dava aos meus livros, famosa entre nós: ‘Ponha em cima do criado-mudo!’ (em geral você estava jogando baralho quando chegava um livro)”

É claro, essa falta de respeito para com as atividades artísticas de uma pessoa não é incomum no chamado lar, doce lar, de toda a gente. A diferença é que em Kafka, na Carta ao Pai, o despótico alcança a sua condenação de um modo arrasador. Para todos os tempos, copio este parágrafo de gênio:

“Às vezes imagino um mapa-múndi aberto e você estendido transversalmente sobre ele. Para mim, então, é como se entrassem em considerações apenas as regiões que você não cobre ou que não estão ao seu alcance. De acordo com a imagem que tenho do seu tamanho, essas regiões não são muitas nem muito consoladoras, e o casamento não está entre elas”

Note-se, de passagem, que esse é um dos trechos onde se revela eloquente o salto magnífico da arte, a superação do biográfico pela literatura. É como um verso definitivo de poema que torna universal a infelicidade particular do poeta: “um mapa-múndi aberto e você estendido transversalmente sobre ele”. Que imagem terrível e plástica! Na razão biográfica imediata da carta, estava a recusa do pai ao desejo de Kafka em casar com uma jovem. Ela era filha do zelador da sinagoga de um subúrbio, e o pai a desqualificara como indigna desse casamento, porque ela estava em uma condição social inferior à família do escritor. E assim foi ao chão mais uma procura de conquista de uma casa humanizada.

Para um escritor de tamanho nível, chega a ser absurdo, sim, essa palavra, que a valorização crítica da obra tenha chegado um pouco tarde. Na sua terra natal, aliás, nem chegou. Em Praga, acreditem, Kafka chega a ser desconhecido pela maioria da população. Seria porque ninguém é profeta em sua terra? Depende, Portugal não faz assim com Fernando Pessoa, nem a Alemanha com Goethe. E no caminho da crítica reconhecedora, o seu caminho não foi tranquilo. Kafka, um dos maiores escritores do século XX, não recebeu uma fecunda crítica do pensador György Lukács. O filósofo o julgou um escritor de talento, com “uma decadência artisticamente interessante”. Mais tarde, Lukács reconheceria não ter feito uma justa avaliação do genial escritor. Mas para nossa felicidade, escritores de todo o mundo e a esquerda de todos os lugares têm visto Kafka como um escritor fundamental. E para nossa igual felicidade, dois dos grandes filósofos marxistas do século XX, Theodor Adorno e Walter Benjamin, lhe dedicaram estudos luminosos.

Modesto Carone, que fez traduções modelares de Kafka em língua portuguesa, no posfácio de Carta ao Pai cita Walter Benjamin:

“Não é sem razão que Walter Benjamin, num ensaio de 1934 sobre Kafka, vê irmanados na sua obra pais e burocratas: ‘O pai’, diz Benjamin, ‘é a figura que pune. A culpa o atrai, como atrai os funcionários da Justiça. Há muitos indícios de que o mundo dos funcionários e o mundo dos pais são idênticos em Kafka. Essa semelhança não os honra. Ela é feita de estupidez, degradação e imundície’ ”

Na Carta ao Pai, como escritor do gênero, gênio e ofício, Kafka põe uma fala em que o pai responderia às verdades que acabou de ouvir no texto. E fala o pai, na imaginação de Kafka, mas uma imaginação nutrida da experiência que teve sob a tirania do bárbaro:

“Você está inadaptado para a vida. Para poder se instalar confortavelmente nela, despreocupado e sem autorrecriminações, você demonstra que eu lhe tirei toda a capacidade para a vida e a enfiei no meu bolso. Que importa agora que você seja incapaz para ela? A responsabilidade é minha, mas você se espreguiça tranquilamente e se faz arrastar física e espiritualmente por mim”

O leitor já percebe o arrastar-se até o pai. Está em A Metomorfose, quando o narrador sofre a transformação de ter o corpo de um inseto e a cabeça humana. E de modo mais claro, observo que a opressão doméstica sobre uma pessoa deficiente, e sua rejeição, já se havia narrado em A Metamorfose:

“Apesar disso, não podia suportar aquela corrida por muito mais tempo, uma vez que, por cada passada do pai, era obrigado a empenhar-se em toda uma série de movimentos e, da mesma maneira que na vida anterior nunca tivera uns pulmões famosos, começava a perder o fôlego. Prosseguia ofegante, tentando concentrar todas as energias na fuga, mal mantendo os olhos abertos, tão apatetado que não conseguia sequer imaginar qualquer processo de escapar a não ser continuar em frente, quase esquecendo que podia utilizar as paredes, repletas de mobílias ricamente talhadas, cheias de saliências e reentrâncias. De súbito, sentiu embater perto de si e rolar à sua frente qualquer coisa que fora violentamente arremessada. Era uma maçã, à qual logo outra se seguiu. Gregório deteve-se, assaltado pelo pânico. De nada servia continuar a fugir, uma vez que o pai resolvera bombardeá-lo. Tinha enchido os bolsos de maçãs, que tirara da fruteira do aparador, e atirava-lhas uma a uma, sem grandes preocupações de pontaria. As pequenas maçãs vermelhas rebolavam no chão como que magnetizadas e engatilhadas umas nas outras. Uma delas, arremessada sem grande força, roçou o dorso de Gregório e ressaltou sem causar-lhe dano. A que se seguiu, penetrou-lhe nas costas. Gregório tentou arrastar-se para a frente, como se, fazendo-o, pudesse deixar para trás a incrível dor que repentinamente sentiu, mas sentia-se pregado ao chão e só conseguiu acaçapar-se, completamente desorientado.”

A Carta ao Pai assim termina:

“Se não me equivoco muito, você ainda está parasitando em mim com esta carta (falaria o pai). A isso respondo que, em primeiro lugar, toda essa objeção, que pode em parte também se voltar contra você, não vem de você mas de mim. Nem mesmo sua desconfiança dos outros é tão grande quanto a minha autodesconfiança, para a qual me educou. Não nego à objeção uma certa legitimidade, que além do mais contribui com algo novo para a caracterização do nosso relacionamento. É claro que na realidade as coisas não se encaixam tão bem como as provas contidas na minha carta, pois a vida é mais que um jogo de paciência; mas com a correção que resulta dessa réplica — que não posso nem quero estender aos detalhes — alcançou-se a meu ver alguma coisa tão próxima da verdade que pode nos tranquilizar um pouco e tornar a vida e a morte mais leves para ambos”

A impressão avassaladora da leitura da Carta em 1972, quando eu seguia no ônibus para mais uma jornada no tempo de Médici, volta revigorada neste 2024. Franz Kafka é uma janela de civilização contra a barbárie, inclusive do Estado fascista de Israel hoje. A política mais uma vez atualiza um criador de humanidades. Saúde, Kafka!

 

Veja em: https://outraspalavras.net/poeticas/kafka-nos-100-anos-da-sua-morte/

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