Encontro com Luís Arce, na próxima terça, pode ser vital para relação entre os dois países. Para o Brasil, importa fortalecer estabilidade e boa vizinhança. Bolívia espera que Petrobras retome prospecção de gás e ajude a desenvolver indústria de fertilizantes
Por: Caio V. Higa, Giorgio R. Schutte, Igor Fuser, Isabelle Mayara S. Silveira, Leonardo Poletto, Luciana H. de Araujo e Sophia H. F. Macedo, no Observatório de Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil
Introdução
A Bolívia tem desempenhado um papel de destaque entre os fornecedores de energia para o Brasil desde a construção do Gasoduto Brasil-Bolívia (Gasbol) pela Petrobras em 1997 e a assinatura do contrato de fornecimento de gás por um período de vinte anos em 1999. O Gasbol representa uma das mais importantes obras de infraestrutura energética na América do Sul, simbolizando a integração energética entre Brasil e Bolívia. O Gasbol é operado pela Transportadora Brasileira Gasoduto Bolívia-Brasil (TBG), cuja composição acionária inclui a Petrobras (51%), a BBPP (29%), a YPFB (12%) e a GTB-TBG Holding (8%).
O acordo do Gasbol estabeleceu uma relação de interdependência econômica, permitindo ao Brasil diversificar suas fontes de energia e à Bolívia ampliar sua receita de exportação. As remessas bolivianas chegaram a representar, na primeira metade da década de 2000, cerca de 50% do gás natural consumido no Brasil.
Os ganhos financeiros para a Bolívia se tornaram especialmente expressivos a partir de 2006, quando o presidente Evo Morales, do Movimento ao Socialismo (MAS), em seu primeiro ano de governo, efetuou importantes alterações na legislação boliviana sobre os hidrocarbonetos. Entre outras medidas, ampliou dramaticamente a participação do Estado na renda obtida com as exportações de petróleo e de gás natural, com a correspondente redução da parcela apropriada pelas empresas estrangeiras que extraem esses combustíveis em território boliviano.
Pelo Decreto de Nacionalização, o governo boliviano adquiriu o controle sobre a indústria do petróleo e gás, ao mesmo tempo em que reativou a empresa estatal Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB). As políticas de nacionalismo energético adotadas na Bolívia refletem as demandas da sociedade que se manifestaram nas explosões de revolta popular conhecidas como “as guerra do gás” (em 2003 e 2005), quando dois presidentes (Gonzalo Sánchez de Lozada e Carlos Mesa) foram forçados à renúncia sob a pressão de movimentos de protesto contra políticas de exploração dos recursos energéticos percebidas como excessivamente favoráveis aos interesses estrangeiros, em prejuízo da economia nacional.
A era dourada do gás boliviano
Graças às medidas nacionalistas adotadas por Morales, e também aos altos preços internacionais da energia na maior parte do período, a Bolívia arrecadou cerca de US$ 50 bilhões em exportações de hidrocarbonetos (petróleo e gás) entre 2006 até 2022. Essa receita, obtida quase totalmente por meio das exportações de gás para o Brasil e para a Argentina, garantiu a estabilidade econômica da Bolívia, financiou importantes obras de infraestrutura e, principalmente, viabilizou um amplo conjunto de políticas sociais que reduziu a pobreza e melhorou as condições de vida da maioria desprivilegiada dos bolivianos. Do lado brasileiro, as importações do gás boliviano sempre se mostraram vantajosas, uma vez que o seu custo é inferior ao da produção doméstica de gás e, mais ainda, do gás natural liquefeito (GNL) importado de fornecedores de outras regiões do mundo, por via marítima.
No entanto, um conjunto de problemas e preocupações foram se acumulando nos dois lados dessa relação econômica mutuamente favorável. De lado do Brasil, embora houvesse uma compreensão com as políticas nacionalistas do governo de Morales, começou-se a buscar alternativas à dependência do gás boliviano. Com as descobertas do pré-sal, surgiu uma oportunidade de aumentar a produção nacional de gás, já que esse combustível é encontrado, com muita frequência, nos mesmos poços de onde se extrai o petróleo. Ao mesmo tempo, o Brasil passou a importar GNL em volumes cada vez maiores, com a construção de terminais de regaseificação em diversos pontos do litoral. Dessa forma, a participação do gás boliviano no abastecimento brasileiro de energia foi se reduzindo gradualmente.
Já no lado boliviano o governo se comportava como se as reservas de gás fossem inesgotáveis. Em seus discursos, Morales afirmava que a abundância de gás natural havia transformado a Bolívia numa potência econômica regional – nas suas palavras, o “coração energético da América do Sul”. A soma das exportações de gás para a Argentina e para o Brasil atingia em 2014 o volume recorde de 40 milhões de metros cúbicos diários, ao mesmo tempo que a oferta de gás no mercado interno boliviano se ampliava, reduzindo a pobreza energética no país. Em poucos anos, mais de 1 milhão de lares na Bolívia passaram a usufruir do fornecimento público de gás a baixos preços, um benefício que favoreceu mais de 5 milhões de pessoas.
A economia boliviana se expandiu em ritmo acelerado, com taxas de crescimento de 4% a 5% anuais, bem superiores à média dos demais países sul-americanos. Em uma década, o Produto Interno Bruto (PIB) do país quase quadruplicou – de US$ 9 bilhões em 2005 para US$ 33 bilhões em 2015. O salário mínimo aumentou 380% nesse intervalo, enquanto a inflação se mantinha relativamente baixa, em torno dos 5% ao ano. Não por acaso, Morales se reelegeu presidente em 2009, com 64% dos votos, e novamente em 2014, com mais de 61%, enquanto o MAS mantinha uma maioria de mais de dois terços dos votos no Congresso. A Bolívia se tornou um “Estado Plurinacional” em que a população indígena – majoritária – passou a ter os seus direitos plenamente reconhecidos.
Os tempos da estabilidade política se encerraram, porém, em 2016, quando o chamado “processo de mudanças” iniciado uma década antes sofreu sua primeira derrota. Morales submeteu a um referendo popular a demanda de que a Constituição fosse modificada de modo a permitir sua candidatura a um novo mandato presidencial em 2019, revogando a regra que impõe um limite de apenas dois mandatos consecutivos, como ocorre no Brasil. Derrotado pela estreita margem de 2,6% dos votos, Morales recorreu ao Judiciário e obteve a permissão para uma nova candidatura – decisão que deu alento a uma virulenta oposição de direita e polarizou a cena política em dois campos antagônicos, pró e contra a legitimidade do seu esforço em se reeleger mais uma vez.
As eleições de 2019 ocorreram num clima de intenso confronto político. Morales venceu por uma diferença mínima, dando margem a acusações de fraude que culminaram com um golpe de estado em que Morales renunciou sob a ameaça do principal comandante militar, enquanto o país enfrentava uma explosão de violência golpista protagonizada por forças policiais e milícias civis de extrema-direita. Na presidência foi instalada a senadora Jeanine Áñez, que tentou reverter as políticas progressistas do período anterior, mas naufragou em meio a escândalos de corrupção e a uma conduta desastrosa perante a pandemia da Covid-19. O fracasso do governo golpista levou a novas eleições, que trouxeram o MAS de volta ao poder em 2020 com a vitória de Luís Arce, ex-ministro da Economia nos mandatos de Morales e atual presidente da Bolívia. Áñez foi presa por atentar contra a democracia, assim como o principal líder da extrema-direita, Luís Fernando Camacho, que comandou o golpe de 2019. Ambos continuam no cárcere — e sua libertação foi uma das demandas do general Juan Zúñiga durante sua desastrada tentativa golpista de 26 de junho.
O fim de um ciclo econômico
Arce passou a governar em condições econômicas bem mais difíceis do que no período anterior de mandatos do MAS. As reservas internacionais do país, em moedas fortes, vêm caindo rapidamente, tanto como resultado da fuga de capitais por parte do empresariado local quanto da queda vertiginosa das receitas do gás natural. O crescimento da economia em 2024 deverá ficar em torno de 1,6%, de acordo com os cálculos do Fundo Monetário Internacional (FMI), depois de atingir 2,5% no ano passado. As exportações de hidrocarbonetos despencaram de US$ 6,6 bilhões em 2014 (seu ponto mais alto) para US$ 2 bilhões em 2023, o que representa um valor inferior ao das importações de combustíveis e de lubrificantes, que no mesmo ano foram de US$ 2,9 bilhões. A balança comercial boliviana começou a apresentar déficit em quase todos os meses, alcançando um resultado negativo em US$ 585 milhões ao final do ano passado.
Foi nesse cenário que, em 30 de agosto de 2023, o presidente Luis Arce, ao discursar em um evento para prefeitos filiados ao MAS, justificou a dificuldade de atender aos pedidos dos municípios revelando, que as reservas conhecidas de gás boliviano caminham para um rápido esgotamento. “De um tempo para cá há um declínio na produção, desde 2014 mais ou menos, que lamentavelmente foi caindo até tocar o fundo”, afirmou. Arce deixou claro que, a menos que novas descobertas de gás recuperem as reservas do país, em pouco tempo a Bolívia deixará sua condição de exportadora, encerrando as remessas para o Brasil. O fornecimento para a Argentina está se reduzindo rapidamente e deve terminar em setembro próximo, finalizando o contrato vigente desde 2006.
Existem duas explicações possíveis para a dramática queda nas reservas bolivianas. A primeira tem a ver com os fatores geológicos que, em última instância, determinam a viabilidade ou não de qualquer empreendimento em petróleo e gás. Simplesmente não teriam sido encontradas novas reservas de hidrocarbonetos no país com os recursos técnicos disponíveis. A outra explicação é econômica e tem a ver com a “nacionalização” da indústria do petróleo e do gás em 2006. Na ocasião, as empresas estrangeiras se submeteram, a contragosto, à revisão dos contratos imposta pelo governo de Morales – em parte para evitar a perda dos investimentos já feitos e dos equipamentos instalados, em parte porque as novas condições, embora menos vantajosas para o capital externo, ainda assim mantinham margens de lucro aceitáveis. Entre esses investidores se encontravam gigantes do setor, como a British Gas, a Total (francesa) e a Repsol (atualmente uma joint venture espanhola e chinesa), além da Petrobras, que na época era a maior empresa atuante na Bolívia e, ainda hoje, exerce um papel essencial na economia daquele país, como operadora dos dois maiores campos de gás natural, principal acionista do Gasbol e maior compradora do gás boliviano. Essas empresas estrangeiras, incluindo a Petrobras, reduziram seus investimentos na procura de novas reservas em território boliviano, concentrando-se, em vez disso, em extrair rapidamente os hidrocarbonetos encontrados durante o período neoliberal e lucrar com as exportações. Isso foi possível porque os novos contratos, assinados em 2007 com as empresas estrangeiras, não incluíam a obrigação de investir na reposição das reservas. Já os investimentos em prospecção feitos pela própria estatal boliviana YPFB foram considerados insuficientes por muitos especialistas e, de todo modo, não alcançaram os resultados esperados. O resultado mais relevante até agora foi a descoberta de uma reserva de 230 bilhões de pés cúbicos de gás natural em um poço na província de Tarija, em dezembro de 2023 – um volume significativo, mas ainda muito pequeno quando se considera que, de acordo com os cálculos mais aceitos pelo mercado, as reservas provadas de gás bolivianas caíram de cerca de 10 trilhões de metros cúbicos em 2005 para cerca 4 trilhões na atualidade.
O fator Argentina
Antes da eleição de Javier Milei na Argentina,a Bolívia aumentou as exportações de gás natural à Argentina, e realizou um corte parcial no fornecimento ao Brasil, na tentativa de se obter melhores preços pelo acordo junto à Petrobrás. Parte dessa tomada de decisão se relacionava ao alinhamento entre Fernández e Luis Arce, que presidiam respectivamente Argentina e Bolívia na época, e o distanciamento com as relações do governo Bolsonaro. Com a produção de gás de xisto (shale gas) da reserva de Vaca Muerta no sudoeste de Argentina na região de Neuquén (Patagônia) e a construção de um gasoduto que disponibiliza o gás para as regiões de consumo no norte, a Argentina ganhará uma independência com relação ao gás da Bolívia, o que significa que a Bolívia dependerá mais do mercado brasileiro, tanto da Petrobras, como agora também empresas do setor privado nacionais e internacionais, como a Shell.
Surgiu uma perspectiva de a Argentina exportar futuramente gás excedente de Vaca Muerta para o Brasil. Esse foi o argumento utilizado pelo governo Lula em 2023, quando sinalizou uma possibilidade de o BNDES financiar parte do gasoduto que tinha na época o nome de Nestor Kirchner, ainda no governo de Fernández. Há um problema, porém. Embora as perspectivas com relação à produção de Vaca Muerta sejam boas, a maior parte da sua produção será para consumo interno e a garantia de fornecimento para o Brasil não está dada.
Diante disso, não compensaria pensar desde já na construção de novos gasodutos. Uma alternativa é usar a infraestrutura que liga a Argentina à Bolívia para escoamento desse potencial de exportação argentina para o Brasil. Isso entraria também nas negociações com a Bolívia. O governo Arce, da sua parte, quer discutir projetos de industrialização do gás no próprio país, em particular para a produção de fertilizantes.
A perspectiva brasileira
No Brasil, o impacto da queda das reservas e da exportação de gás na Bolívia é mitigado pelas importações de GNL, que podem aumentar com a expansão da capacidade de regaseificar e introduzir esse combustível no mercado interno, e, principalmente, com o acelerado crescimento da produção de gás no pré-sal. De acordo com os critérios da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), uma instituição do Ministério das Minas e Energia, a oferta de gás natural no mercado brasileiro é resultante de três fontes principais: o gás produzido nacionalmente, o gás importado por gasodutos internacionais (basicamente o Gasbol) e o gás importado na forma de GNL em terminais de regaseificação. Em 2022, segundo dados da EPE, 68% do gás consumido no Brasil era de produção nacional, quase todo do pré-sal, e 32% era importado. Dessas importações, 1/3 correspondia, aproximadamente, ao GNL e 2/3 às remessas recebidas por meio do Gasbol, o que significa uma parcela levemente superior a 20% de participação boliviana no total da oferta de gás no mercado brasileiro.
Ainda assim, a situação do gás boliviano é um assunto de alta relevância para o Brasil, por dois motivos principais. Primeiro, pelo interesse brasileiro na estabilidade política, na prosperidade econômica e no bem-estar social na Bolívia. Uma crise no país vizinho, em qualquer dessas áreas, certamente terá impactos negativos no Brasil. O declínio na produção e a incerteza em relação à capacidade de reposição das reservas geram impactos significativos não apenas no setor energético, mas também nas relações comerciais e diplomáticas entre os dois países e na estabilidade econômica da região como um todo. O segundo motivo se relaciona com a importância que o gás natural boliviano ainda mantém no leque de fontes energéticas para a economia brasileira. Vinte por cento é muito gás e, em diversos setores da indústria, altamente intensivos na utilização de energia, esse combustível abastece diretamente o processo produtivo, sem passar pelo seu uso nas usinas termelétricas. Além disso, trata-se de um gás com preços competitivos que pode servir para produção de fertilizantes nitrogenados, o que poderia ser realizado na própria Bolívia.
A visita de Lula
No encontro com Lula, Arce tentará atrair investimentos para recuperar as reservas bolivianas e também para viabilizar a produção, com o gás boliviano, de fertilizantes a serem exportados para o Brasil. Em entrevista ao portal EPBR, especializado em energia, o embaixador boliviano em Brasília, Horacio Villegas, acenou para a possibilidade de que, em caso de reeleição de Luis Arce em 2025, a Bolívia amenize suas políticas nacionalistas com a finalidade de atrair investidores. Na entrevista, concedida aos jornalistas André Ramalho e Gardante, do EPBR, o embaixador sinalizou para a busca, pelas autoridades bolivianas, de um ponto de equilíbrio, uma espécie de meio-termo entre a postura liberal adotada pelos governantes do seu país antes de 2005, quando o capital estrangeiro ingressou no setor energético da Bolívia com condições altamente vantajosas, e a linha fortemente nacionalista adotada a partir das “guerras do gás” e da posse de Evo Morales como presidente.
Mas tudo ainda é muito incerto no cenário político boliviano, marcado, nos últimos dois anos, pela divisão do partido governante, o MAS, entre uma ala liderada pelo presidente Arce e a outra, pelo ex-presidente Evo Morales. Ao indicar Arce como candidato às eleições presidenciais de 2020, Morales imaginava que poderia exercer influência decisiva no exercício do poder, o que não ocorreu, levando os dois dirigentes à ruptura política. Hoje, Morales luta para viabilizar sua candidatura às próximas eleições presidenciais, mas esse projeto é bloqueado por uma decisão judicial que – ao contrário daquela que lhe permitiu concorrer em 2019 – considera-o inelegível, de acordo uma controvertida interpretação da Constituição segundo a qual ele já esgotou as possibilidades de exercer a presidência. Arce, por sua vez, é tido como provável candidato à reeleição, embora ainda não tenha anunciado essa intenção oficialmente. A recente tentativa de golpe, envolvida em teorias conspiratórias para todos os gostos, joga mais lenha nas disputas políticas, criando um ambiente de intrigas que exigirá de Lula muita cautela no tratamento dos dilemas energéticos entre os dois países.
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