Pequim adianta-se ao resto do mundo e começa aplicar lei que dá transparência à circulação das informações geradas em rede – e as regula. Usuários e o conjunto da sociedade se beneficiarão – para desgosto das Big Tech dos EUA. No Brasil, tramita projeto com igual sentido
Por: Luiz Alberto dos Santos e James Gorgen
Há quase dois anos, o governo chinês vem implementando uma silenciosa, complexa e ousada reforma econômica. Silenciosa porque toca em um assunto que globalmente permanece invisível por razões geopolíticas. Complexa porque estruturará a base do seu atual sistema de capitalismo de estado mas, ao mesmo tempo, terá impacto pulverizado em diversos setores da sociedade. E ousada porque, pela primeira vez, uma nação pode vir a desafiar de forma sistêmica o cerne do modelo de negócios que há mais de duas décadas é a espinha dorsal da nova economia dos Estados Unidos.
Sejam pessoais, corporativos ou públicos, os dados são o principal insumo dos serviços e mercados surgidos com as novas tecnologias e o mais sólido alicerce de uma economia digital que já representa 10% do respeitável PIB chinês, mas também catapultada pela indústria tradicional pós fenômeno da transformação digital.
Aprovada em dezembro de 2022 pelo Comitê Central do Partido Comunista da China e pelo Conselho de Estado, a diretriz com 20 medidas-chave estabeleceu que a arquitetura básica de dados do país envolveria o estabelecimento, por meio de lei, de um sistema de direitos de propriedade de dados, um sistema de circulação e negociação, um sistema de distribuição de receitas e um sistema de governança de segurança.
O país também decidiu que tomaria medidas para aproveitar ao máximo o papel dos recursos de dados, reduzir o limite para as entidades do mercado terem acesso a estes ativos intangíveis, passar a registrá-los nas demonstrações contábeis e promover o compartilhamento dos dividendos do desenvolvimento da economia digital por e para todos.
Na semana passada, pudemos conhecer o plano em mais detalhes. Falando durante o 15º Encontro Anual dos Novos Campeões do Fórum Econômico Mundial, também conhecido como Davos de Verão, em Dalian, província de Liaoning, o chefe da Administração Nacional de Dados (NDA, na sigla em inglês) criada em outubro de 2023 para dar conta da reforma, Liu Liehong, fez um resumo dos esforços nacionais em torno do tema.
Encarando os “elementos” de dados como um novo fator de produção, o dirigente da autoridade que supervisiona a economia e a sociedade digital no país disse que a China está intensificando seus esforços no sentido de criar um ecossistema econômico baseado em dados. O objetivo é permitir que as empresas incluam recursos de dados como “ativos intangíveis” em suas demonstrações financeiras e incentivá-las ainda mais a desenvolver e utilizar dados, promover a circulação e o comércio dos mesmos e viabilizar o desenvolvimento social e econômico gerado a partir desta riqueza.
De acordo com um normativo divulgado pela autoridade e 16 outros departamentos governamentais em janeiro, serão elaborados projetos para avançar na aplicação de elementos de dados em 12 campos importantes, como manufatura industrial, agricultura moderna, circulação comercial, transporte, serviços financeiros, inovação tecnológica, cultura e turismo.
Na linha dos data spaces europeus, o país criará mais de 300 cenários típicos de aplicação destes elementos de dados, dobrará a escala de transações e criará um grupo de comerciantes de dados (data brokers) com forte capacidade de inovação e organizações de serviços profissionais de terceiros. “Expandir os cenários de aplicação de dados é um pré-requisito para aproveitar ao máximo o efeito multiplicador dos elementos de dados”, disse Ouyang Rihui, reitor-assistente do Centro de Pesquisa de Economia da Internet da China na Universidade Central de Finanças e Economia.
Quando se fala em China, os números são sempre monumentais. Inclusive, na área de dados. No ano passado, a escala de poder de computação atingiu 230 EFLOPS, ficando em segundo lugar no mundo. Com mais de 2.200 mil centros em todo o país, esta capacidade tem crescido a aproximadamente 30% ao ano. Em termos de armazenamento de dados, o volume acumulado atingiu 1,73 zettabytes em 2023, com sua taxa de utilização do espaço de armazenamento subindo para 59%.
Na produção de dados, a China gerou 32,85 zettabytes no mesmo período, um aumento de 22,44% em relação ao ano anterior, já que o país teve um crescimento explosivo na produção de dados não estruturados durante o período. O rápido desenvolvimento das tecnologias 5G e de inteligência artificial, juntamente com o uso generalizado de dispositivos inteligentes, contribuiu significativamente para o aumento no volume total de dados também por meio da criação de conteúdo e mídia audiovisual. Com isso, a meta de ter sua economia digital sendo responsável por 10% do PIB, prevista no 14º Plano Quinquenal (2021-2025), foi alcançada dois anos antes do previsto. Em 2020, este percentual representava 7,8% do produto interno[1].
E a estratégia do Plano Quinquenal continua em plena implementação não apenas internamente. Ao longo deste ano, por exemplo, a China vem explorando com a Alemanha um acordo bilateral para permitir a transferência de dados gerados por veículos autônomos para seus fabricantes. A declaração de intenções aborda diretamente a questão do livre fluxo transfronteiriço de dados (crossborder data flows), um dos pontos mais sensíveis atualmente nas negociações da Organização Mundial do Comércio (OMC), como mostrado aqui.
Do lado chinês, isto representou um passo importante na flexibilização da política após o ano passado, quando os reguladores haviam endurecido as regras de dados para o setor automotivo, propondo a proibição de veículos inteligentes na China de transferir dados diretamente para o exterior. Cabe destacar que com grandes players internacionais na economia digial – como Baidu, Tencent e Alibaba – a China tem interesse em flexibilizar a direcionalidade de seu fluxo de dados.
Ações globais
O movimento da China não é isolado. Em outras partes do mundo, a chamada soberania de dados ganha diversos arranjos e instrumentos para ser afirmada devido à percepção de que os grandes conglomerados dos EUA estão se apropriando destes ativos sem qualquer contrapartida, gerando um grande fator de exclusão de novos entrantes neste mercado global e criando o efeito conhecido como winner-takes-all. É o caso da União Europeia com seus Data Act, Data Governance Act e os espaços de dados em 14 segmentos econômicos. Da Coreia do Sul, com o Digital New Deal. E com países como Indonésia e África do Sul, que estão questionando a moratória da OMC sobre o fluxo transfronteiriço de dados e transmissões eletrônicas no comércio digital.
Indo além do mundo empresarial, a economia baseada nestes recursos também tem sua base social com ações que estão exercitando o direito de propriedade dos dados por parte dos cidadãos a fim de que extraiam valor dos mesmos. Inúmeras iniciativas ao redor do globo buscam criar condições e regras para trazer este controle para as mãos dos principais interessados, garantindo maior segurança, privacidade e alguma renda. Projetos como Solid e Liberty são os mais conhecidos, mas movimentos e arranjos denominados genericamente como data collaboratives estão permitindo que públicos específicos criem suas federações de dados estabelecendo maior autonomia e transparência na gestão e uso deste recurso cada vez mais precioso[2].
A invisibilidade e os silêncios em torno dos aspectos econômicos envolvidos no debate sobre dados permitiram que seus principais importadores e processadores – as empresas-plataformas dos EUA – estabelecessem basicamente um mercado paralelo, onde a coleta e circulação desta “commodity” é feita de forma subliminar e totalmente desregulada. Cada vez que subimos uma foto em uma rede social, curtimos um texto, escrevemos uma recomendação de produto ou qualquer outra interação do gênero trabalhamos para que esta engrenagem se movimente. Calcula-se que no ano que vem os usuários de internet farão, em média, 4.900 destas operações por dia, uma a cada 18 segundos.
Esta expansão desregrada de mercados baseados em dados elevou exponencialmente a exploração de modelos de negócios baseados na economia da atenção que estão por trás do trilionário valor de mercado das principais empresas que controlam estes ativos. Quanto mais estas empresas sabem sobre você, e com isso conseguem traçar seu perfil de forma detalhada, mais elas precisam prendê-lo nesta linha de montagem para que novos dados sejam gerados e possam ser comercializados diretamente ou por meio de publicidade segmentada.
Tudo indica que não será fácil reverter ou arrefecer este avanço. Os mercados digitais liderados por estes conglomerados cresceram e se expandiram nos últimos 20 anos sem que fosse colocada luz sobre este fenômeno do ponto-de-vista econômico. Dominada por juristas, a atenção principal de legisladores e reguladores sobre temas da agenda digital neste período era apenas com a proteção de direitos. Todas as etapas da cadeia de valor (geração, coleta, armazenamento, análise e uso) de dados pessoais trazem embutidos riscos à privacidade e segurança da informação que precisavam ser contidos ou mitigados.
Legítima e necessária, esta preocupação desencadeou uma onda de regulamentações em diversos países, tendo o Brasil chegado ao seu marco legal – a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) – em 2018. Junto com esta tendência, desde 1998 corria em paralelo, de forma mais subliminar no âmbito dos acordos comerciais, o predomínio da noção de livre fluxo transfronteiriço de dados, o que impede até hoje que as transmissões eletrônicas sejam tarifadas no nível aduaneiro e cria constrangimentos para a imposição de tributos no âmbito doméstico.
Tentando se antecipar à tendência de empoderamento e autonomia, as big techs lançaram sua própria iniciativa vinculada à portabilidade de dados. Criada em 2018, mas se tornando operacional apenas no ano passado, a Data Transfer Initiative (DTI) se propõe a ser uma comunidade de experts trabalhando por políticas de transferência de dados. Financiado por Google, Meta e Apple, o think tank advoga contra a participação de terceiros na relação de compartilhamento de dados dos usuários com os hosts, ou seja, as plataformas das big techs.
Mas há algum risco inerente na transferência de dados pessoais diretamente para terceiros, pois o destinatário dos dados pode não ser capaz de (ou pode nem mesmo ter a intenção de) manter os dados e o titular dos dados seguros. Isso pode parecer uma tensão, pois o usuário solicitou ao host que transferisse os dados do usuário para o destinatário especificado, e a exploração do risco de transferência contempla a possibilidade de o host de dados dizer “não”, sustenta a entidade em seu blog[3].
Caminhos para o Brasil
Envolvido em debates sobre regulação de plataformas digitais e de sistemas de inteligência artificial, nosso país tem um território fértil para que a ideia de uma política para a economia baseada em dados ganhe força. Na semana passada, por exemplo, recebeu tração no Congresso Nacional o PLP 234/2023, de autoria do deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP), que busca estabelecer um marco regulatório inédito no mundo, para assegurar o direito à propriedade de dados, dispor sobre o Ecossistema Brasileiro de Monetização de dados, além da destinação de recursos para o Fundo de Erradicação e Combate à Pobreza.
De uma forma resumida dado que merece uma análise própria, a “Lei Geral de Empoderamento de Dados” visa estabelecer um marco legal para a proteção e monetização de dados pessoais no Brasil, que envolve a coleta e análise de dados pessoais, a fim de criar perfis de consumidores e direcionar publicidade personalizada, desenvolver produtos e serviços, identificar padrões comportamentais, e gerar novos conjuntos de informações de interesse de quem os adquire, produzindo um benefício quantificável para quem coleta e processa os dados.
Inspirado na regulamentação do open finance já em vigor no Brasil, o PLP propõe a criação do Ecossistema Brasileiro de Proteção de Dados, garantindo o direito de propriedade do titular dos dados, as regras para a cessão de uso desses dados, e sua participação na renda gerada pelo uso e compartilhamento desses dados. Define a estrutura responsável pela governança do processo, garantindo representatividade, pluralidade das instituições participantes, acesso não discriminatório, mitigação de conflitos de interesse e sustentabilidade do Ecossistema Brasileiro de Monetização de Dados.
Haverá um contrato, regido pelo disposto nesta Lei Complementar e pelo Código Civil Brasileiro, e normas legais ou regulamentares específicas que vão assegurar a participação do titular dos dados nos resultados econômicos decorrentes da sua distribuição, agrupamento, compartilhamento, processamento ou disseminação pelas instituições detentoras de contas de dados, transmissoras de dados, receptoras de dados ou iniciadoras de transação de dados[4].
O PLP 234, de forma alinhada ao que vem ocorrendo em outros países, propõe ainda a tributação das receitas provenientes da monetização de dados pelas empresas participantes do ecossistema, com a adoção de alíquotas diferenciadas vinculadas ao Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza. Por fim, os dados gerados no Brasil, por cidadãos brasileiros ou aqui residentes, poderão ser compartilhados para uso no exterior, mas deverão ser observadas as regras fixadas pelo projeto para a proteção do interesse dos titulares dos dados.
Caso venha a ser aprovado, o PLP 234 colocará o Brasil na vanguarda dessa tendência, em termos mundiais. É a primeira proposição legislativa que, de fato, concretiza o que vem sendo objeto de discussões em fóruns globais relevantes e por organismos internacionais e experts em tecnologia e desenvolvimento, como Jaron Lanier e Daron Acemoglu.
A proposta é consistente com recomendações de organizações internacionais, como a OCDE e o Fórum Econômico Mundial e debates travados na Comissão Europeia há mais de 20 anos sobre a necessidade de garantir a propriedade de dados para o seu titular, ou seja, quem gera o dado a partir dos relacionamentos comerciais, bancários ou mediados por tecnologia. E se insere no debate mais amplo sobre o uso da inteligência artificial para o tratamento de dados, já que protege a propriedade dos dados, qualquer que seja a sua destinação.
O quanto vai ser acumulado, individualmente, ainda não é consenso. Algumas estimativas indicam que a monetização de dados poderá assegurar uma remuneração média de US$ 50 por mês para cada titular de dados, ou seja, quase R$ 300 mensais. Porém, trata-se de estimativas iniciais, e os valores poderão aumentar na medida em que mais e mais dados sejam gerados e gerenciados. O mercado potencial para a monetização de dados é estimado em cerca de US$ 1,8 trilhão, e que pelo menos 20% desse valor poderá ser revertido para os titulares dos dados, que hoje nada recebem pelo compartilhamento de seus dados.
O ex-presidente do Banco Central Gustavo Franco, em entrevista à Bloomberg publicada nesta quinta-feira (4), fez uma defesa aberta da necessidade de se empoderar os cidadãos para a monetização de dados. Ele sustentou que existe um mercado mundial de dados que se movimenta de forma paralela à economia formal, mas que é a espinha dorsal da economia digital. Menos de dez empresas no planeta geram a maior parte da riqueza vinculada a estes ativos intangíveis, que coletam sem qualquer contrapartida aos detentores dos direitos ou mínima regulação estatal.
Parte desse desafio pode ser atacado com propostas como o PLP 234 ou os Projetos Solid e Liberty, mas existem diversas outras variáveis que guardam relação com pautas vinculadas à regulamentação de inteligência artificial, regulação econômica de plataformas digitais, criação de data spaces, alterações no mundo do trabalho, estabelecimento de infraestrutura pública digital, revisão de leis de proteção de dados pessoais e do conceito de livre fluxo transfronteiriço de dados, que por sua vez incide em questões de comércio exterior e tributação.
Tudo está interligado e amalgado pela ideia de soberania digital, precisando ser abordada de forma estratégica sob pena do Brasil e os países do Sul Global ficarem de fora do mais recente fator de geração de renda e de valor entre as nações.
Recentemente, o governo brasileiro também demonstrou interesse pelo tema dos dados do ponto de vista geopolítico. Em um evento da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 13 de junho, em Genebra, o presidente Lula foi direto ao ponto ao afirmar que a inteligência artificial seria baseada na “esperteza de empresas que acumulam todos os dados de todos os seres humanos sem pagar um único centavo de dólar para o povo“. Lula disse que era uma “tarefa revolucionária” mudar esse quadro.
A visão do presidente brasileiro não parece estar tão distante das ações empreendidas por outras nações, mas que ainda não encontram eco nos fóruns globais de governança digital. Propostas como as debatidas no G20, no G77, bem como as elaboradas pelo secretário-geral da ONU e pelas agências do sistema multilateral apenas tangenciam as pautas vinculadas à economia digital e, muito menos, abordam diretamente a questão da concentração dos mercados de dados pois continuam insistindo nas abordagens relativas à proteção de privacidade e outros direitos individuais ou coletivos.
Algumas instituições internacionais, como OCDE e Unctad, ainda se esforçam para dar concretude ao desafio tentando mensurar o tamanho da economia de dados. Entidades da sociedade civil, mais otimistas, trabalham com o conceito de data for development onde esta commodity é aliada a novas tecnologias para embasar projetos que objetivam enfrentar grandes desafios globais, basicamente incentivando o uso dos dados para o bem comum. Em resumo: enquanto o mundo bate cabeça sobre o que fazer com este novo ativo, a China parece ter encontrado seu caminho, e o PLP 234/2023 traz à luz uma iniciativa concreta para assegurar a soberania de dados dos brasileiros. Resta saber se o Brasil também pretenderá trilhar esta estrada.
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