Por: Vitor Tavares | Crédito Foto: Henry Chirinos/EPA-EFE/REX/Shutterstock. Prostesto em Caracas após o CNE anunciar a reeleição de Maduro
O professor Raphael Vasconcelos, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), lembra com detalhes quando teve de correr para o bunker dentro do Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela (CNE), em Caracas, logo após a eleição que levou mais de 12 milhões de venezuelanos às urnas em 28 de julho.
O órgão eleitoral do país havia acabado de declarar Nicolás Maduro presidente reeleito, e, do lado de fora, opositores que contestavam o resultado protestavam.
“Ouvia as explosões, enquanto os observadores eleitorais se protegiam”, recorda.
Dali, só daria tempo de Vasconcelos ir ao hotel, pegar as malas, seguir ao aeroporto de Maiquetía, na região metropolitana de Caracas, e voltar ao Brasil, antes que a situação saísse do controle.
Desde o anúncio da reeleição de Maduro, a Organização das Nações Unidas (ONU) estima que 2,4 mil pessoas foram detidas pelo regime venezuelano. O procurador-geral da Venezuela, Tarek William Saab, confirmou que ao menos 25 pessoas morreram nos protestos que se seguiram ao dia da eleição.
Pesquisador dos sistemas eleitorais da América Latina e ex-secretário do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul, Vasconcelos reconhecia há tempos o sistema eleitoral venezuelano como o melhor da região. “Eu defendia com unhas e dentes”.
“Porque, além da urna eletrônica, que imprime um boletim ao fim do processo, eles também têm o voto físico colocado em outra urna. Essa urna física é aberta em 53% dos colégios e você pode comparar com o boletim da eletrônica”, explica o professor, que esteve no país em outras eleições.
Até a própria oposição acreditava no sistema de votação, apesar das desconfianças sobre o que acontece antes e depois do pleito.
O professor da Uerj conseguiu ir a Caracas a convite do CNE e diz ter sido o único brasileiro num grupo de cerca de 50 pessoas que acompanharam de perto a votação, entre outros convidados de países latinos, africanos e até de Belarus.
Mas Vasconcelos diz agora estar com “sensação de desolação” pelo fato de o órgão eleitoral venezuelano não ter apresentado ainda os dados detalhados da votação.
Até agora, o CNE apenas apontou vitória de Maduro, mas sem disponibilizar os dados detalhados dos boletins de urna – algo que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) faz no Brasil, por exemplo.
O órgão eleitoral do país, que é controlado por um aliado de Maduro, aponta a vitória do presidente com cerca de 52% dos votos, contra 43% do principal candidato da oposição, Edmundo González Urrutia.
Na tarde desta terça-feira (13/8), duas semanas após o pleito, o site do CNE seguia fora do ar. Logo após o anúncio do resultado, o órgão disse que investigava um “ataque hacker”, o que teria impedido a divulgação dos dados.
Por outro lado, a oposição comandada por María Corina Machado diz ter recolhido os boletins de urna em mais de 70% dos locais de votação. Num site, a campanha divulgou por conta própria fotos dos boletins e fez uma apuração paralela, apontando Edmundo González como vencedor, com mais de 67% dos votos.
O professor Raphael Vasconcelos elaborou um relatório logo após as eleições, em nome do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Direito Internacional (Nepedi) da Uerj, em que já pedia essa divulgação dos dados detalhados por mesa eleitoral, para que as dúvidas fossem sanadas.
“Estou muito incomodado com CNE, com a forma não transparente e a não divulgação dos dados muito claros, que permitiria a comparação [entre os dados oficiais e o da oposição]. Isso coloca em dúvida a democracia venezuelana”, avalia.
“Mas também não tenho como garantir que os boletins postados pela oposição são verdadeiros”, diz o professor.
Algumas análises, porém, já deram respaldo aos resultados da oposição. Logo após o anúncio do CNE, o jornal New York Times publicou uma avaliação com base em dados divulgados pelo grupo de pesquisadores do projeto Alta Vista, que inclui o especialista brasileiro Dalson Figueiredo, da Universidade Federal de Pernambuco.
“Vários analistas independentes de pesquisas e eleições revisaram a abordagem dos pesquisadores e disseram que, com base nos números compartilhados, as estimativas pareciam críveis”, escreveu o jornal, que ressaltou que o grupo estaria associado à oposição.
O Alta Vista criou uma amostra aleatória de mais 1 mil máquinas de votação em todo o país e projetou a amostra para representar proporcionalmente a geografia e a partidarismo do país.
O New York Times, entretanto, disse que não pôde “verificar de forma independente os números”. Maduro, por sua vez, também tem insistido que os dados de boletins divulgados pela oposição são falsos.
Mas, com base nesses resultados, países como EUA e Argentina reconheceram González com o vencedor das eleições.
Governos de países como o Brasil e Colômbia, por sua vez, têm insistido para que o CNE apresente os dados detalhados, antes de reconhecer o pleito.
Cadê os dados?
O pesquisador Raphael Vasconcelos detalha que o que precisa ser divulgado pelo CNE venezuelano são os dados “desagregados” e “detalhados”, em que poderiam ser conferidos os resultados em cada local de votação.
“Países com voto de papel precisam das atas da contagem manual. Você joga os votos numa ata em papel e essa ata é levada para o órgão eleitoral. É com base nessas atas que você faz a apuração”.
“No Brasil e na Venezuela, você não tem ata, o voto é transmitido de forma eletrônica para o centro de apuração. O que a gente tem é o boletim de urna, que é aquele extrato que sai no fim da votação e que você imprime”, explica.
Tendo em mão os resultados dos boletins por local de votação, a população poderia conferir se bate com o resultado divulgado pelo CNE.
“Se não confere, vai para os meios judiciais. Mas a oposição da Venezuela parte do pressuposto que a Justiça é dominada pelo chavismo, e eu não tiro a razão deles”, avalia Vasconcelos.
Maduro disse que entregou os boletins ao Tribunal Supremo de Justiça (TSJ), que ficaria responsável para atestar sua reeleição. O presidente descreveu as alegações da oposição como uma “tentativa de golpe de Estado” e pediu ao TSJ que responda a esse “ataque ao processo eleitoral”.
Mas há questionamentos sobre a imparcialidade do TSJ. Todos os seus membros foram nomeados por parlamentos dominados pelo chavismo, e alguns deles têm histórico com o partido de Maduro.
Observação x acompanhamento eleitoral
No documento divulgado pelo Nepedi da Uerj logo após o resultado das eleições, o professor Raphael Vasconcelos, oficialmente credenciado pelo CNE, se mostrava bastante incomodado com os comunicados e relatórios divulgados rapidamente por outros observadores, com questionamentos à eleição em si.
No dia 30 de julho, por exemplo, o Centro Carter, renomada organização que participou das eleições venezuelanas como observadora, emitiu comunicado dizendo que a eleição “não pode ser considerada democrática”.
Para Vasconcelos, as avaliações eleitorais deveriam se ater ao pleito em si, e não ao processo anterior ou posterior. É o que se chama “observação eleitoral”.
O Departamento de Assuntos Políticos e de Consolidação da Paz das Nações Unidas (DPPA) define que a observação eleitoral é a “coleta sistemática de informações e avaliação de um processo eleitoral”.
Já o TSE, no Brasil, fala em “procedimento sistemático de acompanhamento e de avaliação do pleito”.
Ou seja, as missões teriam o papel de avaliar objetivamente os fatos nos dias de votação – além dos dias imediatamente anteriores e posteriores.
Segundo o professor brasileiro, tudo ocorreu com tranquilidade em Caracas no dia da eleição, em 28 de julho, com as pessoas demonstrando apoio aos candidatos que queriam, inclusive na presença de aparato de segurança.
“É totalmente inapropriado, logo depois de um pleito eleitoral, você soltar comunicados tratando de questões pré-eleitorais, sobre registros de eleitores, impugnação de candidatura. Você não espera acontecer o pleito eleitoral para você jogar mais gasolina naquilo que já está em combustão”, avalia.
Para Vasconcelos, órgãos que deveriam fazer apenas a “observação eleitoral”, acabaram entrando na seara do “acompanhamento eleitoral”, que seria algo mais complexo e de longo prazo.
Antes das eleições, o processo eleitoral venezuelano já vinha sendo questionado. Duas possíveis candidatas da oposição, María Corina Machado e, depois, Corina Yoris, tiveram as cadidaturas impedidas. Edmundo González, que acabou sendo o candidato, dizia em entrevistas que as “eleições na Venezuela não são justas ou limpas”.
Também havia uma expectativa de que o processo eleitoral da Venezuela fosse observado por mais atores.
Dois meses antes, o governo Maduro cancelou o convite para que observadores da União Europeia monitorassem o pleito.
Já o TSE brasileiro também desistiu de última hora enviar observadores para acompanhar a eleição, após Maduro fazer ataques contra o sistema eleitoral brasileiro.
Diante da espera sobre os dados do CNE, o professor que esteve em Caracas avalia que a decisão do Brasil de “neutralidade” ainda é a mais adequada ao momento.
“É a posição de um de uma liderança regional. O Itamaraty sempre teve essa postura, de política de Estado independentemente do governo”, diz o ex-membro do Tribunal do Mercosul.
Mas Vasconcelos reconhece que a situação está ficando “insustentável”, “manchando todo o processo eleitoral venezuelano”.
“Eu olhava para o processo eleitoral e dizia que podia acusar Venezuela de tudo no pré-eleitoral dele, que é aquilo que chamo de acompanhamento, mas no momento da votação, era impecável. A sensação é de desolação.”
Veja em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3w68484652o
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