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Os candidatos a prefeito que usam propostas idênticas em planos de governo: “Nada se cria, tudo se copia”

Por: Luiz Fernando Toledo | Crédito Foto: Getty Images. Propostas de candidatos a prefeito usam textos iguais e até trechos de documentos usados em eleições anteriores

Ao menos 71 candidatos às eleições municipais deste ano prometem criar um programa de nome Arte pra Guri, “com ações educativas, assistenciais e culturais para crianças do município”. Em uma versão alternativa, com a mesma descrição, o nome muda para “Arte pra Piá” ou ainda “Arte pra Criança”.

Outros 220 postulantes às prefeituras sugerem a “criação do Programa Natal Sem Fome no município”.

No esporte, 339 candidatos garantem que oferecerão “o acesso de todos às atividades físicas, desportivas e de lazer e criaremos programas específicos para atingir a todos os públicos.”

Na área ambiental, querem “políticas de educação ambiental continuada, incentivo à reciclagem de materiais e uso equilibrado dos recursos naturais e energia”, frase apresentada por pelo menos 306 políticos.

Uma análise de texto de cerca de 15 mil propostas de candidatos a prefeito de todo o país feita pela BBC News Brasil revela informações genéricas, muitas vezes reutilizadas na íntegra, palavra a palavra, de outros documentos.

Não há uma única fonte primária: há textos que foram usados em eleições anteriores por outros candidatos, textos compartilhados entre colegas de partido, partes extraídas de guias de como fazer um plano, diretrizes genéricas dadas pelos partidos, dentre outros casos.

Os arquivos foram obtidos pela BBC News Brasil diretamente do site do Tribunal Superior Eleitoral e transformados em um único documento, para facilitar as análises – cerca de 5% dos planos foram descartados por não estarem em um formato legível por máquina (como imagens). Havia ainda 300 pessoas que não tinham nenhum documento protocolocado no site do tribunal.

Apresentar um plano de governo é um requisito obrigatório para qualquer pessoa se candidatar a cargos eletivos no Brasil, segundo a lei eleitoral. Mas não há nenhuma regra específica sobre como esses planos devem ser elaborados e nem mesmo sobre como serão executados, se a pessoa for eleita.

Na prática, isso resulta em propostas de governo de todo o tipo: há arquivos apresentados em forma de imagem ou slides, arquivos com centenas de páginas e outros com apenas uma.

O candidato do PL a prefeito de Aparecida (interior de São Paulo), Zé Louquinho, por exemplo, apresentou talvez a proposta mais sucinta das eleições: “As principais propostas e metas da coligação Aparecida é Nossa História são Saúde, Educação, Emprego, Segurança e Meio Ambiente”, texto que aparece na primeira e única página do projeto. Ele não respondeu ao pedido de entrevista.

Imagem de proposta de candidato a prefeito apresentada ao TSE
Crédito,TSE/Reprodução. Proposta de candidato apresentada ao TSE contém uma página

Uma pesquisa no Google por “Um plano de governo eficaz deve ir além da sugestão de propostas”, por exemplo, exibirá programas de candidatos de várias cidades e Estados. Isto porque mais de 700 candidatos a utilizaram na introdução de seus planos só neste ano. A frase também já foi usada em campanhas anteriores e já levou até mesmo à acusação de plágio entre adversários.

Um desses trechos idênticos dá a entender que houve um processo ativo para desenvolver o plano de governo, não que se trata de um texto genérico.

“Após escutarmos a população, através de plenárias partidárias, vimos por meio deste plano de governo, registrar nosso compromisso com a cidade de [aqui o candidato coloca o nome da cidade em que disputa a eleição], e para isso tornamos público este documento, oficializando nossas propostas por uma cidade mais justa, igualitária, participativa, responsável, transparente e democrática.”

Em mais de 200 propostas, há ainda um mesmo erro de português: um capítulo dedicado aos “programas assitenciais” (ao invés de assistenciais). cujo primeiro tópico é sempre “fomentar o programa de políticas de segurança alimentar e nutricional”.

Existem planos com frases iguais até entre candidatos que competem entre si. Em São Felix do Xingu, no Pará, o representante do Avante, Zé Wilson, e o do PL, Silvio Terraço Hotel, prometem “implementar programa para tornar a cidade conectada com instalação de WIFI (internet móvel) nos principais pontos e praça da cidade para facilitar comunicação e interação da população acompanhando as novas tecnologias”, um texto que também é reproduzido em outros municípios. Outros trechos dos planos desses candidatos também são parecidos ou iguais. Os candidatos não responderam ao pedido de entrevista.

“Queremos pegar ideias boas de quem quer que seja”, diz candidato

Um dos candidatos que fez uso de um plano de governo com trechos inteiros iguais ao de outras propostas é o Pastor Gerson, da Democracia Cristã, em Cruzeiro, no interior de São Paulo. O título de seu projeto apresentado ao TSE é “Plano de governo (genérico)”.

No texto, o candidato cita propostas para um município que não é o que ele concorre – a cidade de Rancho Alegre, no Paraná. “O plano para o desenvolvimento econômico do município de Rancho Alegre será pautado na combinação de desenvolvimento humano (IDH) com o desenvolvimento econômico (PIB)”.

Capa de plano de governo de candidato a prefeito

Crédito,TSE/Reprodução

Legenda da foto,Capa do plano de governo apresentada ao TSE pelo Pastor Gerson, candidato a prefeito no interior de São Paulo

A pequena cidade paranaense, aliás, aparece em ao menos 11 propostas de candidatos de diferentes cidades e Estados, que dizem querer “reativar e reformular a Associação de Produtores Rurais de Rancho Alegre”.

O texto com essa proposta aparecia no plano de governo do atual prefeito de Rancho Alegre, Fernando Carlos Coimbra, apresentado em 2020 quando ele disputou a eleição.

O documento enviado pelo Pastor Gerson ao TSE é assinado por uma prestadora de serviços de contabilidade, a R & R Contabilidade e Serviços. A BBC News Brasil conversou com um representante, Rogério Miranda, por telefone, que afirmou ter sido ele a fazer o rascunho do plano. Ele reconheceu ter usado trechos de propostas de outras cidades – inclusive Rancho Alegre – mas que achava que o pastor faria alterações antes de submeter o documento final ao tribunal.

“O Pastor Gerson é muito amigo. O que nós fizemos para ele foi um copy desk”, explicou. “Eu coloquei bem claro lá em cima: genérico. Não é plano oficial. É plano genérico. Se ele transformou em oficial, aí é dele”.

Miranda disse que a prática é comum no mercado: buscar outras propostas passadas na internet e tentar alinhar às ideias do cliente. “É tipo propaganda de supermercado: Agradecemos a preferência e volte sempre”. Negou, no entanto, ter feito planos para outros candidatos – teria feito somente para o pastor, por amizade. O candidato não declarou nenhuma despesa de campanha até o momento.

“Você sabe que no mundo nada se cria, tudo se copia. É até um princípio jornalístico. De repente o que é bom pra Sorriso do Oeste também é bom pra Cruzeiro. Opa, isso aqui do turismo é legal, deu certo lá ou vai dar certo lá, vamos colocar em nossa cidade algo parecido?”, explicou ele. “Por que não usar isso? Muda-se a cidade, muda-se algumas palavras, mas é simplesmente um copy desk”.

Em nota, o pastor Gerson reconheceu que os planos de governo “coincidem” com o de outras cidades, mas diz que não há nada de errado na prática. “Queremos pegar ideias boas de quem quer que seja.”

“Candidatos só cumprem o que a lei exige e, se eleitos, vão correr atrás de colocar uma estratégia governamental de pé”, diz especialista

Imagina-se que candidatos desenvolveram ideias que se alinham à corrente ideológica de seus partidos, discutiram essas ideias com a sociedade e então produziram planos enquadrados na realidade orçamentária de cada município.

Na prática, especialmente entre postulantes com menos estrutura e recursos, não é isso que acontece.

Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil que já trabalharam com candidatos dizem que o “copia e cola” é uma prática usual, especialmente em cidades menores, e que a produção do plano não costuma ser uma prioridade.

“É uma exigência sem padronização. Exige-se documento, mas não se fala quantas páginas, quais as temáticas mínimas, o nível de profundidade ou a necessidade de ter especialistas que validem o documento”, diz o diretor-executivo do RenovaBR, escola de formação política, Rodrigo Cobra. A organização realizou neste ano uma série de aulas que discutiram como elaborar planos de governo e sua importância nas cidades.

Para o professor de administração pública da Fundação Getulio Vargas (FGV-EAESP), Marcelo Coutinho, a exigência de apresentar um plano de governo sem qualquer critério torna as propostas irrelevantes. “Abre-se oportunidade para uma figura especializada que vai atender a essa demanda do TSE, uma espécie de despachante de plano de governo”, diz.

Para ele, os planos servem hoje, na prática, apenas para gerar conteúdo para as campanha de marketing dos candidatos, mas nem sequer são lidos pelos eleitores – e possivelmente, nem pelos próprios políticos que os apresentam. “O eleitor sabe que o candidato não vai cumprir tudo que está em seu plano, que é necessário negociar com a Câmara e tudo mais. É uma peça de ficção.”

Para Jeconias Júnior, secretário-executivo adjunto da Frente Nacional de Prefeitas e Prefeitos (FNP), a falta da qualidade dos textos está diretamente ligada à falta de estrutura à disposição dos candidatos, especialmente em cidades menores. “Os candidatos só cumprem o que a lei exige e, se eleitos, vão correr atrás de colocar uma estratégia governamental de pé.”

A FNP lançou neste ano uma série de webinários que discutem desafios nos municípios para ajudar candidatos a pensarem em propostas. “As candidaturas nas cidades de pequeno e médio porte enfrentam dificuldades estruturais que afetam diretamente a qualidade dos planos de governo. Candidatos, por falta de suporte técnico ou de recursos, acabam repetindo fórmulas genéricas que pouco dialogam com as necessidades locais”, destacou Jeconias.

Candidatos do PCO e do Novo usam texto único, sem citar nome da cidade em que disputam cargo

O levantamento da BBC News Brasil também identificou que ao menos 55 candidatos, sendo 42 do PCO e 13 do Partido Novo, apresentaram propostas ao TSE cujo texto é declaradamente genérico, sem apresentar informações específicas da cidade.

“Neste programa, apresentamos um programa de eixos gerais, válido para todo o País e para a luta de todos os trabalhadores”, diz a apresentação do texto genérico do PCO, que afirma ainda que as propostas concretas apareceriam somente na campanha.

No mesmo texto usado por seus candidatos, o PCO diz que o papel dos candidatos a prefeito, mesmo eleitos, “não é nem mesmo se propor a resolver todos os problemas das cidades. O papel primordial é de se colocar como representante da luta dos trabalhadores no governo”.

Tática parecida foi adotada por pelo menos 13 candidatos do Partido Novo, que usaram um mesmo arquivo de propostas, sem alterações, embora tenham se lançado candidatos em cidades e Estados diferentes.

Sharon Braga, candidato a prefeito do Novo em Macapá, capital do Amapá com quase 500 mil habitantes, é um dos que fizeram uso da cartilha. O texto contém três páginas e se divide nos seguintes eixos: combate à corrupção e aos privilégios; liberdade individual e respeito ao próximo; império da lei e democracia; livre mercado e direito à propriedade; Estado enxuto, eficiente e a serviço das pessoas e oportunidade a alcance e todos.

Braga afirmou à BBC News Brasil que tem um plano de governo, mas admitiu que não foi ele ou sua equipe a enviar o arquivo ao TSE, e sim o próprio partido. “Com a correria da campanha, não verifiquei”, disse. Ele enviou à reportagem um outro plano por e-mail, mas o documento ainda não aparecia no site do tribunal até o fechamento da reportagem.

O PCO informou que o uso de um texto único foi orientação do partido. “O PCO é um partido centralizado e, portanto, nossa política é centralizada e representada integralmente por nossas candidaturas. Explicamos, no programa enviado ao TSE, que temos uma política geral para o País, pois achamos que os problemas fundamentais do povo brasileiro não podem ser resolvidos a nível municipal. Entretanto, também explicamos que as posições políticas acerca de temas mais específicos de cada cidade podem ser lidas através de toda a nossa imprensa”.

A reportagem não conseguiu contato com o Novo.

Publicado originalmente em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cpw5yl8jgelo

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