Ao modernizar serviços e dados públicos, países do Sul Global poderiam ampliar a soberania digital. Mas com frequência sucumbem às grandes corporações ocidentais. Cooperação regional ou Sul-Sul pode ser caminho contra esta maldição
Por: James Görgen |Imagem: Controversia.com
Nos últimos anos, os Estados nacionais estão empenhados em fazer a transição digital de seus serviços, processos e canais de comunicação com os cidadãos. As iniciativas envolvem adoção de tecnologias emergentes para melhor atender os cidadãos, proteger dados estratégicos que custodiam, racionalizar e agilizar a prestação de processos e serviços públicos, promover inclusão financeira e dar maior transparência aos atos e ações oficiais.
Principais compradores de produtos e serviços digitais em diversos países, os Estados têm a possibilidade de induzir a configuração dos mercados digitais não apenas por meio de compras públicas[1] mas também na forma como escolhem as características e os modelos das tecnologias que adotam, o ritmo com que as implementam e como controlam as infraestruturas computacionais onde estes serviços e dados são armazenados e processados.
Estes fatores determinam legados tecnológicos, reduzem ou ampliam assimetrias regulatórias entre monopolistas e novos competidores, oxigenam ou engessam ecossistemas digitais nacionais e possuem impactos relevantes na geopolítica.
Longe de querer criticar estas necessárias iniciativas de apoiar a transformação da máquina pública visando a reforma do Estado, a intenção deste artigo é alertar para como esta tendência, desprovida de diretrizes e princípios mais estratégicos, aceleradas por hypes, pela pressão dos conglomerados e pelo efeito-manada, e sem uma coordenação política entre os três Poderes, pode afetar negativamente os quatros pontos destacados acima. E isso pode ser analisado através de três campos correlatos que têm ganhado maior atenção nos últimos anos: infraestruturas digitais, uso e reuso de dados e soluções públicas de inteligência artificial.
1. Entre infraestruturas ou plataformas?
O assunto da transformação digital do Estado via infraestruturas públicas digitais (DPIs na sigla em inglês) voltou a receber visibilidade na semana passada com um artigo de Bill Gates, fundador da Microsoft, elogiando os esforços de diversos países, inclusive Brasil e Índia, na implantação destas plataformas e seus sistemas. O bilionário focou sua análise na importância que a criação de identidades digitais e a inclusão financeira por meio de transações móveis têm para estas economias no caso de países de renda média, comparando-as a essential facilities.
“Existem alguns componentes principais que constituem a DPI: sistemas de identificação digital que comprovam com segurança quem você é, sistemas de pagamento que movimentam dinheiro de forma instantânea e barata e plataformas de troca de dados que permitem que diferentes serviços trabalhem juntos sem problemas. Esses sistemas e plataformas são para o mundo digital o que as estradas, pontes e linhas de energia são para o mundo físico – uma estrutura subjacente que conecta pessoas, dados e dinheiro on-line. Uma DPI sólida pode impulsionar um país, facilitando o acesso das pessoas a serviços essenciais, a participação na economia formal e a melhoria de suas vidas. Por outro lado, uma DPI mal implementada (ou simplesmente inexistente) pode retardar o desenvolvimento de um país e perpetuar ineficiências e desigualdades.”
Quem poderia discordar desta visão? Mas, como sempre, os silêncios são mais importantes que as declarações. Apesar de colocar as plataformas de intercâmbio de dados como um terceiro componente central para as DPIs, Gates não dedicou qualquer espaço no texto para analisar este ponto. Muito menos, discutiu os aspectos da infraestrutura física em si (data centers, cabos, servidores, redes de telecomunicações, chips). A própria metáfora de seu texto – de infraestruturas digitais como linhas de energia ou pontes – serve para confundir porque omite a origem histórica destas instalações e ainda reforça a lógica de que DPIs são infraestruturas no sentido tangível do termo quando elas estão mais para plataformas ou sistemas que vão se empilhando (daí o termo strack) sobre uma infraestrutura real[2].
As infraestruturas físicas públicas citadas por Gates se expandem e são mantidas a partir de vultosos investimentos públicos mesmo quando operadas via concessões reguladas e supervisionadas por governos. Em uma estrada, por exemplo, o Estado mantém seu aparato policial atuando para evitar qualquer ameaça à vida, riscos de controle destas infraestruturas críticas por criminosos ou circulação de mercadorias ilegais. Ao trazer às DPIs para esta analogia, mesmo que de forma involuntária, o fundador da Microsoft acaba acrescentando um argumento importante ao debate: se são infraestruturas de interesse público, quem deve controlar a parte física em si também é o Estado? E como?
Esta omissão não passou despercebido por aqueles que estão na batalha para desenvolver uma política industrial que inclua infraestruturas computacionais independentes e o controle de ativos digitais estratégicos nas mãos de governos nacionais de suas democracias. Como já escrevi neste espaço, acadêmicos e ativistas da agenda digital na União Europeia estão empenhados em convencer os novos integrantes do Parlamento a implementar um projeto chamado EuroStack, que reivindica justamente que estas infraestruturas e seus serviços nos países europeus não sejam contratadas das três empresas dos Estados Unidos que controlam cerca de 70% do mercado mundial (Amazon, Microsoft e Google). Uma de suas idealizadoras, Cristina Caffarra, comentou o post de Bill Gates com um alerta:
“Como todas as coisas das Big Techs, esta postagem é profundamente enganosa. Os hiperescaladores estão cooptando e se apropriando do conceito de ‘Infraestrutura Pública Digital’, mas apenas para ofuscar e desviar a atenção de iniciativas de infraestrutura reais realmente independentes. O truque é elogiar as DPIs da Índia e do Brasil como um blá, blá, blá maravilhoso de democratização, mas precisamos deixar claro que a versão de ‘DPI’ aqui apresentada é a versão ‘enxuta’: identidade digital, carteira digital… Nada de metal. Os hiperescaladores adoram se isso for executado em SUA infraestrutura!”
Segundo Caffarra, a proposta da EuroStack vai além:
“(…) um projeto de investimento de estratégia verdadeiramente industrial para reduzir as dependências da infraestrutura profunda das Big Techs. Ninguém deve se deixar enganar se as instituições europeias começarem a dizer ‘já estamos fazendo o EuroStack, é DPI’ – NÃO é disso que se trata (…). Isso é isca das Big Techs, como de costume, colonizando e se antecipando.”
É importante perceber como este discurso realmente está levando à criação de situações de fato em várias partes do mundo. Os documentos propondo DPIs são geralmente omissos em descriminar a natureza e a configuração da infraestrutura física que abrigará e processará os serviços públicos e os dados dos cidadãos focando mais nas condições para o desenvolvimento dos outros itens da “pilha”. Mais do que isso, silenciam sobre a definição de quem as sustentará.
O que está ocorrendo é o contrário. As principais empresas estrangeiras se apressaram em criar o conceito de “nuvem soberana” para oferecer aos Estados nacionais plataformas e sistemas digitais customizados no acesso e gestão da informação. Segundo essas empresas, suas equipes apenas assumiriam a gestão das DPIs mantendo o controle das informações e os processos de segurança na mão dos governos que não quisessem contratar a solução como um todo atuando tanto no armazenamento quanto no processamento dos dados.
Países diferentes do Brasil, que somente no nível federal possui três estatais de tecnologia da informação com infraestrutura própria[3], não têm esta opção e precisam deixar todos os seus dados e sistemas nas mãos dos provedores das “nuvens soberanas”. Também é importante notar que nos maiores mercados esta oferta de serviços vem acompanhada de anúncios de investimentos locais para a instalação de centros de dados destas empresas. Nos últimos dois meses, esta foi uma notícia corriqueira na imprensa do Brasil, do Reino Unido, da Itália, da Malásia, da Índia e da Indonésia apenas para citar alguns. Um assédio difícil de resistir.
Mesmo no caso do Brasil, a independência, quando ocorre, parece ter tiro curto. Um bom exemplo vem de uma declaração recente do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, de que, em breve, o sistema público de transferências digitais do país, o popular Pix, será vinculado à carteira digital da Google para oferecer a funcionalidade de pagamento por aproximação. Estamos falando de uma plataforma digital que opera 240 milhões de transações por dia e custodia os dados de mais de 170 milhões de brasileiros e empresas cadastradas[4]. Ainda não foi informado publicamente quais serão as condições em que estes ativos serão cedidos para a gigante digital e qual reuso ela poderá fazer deles. Mas anunciar a decisão sem discuti-la com a sociedade é, no mínimo, arriscado. Atualmente, 130 milhões de brasileiros possuem contas digitais[5].
2. Apetite por dados
Neste assédio subjacente ao conceito de DPIs, reside uma necessidade estratégica que as big techs possuem pelo acesso, uso e reuso de informações públicas e pessoais custodiadas pelo Estado. Ativos estratégicos, de valor financeiro e econômico ainda não estimado pela maior parte das nações, os dados são uma porta de entrada para impulsionar diversos negócios e gerar vantagens competitivas em relação à concorrência nos mercados digitais. Por isso, a tendência conhecida como G2B (government-to-business), uma via de mão única, está muito presente nos discursos destas companhias quando os assuntos são dados abertos e seu livre fluxo.
Parece uma postura natural dada a enorme vantagem que esse tipo de modelo pode proporcionar. Por exemplo, uma empresa de tecnologia com acesso aos dados do Sistema Único de Saúde possui um diferencial considerável para desenvolver novas aplicações nesta área e retornar ao Poder Público ofertando serviços quase personalizados. O mesmo se dá no setor financeiro com uma empresa acessando a base de dados do Pix e gerando informação para o desenvolvimento de sistemas de análise de crédito e de risco, tendências de consumo de serviços e aquisição de produtos e até mesmo mobilidade de clientes.
Dificilmente, porém, seus executivos aceitam conversar quando se coloca na mesa a contribuição de suas empresas ao ecossistema nacional de dados. O B2G (business-to-government) permitiria ao Poder Público ter informações precisas para orientar suas políticas públicas e outras ações que visem ampliar a qualidade dos seus serviços ou orientar a tomada de decisão. Como sustenta o presidente do IBGE, Márcio Pochmann, ter estes dados – principalmente os coletados por meio de plataformas de mídias sociais – seria como realizar um censo diário e em tempo real no Brasil.
Os esforços das big techs para garantir acesso aos dados de governo sem grandes custos de transação estão por trás de diversas iniciativas globais voltadas à abertura de informações públicas, interoperabilidade de bases governamentais e o uso e reuso de dados para o bem (no conceito de data for good)[6]. Algo que é meritório a princípio pode ser nocivo à sociedade se não houver salvaguardas regulatórias e algum tipo de contrapartida, talvez na linha do B2G. Somente no caso da plataforma Gov.br, administrada pelo Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos[7], são mais de 150 milhões de usuários cadastrados, quase o mesmo número do Pix.
3. IA: entre a concentração e o legado
Este segundo fator da transformação digital se relaciona diretamente com outro bastante em voga atualmente no seio das estruturas das administrações públicas federal, estaduais e municipais. Trata-se da adoção de sistemas de inteligência artificial nos mais diferentes projetos de políticas públicas, processos administrativos e serviços. O hype criado pelas grandes empresas de tecnologia e consultorias privadas empurra os servidores e dirigentes a um efeito-manada que leva a uma adoção acrítica e acelerada da estrutura e dos modelos que suportam as plataformas de IA já dominadas pelas big techs.
Este fenômeno é o exemplo perfeito de como toda esta estratégia se complementa. Intensiva usuária de dados, a IA está batendo no seu limite em termos do “arrastão” por conteúdo promovido na web para a coleta gratuita de informações, que foram a base do treinamento dos grandes modelos de linguagem dos cinco principais conglomerados digitais. De outro lado, o tamanho destas bases de dados e sua demanda por alta capacidade de processamento leva os governos a contratar as nuvens soberanas para realizar seus experimentos uma vez que se torna mais acessível para um Estado com escassos recursos orçamentários adquirir uma solução de nuvem que já embute um serviço de IA para o desenvolvimento de aplicações. Como não existe qualquer análise de impacto que leve em conta estes fatores estruturais e as relações sistêmicas presentes no ecossistema digital, algo inédito se comparados à aquisição de outros produtos e serviços, as contratações não são sopesadas do ponto-de-vista concorrencial, de conteúdo nacional e do custo que o legado e dependência tecnológica representarão no futuro.
Ao fim do dia, temos dezenas de iniciativas empolgantes sendo desenvolvidas no Executivo Federal, no Judiciário e no Legislativo das quais muitas utilizam as plataformas de IA estrangeiras hegemônicas atreladas a seus serviços de nuvem, incluindo aplicações para armazenamento de informações sensíveis do Estado e comunicações estratégicas realizadas por meio de sistemas de conferência e mensageria privados. Em um evento da Microsoft realizado em março, o MGI informou que o Sistema de Administração dos Recursos de Tecnologia da Informação (SISP), que é formado por mais de 250 órgãos públicos, havia mapeado a existência de projetos de IA em 33 órgãos federais, com 73 projetos em produção e outros 119 em desenvolvimento[8].
Além do risco geopolítico vinculado à questão de defesa nacional, parece claro que este fenômeno resultará em uma situação de dependência muito semelhante de quando, no primeiro Governo Lula, tentou-se implementar soluções de software livre que esbarraram em uma cultura já arraigada de uso de aplicações proprietárias fornecidas por empresas como a de Bill Gates. Por mais que as interfaces de uso fossem praticamente idênticas, os servidores públicos rejeitavam a adoção de ferramentas que não aquelas aonde foram inicialmente alfabetizados.
Experiência muito similar foi vivida no primeiro Governo de Dilma Rousseff quando tentou-se implementar o sistema de e-mails Expresso, provido pelo Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), após as denúncias de espionagem da presidente da República e de empresas estatais realizadas por agências dos Estados Unidos com o uso destas ferramentas digitais, no escândalo global revelado pelo analista Edward Snowden. Na primeira oportunidade política, e com argumentos sempre centrados em preço e conveniência, a burocracia voltou a sentar com as big techs para fechar contratos milionários que até hoje são mantidos. Como se vê, discutir transformação digital do Estado é também enfrentar a questão da captura, das portas giratórias e do shady lobbying[9] na administração pública.
Uma transformação soberana
Olhando para esta realidade, parece razoável considerar os argumentos que colocam a política industrial como um motor para realizar esta transformação digital de forma mais independente. A quebra desta relação de dependência e o direcionamento dos orçamentos públicos bilionários destinados à contratação de produtos e serviços digitais são ações fundamentais para não apenas escapar destas armadilhas, mas também constituir ecossistemas digitais nacionais que aos poucos possam quebrar estas amarras e desenvolverem algum tipo de autossuficiência tecnológica e de controle de dados. Somos o 10º maior mercado do mundo em termos de serviços digitais e temos empresas nacionais qualificadas para este desafio.
Quando se fala em soberania digital é importante não se contentar com o conceito e o papel que querem limitar o Brasil e o Sul Global. Transformação digital dependente de agentes externos é uma condição insuficiente para garantir a autodeterminação tecnológica da agenda digital do país, que tem impactos em diversos outros setores econômicos e mesmo na transição ecológica. Assim como China e Rússia já vinham fazendo, o esforço das democracias europeias com seu EuroStack é um caminho importante que se descortina. É fundamental, também, dialogar com a Índia para inserir estas preocupações em sua agenda vinculada às DPIs com vistas a algum tipo de coalizão que busque soberania digital real. Para ser viável em termos de escala, uma nuvem soberana pública só pode ser um projeto internacional. Regionalmente, uma cooperação envolvendo México, Colômbia e Chile poderia ser outra alternativa importante para iniciar este processo de concertação.
E o Brasil vem tendo oportunidades de aprofundar o debate. De certa forma, este caminho foi aberto ao longo dos trabalhos do G20 desde a presidência indiana apesar da falta de costura entre os quatro temas no grupo de economia digital[10] ao longo deste ano. Colocá-lo na mesa da nova composição do Brics, de uma forma mais estratégica e qualificada, durante a coordenação brasileira em 2025 pode ser uma forma de atrair outros países a promoverem uma transformação digital nacional independente dentro de suas estruturas estatais indo muito além da mera adoção de novas tecnologias e construindo uma saída para a transformação digital do Estado com caráter soberano e que constitua em uma alternativa à disputa hegemônica atual no campo da agenda digital.
Publicado originalmente em: https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/o-estado-digital-e-suas-armadilhas/
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