Juventude tem muito mais anos de escolaridade do que décadas atrás. Mas não basta, para democratizar a Educação. Sem homogeneizar as trajetórias estudantis, é crucial garantir condições equitativas para o sucesso escolar, a cidadania e a inserção social
Por: Roberto Rafael Dias da Silva | Crédito Foto: Agência Brasil
Em um contexto de democratização, no decorrer do último século, o Brasil tem conseguido prolongar o tempo de permanência de seus adolescentes e jovens na escola. O percurso de garantia do acesso à educação pública, notadamente no que se refere ao Ensino Médio, ainda precisa obter avanços significativos; todavia, não podemos desconsiderar os legados das lutas em torno deste direito no decorrer deste período. Acompanhando o monitoramento das metas do Plano Nacional de Educação podemos afirmar que a escolaridade média, considerando a população de 18 a 29 anos de idade, atingiu no ano de 2023 uma média de 11,8 anos de estudo. Cabe lembrar que, no início da década anterior (2012), a média era de 10,7 anos de escolaridade (variação positiva de 1,1 anos). Em outras palavras, gradativamente, as políticas de democratização do acesso conduziram-nos a um alargamento do tempo de permanência na escola.
O avanço torna-se considerável quando realizamos algumas breves digressões históricas. (1) Na década de 1930, a escolaridade média da população juvenil no Brasil, em estimativa calculada com base na escolaridade declarada pela população, era de pouco mais de 2 anos. (2) Na década de 1980, meio século após o período mencionado anteriormente, a média de anos de estudo dos adolescentes e jovens brasileiros era próxima a 7 anos. (3) A taxa de conclusão do ensino médio nos anos de 1960 era de aproximadamente 6% e no ano 2000 estava em mais de 50%. Minha intenção não se encontra em descrever uma narrativa histórica rumo a uma democratização de caráter universal. Nossa ampliação do acesso à escolarização ainda é incompleta e desigual (Unesco, 2022). Para fins argumentativos, estes dados colocam-nos diante de um cenário distinto no que se refere à escolarização desta população: estamos diante da primeira geração de adolescentes e jovens brasileiros que realiza a transição para o mundo do trabalho, para a continuidade formativa ou para a vida cidadã por dentro da instituição escolar.
Junto ao prolongamento do tempo de permanência na escola, evidenciado nos dados mencionados anteriormente, também merece destaque um processo que poderíamos nomear como unificação dos percursos formativos. A expansão das matrículas em desenhos curriculares alternativos – como a educação profissional e tecnológica (EPT), por exemplo – foi relativamente baixa, predominando as matrículas nos ensinos médios convencionais, ofertados pela manhã ou no turno da noite. A combinação entre o prolongamento e a unificação no tempo de permanência na escola caracteriza boa parte dos sistemas de ensino ocidentais (Barrere, 2013). Talvez uma especificidade brasileira possa estar ligada a uma representativa porcentagem de estudantes matriculados no turno da noite, bem como a oferta de um único regime de matrícula. Cada uma destas questões destacadas pode trazer elementos específicos para pensarmos a respeito deste processo de democratização, tal como o experimentamos em nosso país.
Coadunando-me aos estudos sociológicos de Anne Barrére (2013), ainda que a autora se remeta ao contexto francês, hodiernamente precisamos reconhecer os efeitos paradoxais da democratização. Isto é, “a homogeneização dos percursos esconde profundas desigualdades” (p. 21). A sociologia da educação, na segunda metade do século XX, auxiliou-nos na produção de um novo conjunto de indagações (Canário, 2008), por exemplo: a) Que fatores permitem explicar as narrativas de sucesso dos estudantes das camadas populares na escolarização de nível médio?; b) Como os estudantes relacionam-se com o saber no contexto da ampliação do acesso à escolarização?; c) Com quais finalidades socioeducativas promovemos a democratização das políticas de ensino médio no Brasil? Reconhecendo o cenário de democratização em curso no contexto brasileiro, associado ao prolongamento e unificação dos percursos escolares, o deslocamento analítico que pretendemos realizar supõe um olhar atento para as trajetórias estudantis. Em outras palavras, para compreender os efeitos (paradoxais) da democratização consideramos importante uma aproximação aos indivíduos (em suas singularidades).
Há quase três décadas, algumas investigações têm contribuído para este debate. A tese de Viana (defendida na UFMG no ano de 1998), por exemplo, ofereceu-nos uma descrição de um conjunto de configurações singulares que favorecem à longevidade escolar. Aprecio sua atenção a aspectos como os sentidos atribuídos à escolarização, os tipos de relações intersubjetivas e intergeracionais, as disposições temporais dos sujeitos, os modelos socializadores familiares ou mesmo os tipos de mobilização escolar familiar. Considerando uma dimensão singularizadora, o estudo provoca nossa reflexão na direção de uma sensibilidade mais ampliada acerca das trajetórias dos estudantes. Em direção semelhante, Maria da Graça Setton (2005) acrescenta um aspecto incontornável para pensarmos sobre tais trajetórias, qual seja: “o estudante brasileiro contemporâneo socializa-se a partir da interdependência entre sistemas de referência híbridos” (p.80). As provocações trazidas pelas pesquisadoras brasileiras, em interlocução com os tópicos que apresentamos anteriormente, levam-nos a ponderar que as trajetórias educativas de adolescentes e jovens precisam ser complexificadas em seu processo de interpretação.
Por um lado, não basta afirmar que as trajetórias foram regulares ou irregulares, finalizadas ou interrompidas, estáveis ou instáveis. A singularidade de tais trajetórias, em um cenário de prolongamento e unificação do tempo de permanência dos jovens na escola, demanda uma nova sensibilidade pedagógica, acrescentando aspectos que nos permitam reconhecer que se trata da primeira geração que realiza a transição para o trabalho, para a cidadania e para a universidade por dentro da instituição escolar. Por outro lado, teríamos elementos para produzir contraponto (talvez resistência) às políticas de escolarização alicerçadas estritamente na gramática da expansão das oportunidades (Silva, 2024). As oportunidades precisam ser cotejadas com princípios que criem condições para engendrar dispositivos que possam promover uma igualdade de base (Dubet, 2023).
As políticas de ensino médio, no contexto de democratização experienciado no decorrer do século XX, levam-nos a pensar que a gramática da expansão das oportunidades educacionais precisa ser cotejada com outras dimensões em uma sociedade em que as desigualdades se fragmentam, tal como aprendemos com Dubet (2023). Pensar em termos de justiça social, sob este cenário, torna-se absolutamente fundamental em nossa época. Todavia, acrescentaríamos as dimensões do acolhimento, do acompanhamento das experiências formativas e da democratização da aprendizagem. Em linhas gerais, a políticas de ensino médio precisam colocar em seu horizonte de preocupações três tipos de transições: transição escola-trabalho, transição escola-cidadania e transição escola-universidade/estudos futuros. Cada um destes desenhos de transição, em sua complexidade, contribuirá para uma nova compreensão das trajetórias escolares de adolescentes e jovens no Brasil, em um cenário de intensificação das possibilidades democratizadoras.
Publicado originalmente em: https://outraspalavras.net/direitosouprivilegios/ensino-medio-para-ir-alem-do-amplo-acesso/
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